Presidência da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil



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Diretrizes para atos e diálogos inter-religiosos - 2009

19/03/2009

INTRODUÇÃO

A IECLB, segundo o artigo 5.º da sua constituição, é de “natureza ecumênica”. Essa ecumenicidade se refere explícita e exclusivamente a igrejas “que confessam Jesus Cristo como único Senhor e Salvador”, em correspondência com os termos que definem a base do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), dos quais a IECLB é membro. Contudo, entre as atribuições do Pastor Presidente também se encontra a de “exercer as relações da IECLB com outras entidades religiosas e civis e com os órgãos públicos” (Art. 35, VII, da Constituição), o que no cenário religioso brasileiro inclui, além da prática do ecumenismo com outras igrejas cristãs, a questão da relação com outras religiões, como as afro-brasileiras, as indígenas, o espiritismo, o judaísmo, o islã, o hinduísmo, o budismo, entre outras.

Há, de fato, no Brasil uma diversidade de matrizes religiosas que muitas vezes co-existem paralelamente, mas não raro também interagem entre si, por vezes até mesmo no interior das próprias igrejas. Há membros de igrejas, também na IECLB, que têm de fato uma afiliação ou prática religiosa dupla, por exemplo, da fé cristã e do espiritismo. Tomando a sério essa realidade, o Pastor Presidente incumbiu o Grupo Assessor para Ecumenismo com a tarefa de elaborar diretrizes para o diálogo e a cooperação inter-religiosos, importantes também como orientação para a atuação de obreiros e obreiras ao participarem de atos públicos inter-religiosos.

Entendemos por atos públicos inter-religiosos aqueles convocados pelo poder público, por instituições de ensino, pela mídia ou por entidades da sociedade civil com uma finalidade específica, visando ao bem da sociedade. Para a participação em tais atos, é mais e mais comum chamarem-se representantes não apenas da Igreja Católico-Romana, como era uso até um passado não muito distante, mas uma variedade de igrejas cristãs e, inclusive, de outras religiões. Costuma-se denominar tais atos de “ecumênicos”, apesar de se tratar, com freqüência, de atos civis com participação multirreligiosa. De qualquer forma, está sendo reconhecido o pluralismo religioso cada vez mais evidente em nosso país. O “interesse” pelo religioso – e o espaço a ele dado – não pode deixar de ser visto como algo positivo, ainda que também haja nisso uma boa dose de ambigüidades e alguns riscos a considerar. Assim, convites para formaturas, celebrações e orações em prol do bem comum não deveriam ser recusados sem fortes argumentos em contrário.

Contudo, muitas vezes faltam critérios orientadores para o grau de envolvimento, por exemplo quando se trata de eventos pontuais multirreligiosos que não permitem um real diálogo inter-religioso. As falas nestas ocasiões tendem mais para uma seqüência de afirmações religiosas, não poucas vezes abusadas para a autopromoção de determinada entidade. Também não pode ser objetivo de tais eventos o nivelamento das diferenças religiosas, como se todas as religiões pudessem (ou devessem!) ser fundidas em um grande caldeirão. Portanto, é preciso ter sabedoria e cautela ao aceitar tais convites e ao conceber e executar uma participação significativa, em sintonia com as necessidades da sociedade contemporânea e enraizada na nossa tradição evangélico-luterana.

O termo “ecumênico”, a partir da sua raiz etimológica, pode ser estendido tanto ao serviço no mundo (diaconia) como ao diálogo entre religiões. Contudo, os órgãos ecumênicos organizados, como o CMI e o CONIC, convencionaram usar o termo para a busca da unidade das igrejas cristãs no uno e único Corpo de Cristo. Em contrapartida, o termo inter-religioso diz respeito ao diálogo, ao intercâmbio e à cooperação entre religiões diferentes. No linguajar cotidiano brasileiro, contudo, denominações cristãs e entidades de outras religiões são designadas ora como “igreja”, ora como “religião”, dando a impressão como se ambos os termos fossem sinônimos. Tornou-se, inclusive, comum usar o termo “macroecumenismo” para a dimensão inter-religiosa. É necessário, portanto, clarear a terminologia. Nas presentes proposições, a locução “diálogo inter-religioso” é considerada simultaneamente a mais adequada e neutra, uma vez que não carrega um peso histórico comprometedor.

