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ID: 2275

Reforma Agrária - 1991

Carta Pastoral da Presidência

02/12/1991

1. A reforma agrária, já por várias vezes, tem sido bandeira governamental. Lembramos o Estatuto da Terra de 1964, e o Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República, de 1985. A necessidade do projeto é uma evidência. Infelizmente, porém, a discussão a respeito tem sido desvirtuada. Entrou no moinho dos interesses partidários, recebeu uma carga emocional indevida, sucumbiu no jogo do poder e na confusão das interpretações. O processo da Constituinte exemplificou, quão fortes são as resistências. Paralisam a ação do Governo. Em termos de reforma agrária pouco ou nada aconteceu, agravando-se a cada dia as conseqüências desastrosas dessa omissão. Multiplicam-se os conflitos de terra, crescem os bolsões de miséria nas cidades, acentua-se o desabastecimento da população. A modernização do Brasil exige, não por último, a reorganização de sua estrutura fundiária.

2. Foi por essas razões que o Concílio Geral da IECLB, realizado de 16 a 21 de outubro de 1990, em Três de Maio, RS, aprovou moção, insistindo em que a IECLB voltasse a se empenhar pela reforma agrária. Em decorrência disso, o Conselho Diretor convocou uma comissão assessora que sugeriu, entre outras, fosse o assunto encaminhado às bases. Importa que as iniciativas da direção tenham o amplo apoio das Comunidades. Importa, mais ainda, que a causa seja, ela mesma, assumida e compartilhada em todas as instâncias, traduzindo-se em iniciativas múltiplas. O propósito desta carta consiste em divulgar um mandato conciliar e em convidar as Comunidades e demais órgãos da IECLB a acolherem a iniciativa e a se juntarem na defesa da reforma agrária como uma das metas a serem priorizadas no País.

3. Com este empenho a IECLB reassume, com novo vigor, o que há muito a vem preocupando. É uma Igreja constituída por grandes contingentes de pequenos e médios agricultores. Sofre, por isto, de modo especialmente agudo, as conseqüências fatais da concentração da terra no Brasil, do êxodo rural e de uma política agrária que estrangula o pequeno produtor. Durante muitos anos a reforma agrária fazia parte das prioridades do Conselho Diretor, e o tema “Terra de Deus - terra para todos” orientou e desafiou o povo evangélico luterano em 1982, repercutindo para muito além de suas fronteiras. Entende a IECLB que a questão da terra não se restringe a um assunto técnico ou político. O uso da terra e sua distribuição devem ser responsabilizados perante Deus, o único e verdadeiro dono da terra, por ser Ele o Criador. A reforma agrária não é assunto de escolha arbitrária da IECLB. Ao colocá-lo em sua agenda, a IECLB também não o faz por defender interesses próprios. Ela tem em vista o todo do povo de Deus. Há um imperativo ético a ser cumprido e uma responsabilidade coletiva a ser atendida. A situação fundiária vigente no País fere a ambos.

4. Com este reclamo a IECLB não se encontra sozinha. Sabe-se irmanada, nesta causa, com muitos parceiros ecumênicos. O papa João Paulo II, em sua recente visita ao Brasil, sublinhou enfaticamente a urgência da reforma agrária. De igual modo o fizeram e fazem o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), outros organismos ecumênicos, o movimento dos sem-terra (MST), partidos políticos e entidades diversas a exemplo da “Campanha Nacional pela Reforma Agrária” (CNRA).

A IECLB não pretende empreender uma marcha isolada. Pretende, isto sim, juntar-se às forças que promovem a causa, ainda que ela o faça a seu modo e dentro da responsabilidade evangélica que lhe é peculiar. A reforma agrária não é causa exclusiva da IECLB. É uma causa nacional “ecumênica”, à qual a IECLB se associa por considerá-la justa, necessária, sim indispensável para a sobrevivência da nação brasileira.

5. A palavra “reforma agrária” costuma gerar polêmicas, para o que em boa medida contribui a confusão criada em torno da questão. Que significa reforma agrária? Ora, não pode significar outra coisa do que um processo de reversão da concentração da terra . É o esforço por uma distribuição de terra que seja racional, corresponda ao bom-senso e prometa um máximo de bem-estar social para o todo da Nação. Não é verdade que reforma agrária significa a desapropriação indiscriminada. Ela também não pode significar a negação do direito à propriedade como tal, o que estaria em conflito com a Constituição. Finalmente, ela também não pode vir em detrimento da produção. Ela deve, isto sim, facilitar o acesso à terra para quem tem vontade e competência de nela trabalhar, ela deve corrigir distorções do direito à posse e assim eliminar a causa da absoluta maioria dos problemas sociais no País.

