Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo (Gl 6.2). O apóstolo Paulo escreve estas palavras para uma comunidade que se tornara alvo de uma doutrina legalista. Nesta doutrina, o cumprimento da lei é condição para se alcançar a benevolência de Deus. O esforço pelo cumprimento da lei conduz à autojustificação, por isso parece contraditório que Paulo exorte os gálatas a ‘cumprir a lei de Cristo’.
Cristo tem lei? Não é o próprio Cristo quem liberta do jugo dessa lei da autojustificação, quando dá a sua vida para que as pessoas tenham acesso gratuito e incondicional a Deus? Neste sentido, Cristo é o fim da lei (Rm 10.4). O que acontece é que Paulo, estrategicamente, usa a palavra ‘lei’ para se fazer entender pelos gálatas, mas lhe confere um novo sentido:a lei de Cristo é o novo modo de vida adotado pela comunidade das suas seguidoras e dos seus seguidores.A lei passou a ser o amor. O amor é a base da vida cristã, porque ela está construída sobre o amor de Deus, manifestado em Cristo. É a isto que se refere também o evangelista João quando escreve: Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele (1Jo 4.16) e nós amamos porque ele nos amou primeiro (1Jo 4.19). Portanto, a lei de Cristo é que os seus seguidores permaneçam no amor, porque ‘o amor edifica’ (1Co 8.1). Esta é a nova ordem de vida da comunidade cristã:a edificação por meio do amor.
Permanecer no amor no âmbito de uma comunidade de fé significa concretamente ‘levar as cargas uns dos outros’. Nesta frase, tem grande importância a expressão ‘uns dos outros’. Em grego, o termo aponta com força para a questão da reciprocidade, ou seja, o modo de vida da Comunidade cristã é fortemente marcado pela relação de reciprocidade. Trata-se de uma relação que foge do individualismo e se torna um exercício de constante compromisso de cuidado para com as demais pessoas da Comunidade. Vários textos bíblicos lembram esta relação de compromisso recíproco: Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu (1Pe 4.10); Sede mutuamente hospitaleiros sem murmuração (1Pe 4.9); Consolai-vos uns aos outros, e edificai-vos reciprocamente (1Ts 5.11); Suportai-vos uns aos outros, perdoai-vos mutuamente (Cl 3.13); acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu (Rm 15.7).
A relação de reciprocidade como marca da Comunidade cristã é especialmente explicitada pelo apóstolo Paulo quando descreve a Igreja como corpo de Cristo (1Co 12). Este corpo comunitário, constituído por muitos membros diferentes entre si, inclusive por aqueles que ‘parecem ser mais fracos’ (v. 22), os que ‘nos parecem menos dignos’ (v. 23) e os que ‘não são decorosos’ (v. 23), caracteriza-se pelo espírito de solidariedade. Nele, os membros cooperam, com igual cuidado, em favor uns dos outros; de maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam (1Co 12.25s).
Levar as cargas uns dos outros, cultivar uma saudável relação de reciprocidade, compromisso mútuo, cooperação, mutualidade e solidariedade são valores insubstituíveis no exercício constante de edificação da nossa comunidade de fé e da nossa Igreja na atualidade. O exercício diário destes valores nos coloca em um novo modo de vida, sustentado pelo amor. É o exercício do cumprimento da lei de Cristo.
Uma forma muito concreta de exercitar estes valores da nova ordem de vida é o nosso sistema de contribuição na Igreja. Ele não será coerente com o Evangelho se funcionar com base naquela lei da qual Cristo já nos libertou, que representa um jugo e que nos incita à autojustifi cação. Na nova ordem de vida, o critério para a oferta de dinheiro à Igreja é o espírito de reciprocidade e de solidariedade, ou seja, a gente contribui para cooperar com as demais irmãs e os demais irmãos na missão de edificar a Igreja de Cristo. Essa cooperação acontece em um espírito de justiça, para que a carga não seja leve para alguns e pesada para outros. É como ensina o apóstolo Paulo no contexto da campanha realizada em favor da comunidade empobrecida de Jerusalém: Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade, suprindo a vossa abundância no presente a falta daqueles, de modo que a abundância daqueles venha a suprir a vossa falta, e assim haja igualdade. Como está escrito: o que muito colheu, não teve demais; e o que pouco colheu, não teve falta (2Co 813-15).
Solidariedade: fortalecer, ajudar, firmar, consolidar
A palavra solidariedade tem como raiz a partícula solid. Basta acrescentar um ‘o’ para termos o seu primeiro derivado. Para a palavra sólido, os dicionários têm a seguinte definição: qualquer corpo que tenha consistência; que não é foco, que não se deixa destruir facilmente; ou algo firme, inteiro, pleno, resistente. Pois bem, o sentido de solidariedade é construído a partir destes significados. Equivale a dizer que exercitar a solidariedade é oferecer algo sólido, concreto, que não é oco (vazio), inteiro, pleno e resistente.
Há também um verbo derivado de solid: solidar. Significa: tornar sólido, solidificar, tornar íntegro e firme, consolidar, soldar, fortalecer, ajudar a estabelecer-se. Este verbo torna o significado de solidariedade ainda mais interessante: trata-se de uma ação realizada em favor de alguém no sentido de fortalecer, ajudar este alguém a se tornar firme, consolidado e solidificado, inteiro, resistente. Ajudar alguém a estabelecer-se, a recuperar a sua integridade.
Um terceiro aspecto interessante da etimologia de solidariedade é que o verbo solidar é uma forma evoluída do verbo ‘soldar’, que provém do latim solidare. Soldar é promover a união íntima de duas ou mais peças, formando um só corpo, unir(-se) formando um todo.
Este breve estudo etimológico ajuda a compreender o conceito solidariedade na sua radicalidade (a partir da sua raiz): é a ação realizada em favor de alguém fragilizado no sentido de ajudar a pessoa a se recompor, fortalecer, tornar resistente, inteiro, consolidado.
O verbo ‘soldar’ confere ainda maior plasticidade ao termo solidariedade: se alguém está ‘quebrado’ ou quebrantado, em ‘cacos’ ou despedaçado, esta pessoa necessita de solidariedade para se tornar novamente inteira e restabelecida. Neste sentido, a solidariedade tem o seu fundamento no próprio Deus, pois o Senhor sara os de coração quebrantado (Salmo 147.3).
P. Dr. Rodolfo Gaede Neto,
graduado em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, também fez Mestrado e Doutorado em Teologia pela instituição, com pesquisas na área da diaconia, exerceu Pastorado na IECLB entre 1979 e 1996. Atua como Professor na Faculdades EST e Coordenador do Bacharelado em Teologia
Fonte: Jorev Luterano outubro 2014