Estas orientações pretendem servir dois objetivos: por um lado, os obreiros e as obreiras da IECLB deverão, assim esperamos, sentir-se animados e animadas a participar de tais eventos, observadas as orientações aqui delineadas. É bom que participem, pois o empenho, inclusive a oração (que partindo de pessoas cristãs é sempre direcionada ao Trino Deus) pela paz, pela justiça social ou outra finalidade visando ao bem de toda a sociedade precisa da colaboração de todos os setores. As religiões dispõem de recursos específicos para motivar esta cooperação e mobilizar os seus membros. Por outro lado, providenciamos indicações sobre a forma e os limites dentro dos quais essa participação deve acontecer para não dar lugar a mal-entendidos. Os obreiros e as obreiras devem estar conscientes do fato de que, com a sua aparição pública, emitem, tanto para fora como para dentro, uma mensagem que facilmente pode ser mal-interpretada. Tanto a presença quanto a ausência da IECLB em determinados atos públicos com representação multirreligiosa podem ser interpretadas de forma negativa por representantes de outras religiões ou pela própria membresia da IECLB.

O presente texto está organizado em quatro capítulos, acrescidos de um glossário e uma pequena bibliografia. No primeiro capítulo, buscamos demonstrar situações concretas nas quais surge o desafio de participar de um ato público inter-religioso. O segundo quer descrever o contexto religioso atual em sua pluralidade, tornando necessária a ampla cooperação entre as religiões em prol do bem comum. No terceiro capítulo, exploramos bases bíblicas e teológicas como fundamento da participação evangélico-luterana em atos públicos inter-religiosos. E, por fim, propomos orientações para a participação concreta em tais atos.

Esperamos que estas reflexões e orientações permitam uma participação tranqüila e significativa em atos públicos inter-religiosos, sem dar lugar a mal-entendidos ou sem deixarmos de lado a nossa base bíblica e confessional. Que sejam abençoados pelo “Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles; o qual, nas gerações passadas, permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos; contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura e de alegria” (At 14.15-17).

O presente documento é emitido pela Presidência da IECLB, consultada a Conferência de Pastora e Pastores Sinodais. Expressa-se o agradecimento a quem colaborou em suas versões:

P. Harald Malschitzky
P. Meinrad Piske
P. Dr. Rudolf von Sinner
Est. Daiana Ernest
P. Yedo Brandenburg
P. Em. Ervino Schmidt
Pª Lic.Vânia Moreira Klen

 

1. SITUAÇÕES INTER-RELIGIOSAS

Passou o tempo em que somente a Igreja Católico-Romana e, em alguns lugares, representantes de igrejas históricas do mundo protestante eram convidados para momentos solenes de instituições públicas ou datas especiais (nacionais ou municipais) nas grandes cidades. Cresce a freqüência de serem convidados líderes de outras religiões, por exemplo do islã, do budismo, de religiões de origem afro. É quase regra geral, também, que não se chega a saber com antecedência como será a composição do grupo celebrante, o que impossibilita encontros de preparação.

EXEMPLOS

1. Por ocasião da posse de um dos prefeitos de Porto Alegre, estava representada quase uma dezena de entidades religiosas. Cada uma tinha dois a três minutos para usar a palavra. No final, o líder das religiões afro convidou a todos para que, de mãos dadas, rezassem o Pai-Nosso. A grande platéia atendeu ao convite.

2. O banco de alimentos organizou uma festa na semana do Natal. Haveria, no início, uma celebração religiosa. Presentes estavam um sacerdote católico, um pastor da IECLB, um líder muçulmano e um líder judeu. O início atrasou muito, tanto que o sacerdote e o líder judeu foram embora, não sem pedir que o muçulmano e o pastor os representassem, falando também em seus nomes.