6. Lembramos alguns dados que comprovam o quadro alarmante. Em 1985 o Latifúndio com propriedade acima de 10.000 ha ocupava 15% do solo agricultável brasileiro, embora representasse apenas 0,03% do total dos estabelecimentos rurais. Enquanto isto, o minifúndio com menos de 1 ha de extensão, ocupava 0,1% da área, ainda que constituísse 11% das propriedades. Essa impressionante desproporção avança. Ainda em 1970, 44,3% da população economicamente ativa vivia da agricultura. Em 1987, o índice havia baixado a 24,6%. Em números absolutos constatamos que somente na década de 70 houve um fluxo de 28,4 milhões de pessoas do campo para a cidade. Comprovam as estatísticas, ainda, que, juntamente com a concentração da terra na mão de um número cada vez menor de proprietários, aumenta a área de terras ociosas. Na propriedade pequena, com menos de 1 ha, 91% da área é aproveitada para a lavoura, enquanto que este percentual cai para 2% nas propriedades com mais de 10.000 ha (todos os dados fornecidos pelo IBGE). Num país em que se expande a fome, existem vastíssimas áreas ociosas.

7. O Brasil paga caro por este quadro de distorções. O inchaço das cidades e o surto da violência nas regiões rurais e urbanas são apenas as conseqüências mais visíveis. Há outras, indiretas, a exemplo do narcotráfico e da escandalosa realidade dos menores abandonados. Além disto há que se respeitar que tanto o minifúndio quanto o latifúndio são antiecológicos. O primeiro por ser forçado a explorará o máximo a terra às custas de sua preservação, o segundo por privilegiar a monocultura, com seus efeitos colaterais danosos a médio e longo prazo. Se há necessidade de se estabelecer um módulo mínimo de propriedade, também deverá ser estabelecido um módulo máximo. Uma reforma agrária, feita com bom senso, cortará a raiz de muitos males em nossa sociedade, não por último a causa da falta de suprimento do mercado interno. Em termos relativos, a média propriedade é incomparavelmente mais produtiva do que o latifúndio de um lado e o mini-minifúndio de outro. E ela costuma produzir não para a exportação e sim para o mercado interno. São coisas para a discussão e verificação. A reforma agrária, contudo, faz falta.

8. Há muitas maneiras de se fazer a reforma agrária. A criação de um crédito fundiário, a tributação e o subsídio, uma política agrária voltada aos interesses dos pequenos produtores poderão ser instrumentos mais eficazes do que litigiosas desapropriações. É preciso querer a reforma agrária. Não será difícil de, então, achar os meios, inclusive os meios para evitar o abuso dos aproveitadores. Não cabe à Igreja elaborar e apresentar um projeto. Tais projetos já existem, seja da parte de partidos políticos e movimentos, seja da parte do Governo. Há que se examiná-los quanto à sua adequacidade. A Igreja tão somente insiste em que alguns princípios básicos sejam obedecidos. Uma reforma agrária no Brasil deve:

a. visar à justiça na distribuição da propriedade;

b. cooperar na solução dos problemas sociais da Nação;

c. incrementar a produção de alimentos, necessária para o abastecimento de toda a população;

d. estar a serviço da preservação dos solos, a fim de garantir a existência das gerações futuras.

Por ser Deus o senhor da terra, pesa sobre a sua posse e sobre o seu uso uma hipoteca social que impede o arbítrio. O desprezo a esta responsabilidade, a sociedade o pagará com a autodestruição.

9. É de supor que a retomada do tema da reforma agrária pela IECLB volte a provocar tensões internas. Por isto é tão importante discutir. O tema poderá inspirar temores. Parece que está ameaçada a nossa posse. Não é bem assim. O assunto merece aprofundamento. A Igreja não pode querer o absurdo, o antiracional e o injusto. O que deve, é opor-se aos absurdos existentes, ao abuso que há, à injustiça que impera. Com isto não nos atrelamos ao Governo, nem a um partido ou movimento. Mas damos apoio a toda iniciativa boa que promete atender as necessidades a serviço da vida e da paz social.

10. A direção da IECLB vai procurar a cooperação ecumênica no cumprimento do mandato que lhe foi dado. Serão feitas tentativas de sensibilizar e mobilizar os respectivos órgãos governamentais. Há necessidade de batalhar por esta causa justa. Rogamos às Comunidades e todas as demais instâncias da IECLB a fazerem o mesmo no âmbito em que se encontram. Premissa, porém, é o debate aberto e sincero na própria IECLB. Poderá haver programações respectivas nas Comunidades, nos Distritos, nas Regiões. Como está a situação fundiária em nossa respectiva área? Qual o compromisso ético que a consciência cristã nos impõe? A fim de subsidiar a reflexão será confeccionado um caderno de estudos. Sobretudo, porém, será necessário ouvir: o movimento dos sem-terra, especialistas, representantes de partidos e do Governo e muitos outros. Ação ética sempre necessita de duas coisas, ou seja, da sólida informação e de uma consciência comprometida com o bem. Para a reforma agrária e o saneamento das chagas de nossa sociedade vale o mesmo.

Porto Alegre, 2 de dezembro de 1991
 


Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB / Instância Nacional: Presidência
Natureza do Texto: Manifestação
Perfil do Texto: Manifestação oficial
ID: 12610

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