3. Um pastor relata: “Eu participei em uma oportunidade da Celebração das Águas. [...] O programa não apresentava nenhuma explicação do que significava o evento. Na minha lembrança está o fato de que essa celebração às margens do Guaíba era uma espécie de manifestação conjunta das diversas religiões no sentido de conscientizar o povo da sua responsabilidade pela preservação da água e da vida que dela depende. Era muito mais uma manifestação ecológica do que religiosa. Naturalmente, houve manifestações típicas da religiosidade popular no sentido de exaltar uma divindade do mundo das águas, tipo ‘Rainha do Mar’, Mãe d'Água’.”

Cresce também o número de convites para participar de mesas-redondas na mídia, sempre ao vivo. Nesses casos, quando muito, se consegue descobrir quem foi convidado a participar, o que não significa necessariamente que irão participar. Assim, também aqui, o espaço para uma eventual preparação é muito pequeno, além de quem participa estar na dependência do moderador do respectivo programa.


EXEMPLOS


1. Num programa de rádio, na semana de Natal: presentes um sacerdote católico, um rabino, um líder budista, um pastor da IECLB. O tema não poderia ser outro: o significado do Natal e a sua mensagem. Rapidamente se enveredou pelo tema da paz em sentido mais geral, perdendo-se até a chance de falar do significado em sua origem e em termos teológicos.

2. Num outro momento, na semana de Páscoa: presentes um sacerdote católico, um pastor da IECLB e um líder espírita. Houve espaço para expressar as visões quase opostas do sofrimento de Jesus. A discussão mais profunda ficou reservada para a saída.

3. Num programa de TV: dois pastores da IECLB e dois espíritas estão presentes. A proposta era conversar sobre o que há de comum e diferente entre igreja e espiritismo. Os espíritas foram muito hábeis em apresentar a sua doutrina (não-religiosa, segundo eles) e da sua importância para os seres humanos e a sua saúde. Aos dois pastores não restou outra alternativa senão apresentar a sua igreja e falar do cristianismo, mas não aconteceu um diálogo ou até uma discussão. Foi, muito mais, um diálogo de surdos.

Em outro patamar estão grupos de diálogo inter-religioso. Em Porto Alegre existe um destes grupos. Participam dele um pastor da IECLB, um líder muçulmano, um budista, um hindu, um judeu, um representante das religiões afro, um bahá’í, um sacerdote católico, uma pastora anglicana e um representante da Federação Espírita do Rio Grande do Sul. Esse grupo se reúne uma vez ao mês em reunião-almoço, quando são tratados temas de cada uma das religiões (a título mais informativo) e temas de preocupação comum. Segundo informações de um pastor, esse grupo é convidado muitas vezes coletivamente, em lugar de se fazerem convites individuais às religiões, para eventos públicos.

Nos dois primeiros casos, por sua própria natureza, ocorrem, no máximo, tolerância mútua e respeito recíproco. Aliado a isso, a brevidade do tempo, muitas vezes, leva a uma diluição dos traços característicos de cada instituição religiosa. A bem da paz e do entendimento próprios do momento opta-se por assuntos mais gerais e menos polêmicos.

Já o grupo de diálogo inter-religioso dá um passo a mais. No entanto, como se reúne, em geral, em reuniões-almoço, é provável que assuntos polêmicos não sejam apreciados, a exemplo do que acontece em reuniões-almoço entre empresários tanto no âmbito católico como no luterano: quando os temas são religiosos, eles não são polêmicos.

2. O CONTEXTO RELIGIOSO ATUAL

No Brasil, religiões, especialmente as de origem indígena e africana, durante séculos, viveram sob o teto da Igreja Católico-Romana. Se bem que oficialmente proibidas, permaneceram fortemente enraizadas em práticas religiosas e na consciência do povo, propiciando a criação de identidades religiosas múltiplas. Contribuiu para isso também o fato de que a “cristianização” do continente não veio acompanhada de uma efetiva educação religiosa. Por conseguinte, desde os inícios até hoje, ficaram em primeiro plano a veneração dos santos, lugares de romaria, rituais e objetos religiosos, enquanto o entendimento doutrinário dos conteúdos da fé cristã ficou largamente oculto atrás dessas práticas populares.

Ainda hoje, muitas pessoas se consideram católicas e simultaneamente adeptas de religiões de matriz indígena ou africana, sem verem nisso qualquer incompatibilidade. Contudo, entre autoridades religiosas não-cristãs, especialmente de cunho afro-brasileiro, atualmente há crescente tendência de se manifestarem como religião própria, independente do catolicismo.

Quanto às igrejas evangélicas históricas, dentre elas a IECLB, a maioria dos seus membros demonstra atitude de perplexidade ou ceticismo e mesmo de rejeição com relação às religiões afro-brasileiras e indígenas. No contato com povos indígenas, o COMIN (Conselho de Missão entre Índios) vem realizando uma tarefa importante ao se empenhar por compreensão e entendimento. Recomendamos acolher e acompanhar o processo de reflexão que vem da missão junto aos povos indígenas.

Também no seio das igrejas históricas existem tendências de religiosidade popular, como, por exemplo, a procura de benzedeiras, as quais, usando elementos cristãos, fazem rezas, pronunciam fórmulas e realizam determinados toques físicos. Na classe média urbana, também entre membros da IECLB, não raramente se encontra uma variedade de elementos religiosos de diferentes origens, que introduz no horizonte religioso elementos orientais e esotéricos, entre outros.

Portanto, ao tratar de um diálogo inter-religioso, também se deverá falar de um diálogo “intra-religioso”, isto é, do diálogo de várias linhas religiosas dentro da mesma pessoa. O diálogo inter-religioso, que exige certo grau de clareza sobre a própria posição, poderia contribuir significativamente para o esclarecimento de identidades pouco definidas e múltiplas. Portanto, esse diálogo não apenas desafia a nossa identidade religiosa, mas nos ajuda a percebê-la melhor e, de certa forma, a fortalecê-la.

Diálogo inter-religioso no Brasil há de levar em consideração, como já foi mencionado, em primeiro lugar as religiões afro-brasileiras e indígenas. Mas também o islã, o hinduísmo e formas religiosas esotéricas, presentes, sobretudo, nas grandes cidades, e que ganham espaço e se tornam cada vez mais visíveis entre a intelectualidade. Tal acontece, especialmente, por ocasião de conflitos internacionais como o atentado em 11 de setembro de 2001 nos EUA ou da guerra no Iraque, momentos em que também a opinião pública se interessa pelo islã e quer saber a sua posição em relação à guerra e ao terrorismo.

Conforme o censo de 2000, os cristãos evangélicos entrementes perfazem 15,4% da população, com média maior na Rondônia (27,8% da população) e no Espírito Santo (27,5%), estados onde há também significativa presença da IECLB. Entre os evangélicos, pelo menos dois terços são pentecostais e neo-pentecostais. Chama a atenção que o número dos sem-religião dobrou para 7,3%, com números mais expressivos no Rio de Janeiro (15,5%) e novamente na Rondônia (12,5%). Assim, tornou-se inevitável concluir que o Brasil é um país multirreligioso, e não tanto um país “católico”, não obstante que as pessoas em sua maioria (73,6%) continuem se declarando católicas. O censo de 2010 registrará, presumivelmente, novo crescimento percentual de cristãos evangélicos e diminuição de cristãos católicos, acentuando-se a pluralidade religiosa.

Na IECLB, há membros que vêem no pluralismo interno, na convivência de tendências diferentes (tradicionais, progressistas, evangelicais, carismáticas) dentro da nossa igreja, o desafio ecumênico por excelência. Outros, no que diz respeito ao ecumenismo, pensam mais no diálogo e na cooperação entre igrejas protestantes; e mais outros, na Igreja Católico-Romana como principal parceira ecumênica. Mas além dessas modalidades, já constitui um desafio concreto para a IECLB arriscar ir para além das igrejas cristãs, passando para o diálogo e a cooperação com outras religiões, pois vivemos num país em que a pluralidade cultural e religiosa é uma realidade.

3. BASES BÍBLICAS E TEOLÓGICAS

Ao longo do Antigo Testamento se constata a exclusividade do Deus de Israel (cf. Êx 20.4, a proibição de se ter imagens de Deus; Dn 2 e 7, o anúncio da destruição dos impérios do mundo; Is 60.4; 62.10-12, a salvação de todos os povos em torno de Jerusalém).

No entanto, Israel em toda a sua história sempre conviveu com outros povos e seus deuses e, muitas vezes, de forma pacífica (cf. Gn 14.18-24, Melquisedeque abençoou Abrão; 2Rs 5.19, o comandante do exército da Síria é curado; Jn 1.5 relata com naturalidade como cada marinheiro clama a seu deus).

A partir de uma história pontuada por conflitos, Israel acolhe estrangeiros e os protege ( Ex 23.9; Dt 24.19-21). Em sua teologia se repete que Deus é o criador do universo, de todos os povos (Gn 1.27-28) e que tudo continua pertencendo a Deus (Sl 24.1). Nas grandes visões proféticas, os outros povos estão incluídos (Mq 4.1-5; Is 56.6-7; 60.1-3).

Pode-se constatar uma tensão entre exclusividade e universalidade. Esse fato é um constante desafio no sentido de nos deixarmos envolver com outros povos e suas religiões, sem temermos a perda da nossa própria identidade.

Também no Novo Testamento vamos encontrar essa relação de tensão. A exclusividade se expressa em muitos textos, dos quais citamos alguns: Jo 14.6 - Jesus é o caminho; At 4.12 - o testemunho de Pedro da salvação unicamente em Jesus.

Ao mesmo tempo, encontramos passagens que rompem as barreiras do exclusivismo. São magos do Oriente que vêm ver o menino Jesus (Mt 2.1-2); Jesus cura a filha de uma cananéia (Mt 15.21-28); Jesus elogia a atitude de um samaritano (Lc 10.29-37); Jesus cura o filho de um centurião romano (Mt 8.5-13); Jesus afirma que Deus ouve a oração de um publicano (Lc 18.9-14).

O Novo Testamento não deixa dúvida quanto à salvação em e através de Jesus Cristo. No entanto, caberá ao próprio Cristo, e não aos cristãos, julgar todos os povos (Mt 7.1-5). Olhando a prática de Jesus e dos apóstolos num contexto pluricultural e multirreligioso, é imperioso concluir que somos desafiados a buscar o diálogo e a cooperação com outras religiões.

Muitos cristãos têm tido dificuldades em aceitar a realidade de outras tradições religiosas ou em relacionar-se de forma criativa com elas. Como cristãos, entretanto, acreditamos que o Espírito de Deus opera de formas que não estão ao alcance do nosso entendimento (cf. Jo 3.8). A atividade do Espírito está além das nossas definições, descrições e limitações. Deveríamos tentar discernir a presença do Espírito onde houver “amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gl 5.22-23). O Espírito de Deus está gemendo com o nosso espírito. O Espírito opera no sentido de realizar a redenção de toda a ordem criada (Rm 8.18-27). (Conselho Mundial de Igrejas, Orientações para o diálogo e as relações com pessoas de outras religiões, 1979, p. 8).

Nossa tradição confessional está centrada na pessoa e obra do Cristo que nos propiciou a justificação mediante graça e fé. Portanto, a salvação passa pela paixão e ressurreição de Cristo, Filho de Deus Pai, em quem cremos pelo poder do Espírito Santo. Como pessoas cristãs de tradição luterana, não podemos prescindir dessa afirmação central. Assim, confessamos o Crucificado e o Deus-Trindade, o que marca uma diferença decisiva em relação também às religiões “monoteístas” do judaísmo e do islamismo.

Contudo, não podemos emitir juízo sobre quem tem fé e quem não tem, pois é o Espírito Santo que opera a fé “onde e quando lhe apraz” (Confissão de Augsburgo, artigo 5). É verdade que, para tal, usa os meios da pregação da palavra e os sacramentos. Para nós, como crentes, são referências imprescindíveis. Mas isso não significa que o Espírito não possa atuar de forma inesperada, fora dos limites visíveis da Igreja. Lutero contava com a presença de um conhecimento natural de Deus fora da revelação bíblica (Obras Selecionadas, Vol. 8, pp. 188, 261s, 439; Rm 1.19-20), contudo sem abrir mão da salvação somente por Cristo, o Verbo pré-existente com Deus, através do qual tudo foi criado (Jo 1.1-3; Cl 1.16-17).

Diante desse desafio, é possível enxergar a ênfase luterana no “somente por graça” (sola gratia), com referência à graça de Deus, como algo que, quando bem entendida, vai muito além da nossa percepção doutrinária e das limitações teológicas com as quais a oneramos, como afirma o teólogo luterano da Índia, Paul Rajashekar (apud Junghans 2001, p. 132). Esse depoimento é de especial importância, pois é feito por alguém que vive num país multirreligioso, onde os cristãos somam apenas 2,7% da população. O diálogo inter-religioso, naquele contexto, impõe-se não como opção, mas como necessidade.

Também no Brasil a situação contemporânea não deixa outra opção, pois uma postura exclusivista, que se nega ao diálogo, dá apoio, pelo menos de forma indireta, à intolerância e até à violência entre religiões, embora não necessariamente as promovam. O diálogo inter-religioso propõe-se ao partilhar de sabedoria, ao testemunho de experiências positivas e à promoção de convivência pacífica a partir da fé, inclusive com pessoas pertencentes a outras igrejas e religiões ou que não confessam religião alguma. Com os seus corpos discentes e docentes, mistos em termos de religião, a Rede Sinodal de Educação afirma no seu 5º Plano de Trabalho (2005): “Tendo essa identidade confessional (luterana) definida e atuante, a proposta educacional integra o caráter comunitário, transdisciplinar, ecumênico e participativo no diálogo inter-religioso, ampliando a partilha e a inclusão” (p. 9s). É um belo testemunho da contribuição luterana à paz e ao bem comum e que está em consonância com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996).

A base principal do diálogo é a nossa confiança em Deus, o que é outra maneira de dizer “fé”. Precisamente ao comentar o mandamento “não terás outros deuses” (Êx 22.3), no seu Catecismo Maior, Lutero afirma que

“Deus designa aquilo de que se deve esperar todo o bem e em que devemos refugiar-nos em toda apertura. Portanto, ter um Deus outra coisa não é senão confiar e crer nele de coração. (...) Fé e Deus não se podem divorciar. Aquilo, pois, a que prendes o coração e te confias, isso, digo, é propriamente o teu Deus”. (Livro de Concórdia, p. 394s.)..

Nossa confiança é baseada na boa nova da justificação por graça e fé, sendo que a “salvação pertence a Deus” (CMI 2005, p. 9).
Da nossa parte, proclamaremos, sempre, a palavra do Evangelho, cuja principal palavra é a do amor, em continuidade à palavra de orientação do Antigo Testamento:


E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás”. (Lc 10.25-28)

4. ORIENTAÇÕES GERAIS E ESPECÍFICAS

Na carta pastoral de 24 de outubro de 2005, o pastor presidente Dr. Walter Altmann afirma:

De um lado, como IECLB, temos um claro compromisso ecumênico que deriva de nossa própria confessionalidade luterana. De forma alguma podemos abdicar desse compromisso pelas dificuldades que lhe são inerentes. Naturalmente, ele deve ser regido pelo Evangelho como contido na Escritura e interpretado em nossas confissões, e ser desenvolvido a partir de nossa identidade luterana e sempre em abertura e respeito para com o diferente. De outro lado, quem se engaja nesse diálogo (e todos/as deveriam fazê-lo), em particular quando obreiro ou obreira da IECLB, deverá esmerar-se, ademais, na necessária sensibilidade pastoral, consciente de que suas palavras, seus gestos e suas ações serão vistos como representativos de sua Igreja. Essas questões deverão ser tidas em conta quando aceitamos convites ou deles declinamos. Analogamente, isso também deve ser levado em conta quando convidamos representantes de outras igrejas, denominações, organismos ecumênicos e interdenominacionais para eventos no interior da IECLB, o que ocorre com não pouca freqüência. Também aí podemos ser enriquecidos pela experiência ecumênica, mas igualmente confundidos por influências conflitantes com nossa confessionalidade. (Altmann 2005, p. 2)

As orientações que seguem querem afirmar a abertura das pessoas cristãs evangélico-luteranas para o diálogo inter-religioso, animar a cooperação por paz e justiça e a participação em atos públicos inter-religiosos, inclusive com momentos de oração, desde que não se esconda ou se desrespeite a identidade pertinente a cada um, havendo, nessas ocasiões, um compromisso de colaboração para o bem comum.

Trata-se de orientações que não têm nem pretendem ter o caráter de “decreto”. São frutos de uma proposta do Grupo Assessor de Ecumenismo da Presidência, discutida com os demais Grupos Assessores e a própria Presidência, proposta revisada ao longo deste processo e compartilhada com a Pastora e os Pastores Sinodais. Estas orientações, cuja intenção é ajudar membros, presbíteras e presbíteros e principalmente obreiras e obreiros da IECLB na sua atuação, não podem nem devem encerrar a discussão. Antes, querem fomentar um “processo de reflexão, diálogo e deliberação no interior da Igreja”, conforme consta na carta pastoral sobre “Ecumenismo e diálogo inter-religioso”, de 2005 (Altmann 2005, p. 2).

1. Encoraja-se a criação de grupos de diálogo inter-religioso, com o objetivo de conhecer-se mutuamente e quebrar barreiras de preconceito e medo, criando um clima de respeito e confiança mútuos e de solidariedade.

2. Incentiva-se a aceitação de convites para participar em celebrações inter-religiosas públicas, observando-se:
a) que seja garantida a liberdade de expressão de cada participante dentro da sua tradição religiosa;
b) que seja respeitada a identidade religiosa de cada participante, evitando-se afirmações que venham a desprezá-la;
c) que o evento com participação inter-religiosa não se torne um espaço de demonstração de superioridade ou autopromoção;
d) que seja expressão de um objetivo comum (a paz, a justiça, a reconciliação, a integridade da criação, o bem da cidade, etc.) e que este esteja claro no momento do convite;
e) que não sugira a criação de uma religião sincretista;
f) que não seja um mero subterfúgio religioso.

3. Tal celebração não deveria ser um evento isolado, mas ser fruto de um processo de preparação e de diálogo continuado, onde se trabalham medos, desconfianças e preconceitos, bem como se facilita o conhecimento mútuo.

4. É aconselhável que celebrações inter-religiosas sejam realizadas em espaços públicos, não pertencentes a uma religião específica, para evitar constrangimentos e para não privilegiar uma das religiões presentes. Isto não impede atos de hospitalidade inter-religiosa.

5. Recomenda-se que, nas celebrações inter-religiosas, os obreiros e as obreiras da IECLB usem traje civil com distintivo da IECLB ou colarinho clerical. Se o ato ocorrer numa igreja cristã, também podem ser usados o talar ou a alba com estola.

Porto Alegre, Quaresma de 2009.

Walter Altmann
Pastor Presidente

ANEXOS

1. GLOSSÁRIO

Ecumenismo vem da palavra grega oikoumene, significando “a (terra) habitada”. O sentido principal é geográfico-político (cf. Lc 2.1; At 11.28), às vezes com conotações culturais (cf. At 19.27). No âmbito teológico, destaca-se que a terra pertence a Deus (Sl 24.1), que mandou seu Filho ao mundo (Hb 1.6); que a missão se estende por ele (Mt 24.14; Rm 10.18) e que será sujeito ao julgamento (At 17.31). Ao chamar Nicéia (325) de “concílio ecumênico”, o Concílio de Constantinopla (381) introduziu o termo no uso eclesiástico, designando doutrinas e costumes de validade universal na Igreja. O sentido moderno da palavra foi introduzido pelo filósofo alemão Leibniz, no final do séc. XVII, e designa o empenho pela unidade das igrejas cristãs. É assim que é usado hoje pelas igrejas ligadas ao Conselho Mundial de Igrejas-CMI e ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs-CONIC.

Macroecumenismo é um termo que entrou em uso a partir da chamada “Assembléia do Povo de Deus”, realizada em Quito/Equador em 1992 como articulação própria ao comemorar os 500 anos da conquista do continente americano. Contou, entre outros, com o apoio de entidades ecumênicas, como a Federação Universal dos Movimentos Estudantis Cristãos  (FUMEC) e a Comissão Latino-Americana de Educação (CELADEC). O termo foi divulgado no Brasil, entre outros, pelo monge beneditino Marcelo de Barros Souza e pelo 8º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em Santa Maria/RS (1992). Pretende ultrapassar os limites da fé cristã para incluir outras religiões, como indígenas e afro-americanas.

Diálogo inter-religioso quer resgatar o intuito do “macroecumenismo”, mas prefere reservar o termo “ecumenismo” para o diálogo entre as igrejas cristãs (católico-romana, anglicana, protestantes, pentecostais etc.), conforme o uso moderno da palavra acima exposto. Trata-se, portanto, do diálogo em diferentes níveis – na convivência, na cooperação prática, na experiência espiritual, no diálogo sobre a doutrina, entre outras formas – entre diferentes religiões, como o cristianismo, religiões indígenas, religiões afro-brasileiras (candomblé, umbanda), espiritismo, islã, budismo etc.

Teologias das religiões são tentativas, dentro do cristianismo ou de outra religião (ali talvez sob outro nome), que tentam compreender as possibilidades e formas como Deus atua em outras religiões, e o caráter salvífico deste agir de Deus. Há três posturas básicas, cada uma com muitas variações: 1. “A minha religião é a única religião verdadeira”, o que significa uma postura exclusivista. 2. “Há elementos da verdade em outras religiões, mas a minha está mais próxima da verdade, ela é a mais verdadeira”, o que significa uma postura inclusivista. 3. “Todas as religiões são igualmente verdadeiras”, o que significa uma postura niveladora.

Sincretismo significa a mistura de religiões ou elementos destas, pela incorporação de tais elementos numa religião (por exemplo, a data de Natal no dia 25 de dezembro foi adotada no cristianismo a partir da festa do Deus-Sol, pré-cristã) ou pela criação de uma nova religião a partir de elementos de diferentes religiões (por exemplo, a umbanda reúne elementos africanos, indígenas, espíritas e cristãos). O termo em geral é usado de forma polêmica nas igrejas, querendo defender a pureza da própria religião contra influências de fora. Contudo, numa visão mais sóbria, não há dúvida de que cada religião incorpora ao menos elementos de outras religiões, que recebem um novo significado a partir deste processo.

2. BIBLIOGRAFIA

ALTMANN, Walter. Ecumenismo e diálogo inter-religioso. Carta da presidência aos membros, comunidades e paróquias, setores, departamentos e instituições, obreiros e obreiras da IECLB. IECLB Nº 105899/05. Porto Alegre, 24 de outubro de 2005.
BRANDT, Hermann. „Eu sou o caminho, a verdade e a vida“: A exclusividade do cristianismo e a capacidade para o diálogo com as religiões. Estudos Teológicos. a. 42, n. 2, p. 5-22, 2002.
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Autor(a): Walter Altmann
Âmbito: IECLB / Instância Nacional: Presidência
Natureza do Texto: Manifestação
Perfil do Texto: Manifestação oficial
ID: 12626

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