Luteranos em Contexto



ID: 2650

Somente Cristo

Confessionalidade Luterana

  Em 1947, o Teólogo metodista Philip S. Watson escreveu uma introdução à Teologia de Lutero, à qual deu o título Deixai Deus ser Deus! Com essa expressão, estava dando nova versão à explicação dada pelo reformador ao primeiro mandamento do Decálogo: ´Devemos temer e amar a Deus e confiar nele sobre todas as coisas´. Palavra-chave para entendermos a fé cristã é o conceito ´revelação´. Nela está dito como podemos ficar sabendo de Deus. Em 1518, Lutero afirmou que quem procura entender Deus a partir das coisas criadas, da Criação, não o entende corretamente. Só consegue entender Deus quem o compreende a partir do seu rosto voltado visivelmente para o mundo, no sofrimento e na cruz. A nós, humanos, sempre parece mais fácil entender Deus a partir do seu rosto voltado visivelmente a partir da Criação, imponente. Aqui, o lado oculto de Deus, o seu poder, a sua sabedoria, a sua justiça e a sua bondade se tornam claramente visíveis. Pelo menos é o que pensa o ser humano quando estuda as leis da natureza ou a própria história: sempre de novo se depara com Deus.

   Lutero não nega de todo essa possibilidade. De fato, o ser humano deveria poder reconhecer Deus quando observa as suas obras. Contudo, Lutero vai acompanhar o apóstolo Paulo quando esse reflete sobre a situação dos gentios, dependentes de uma revelação natural: ´Tendo-se por sábios, tornaram-se loucos´ (Romanos 1.22). A tentativa de conhecer Deus a partir da Criação mostra-se enganosa. Quem a segue engana-se a si mesmo. Lutero a designa de ´Teologia da glória´. Ela não corresponde à intenção de Deus. Quem, então, corresponde à intenção de Deus? Aquele que reconhece o Deus visível e voltado para o mundo, assim como se torna perceptível sob sofrimento e cruz. Essa afirmação nega a anterior e permite que se verifique o que ensina a fé cristã a partir da revelação de Deus em Jesus Cristo. Deus quer ser reconhecido no sofrimento e na cruz de Jesus.

O sofrimento e a cruz de Jesus põem fim a toda a especulação acerca de Deus. Não devemos especular acerca dos mistérios de Deus, pensa Lutero. Eles são impenetráveis. Deus não se dá a conhecer através dos seus mistérios, mas de maneira visível. Quando Deus se revela, não nos possibilita grandes especulações, mas leva-nos a toda a profundidade da miséria humana. Como Deus mostrou o seu rosto na profundidade da miséria humana, temos condições de falar a seu respeito. Deus se revelou em Jesus Cristo, em sua vida, paixão, morte e ressurreição, por isso podemos falar a seu respeito, por isso sabemos onde encontrá-lo.

   Na cruz de Jesus, percebemos a humanidade de Deus, a sua fraqueza, a sua loucura. Assim ele quer ser encontrado. Ela é o que Deus revelou aos seres humanos a seu respeito. Com isso, ele não quis negar que seja possível um conhecimento de Deus a partir da natureza, da Criação. No entanto, quando tomamos esse ponto de partida, ainda não estamos falando daquele Deus do qual fala a fé cristã: o Deus presente em Jesus Cristo. Quem quer deduzir Deus da Criação confia em si mesmo, em sua intuição e perspicácia e não deposita sua confiança em Deus. Ele próprio estabelece o critério do conhecimento de Deus ao invés de aceitar o critério por Ele estabelecido: a cruz. Foi decisão livre e soberana de Deus querer ser reconhecido a partir do sofrimento, querer sabedoria que brota do sofrimento visível. Deus quer que o adoremos como aquele que está oculto no sofrimento. Para isso, Lutero baseou-se em 1Coríntios 1.21: Pois Deus, na sua sabedoria, não deixou que os seres humanos o conhecessem por meio da sabedoria deles. Pelo contrário, resolveu salvar aqueles que creem e fez isso por meio da mensagem que anunciamos, a qual é chamada de ´louca´. Conhecimento autêntico de Deus só ocorre quando Deus dá ao que crê aquilo que lhe quer mostrar, deixando Deus ser Deus, assim como Ele o quer. Daí resultam as quatro afirmações categóricas de Lutero em relação a Cristo, à fé, à graça e à Escritura. Sobre elas vamos refletir no Jornal Evangélico Luterano.

  Lutero acentua que Cristo vem a nós pela fé, por meio da pregação do Evangelho. Tudo isso, contudo, é ação de Deus. É Ele quem produz a fé e nos torna acessíveis ao Evangelho, por obra do Espírito Santo. Nada é resultado do esforço humano. Assim, no centro do seu pensamento está o falar sobre Cristo. Essa afirmação não é consequência da piedade da sua família. Em sua juventude, viu uma imagem de Cristo esculpida em arenito: Cristo está sentado sobre as nuvens ou sobre o arco-íris para julgar os vivos e os mortos, por isso tem em sua boca uma espada de dois gumes e dos seus olhos saem raios chamejantes. Desde então, Cristo pareceu-lhe tão severo como Deus. Lutero não via em Jesus o amor do Deus que perdoa, mas somente a mensagem do juiz severo.

  Entre 1513 e 1515, Lutero passou a ter uma nova compreensão da pessoa de Cristo. Nesse período, ele passou a entender os conceitos justiça e santificação não mais como exigência, mas como dádiva de Deus que é aceita em/na fé. A temática do significado de Cristo para a vida do que crê levou Lutero a interpretar a Bíblia em trilho diverso daquele trilhado pela Teologia de seus contemporâneos. A Bíblia ensinou-o a compreender a cruz de Cristo de maneira nova. O amor de Deus e a ira de Deus revelam-se simultaneamente nela, sem que um elimine o outro. Deus não tolera o pecado. Ele o castiga em sua ira. O que pretende, contudo, não é o castigo, mas a vida do pecador. O objetivo final de Deus é o amor. A sua ira lhe está submetida. Essa imbricação de ira e amor divinos, Lutero vê no crucificado. Podemos verificá-lo na vida de Jesus. Na cruz, o Filho amado de Deus assume sobre si a ira de Deus em nosso favor e nós somos beneficiados pela revelação da ira e do amor de Deus. Jesus é a dádiva de Deus em nosso favor, por isso ele é a nossa vida e a nossa bem-aventurança. Cristo, o juiz, carregou sobre si o juízo.

   A concepção de que o ser humano pode apresentar ou oferecer compensação por causa da sua culpa está presente em quase todas as religiões. Como culpa pode ser redimida ou compensada? Também no cristianismo surgiu e continuam surgindo sistemas de compensação. Tais sistemas de compensação acabam por encobrir o Evangelho. Neles, o ser humano quer ele próprio reconciliar-se com Deus. Deve trabalhar para que Deus se lhe torne propício. Nesse sentido, o ingresso em um mosteiro era visto como o maior sacrifício humano possível na busca por tal reconciliação. Foi o que também Lutero fez. No entanto, ao deparar-se com Romanos 3.28, teve acesso ao centro do Evangelho: ´Concluímos, pois, que o ser humano é justificado pela fé, independentemente das obras da lei´. O sofrimento de Cristo em nosso favor é obra única e exclusivamente de Deus. Lutero foi ainda mais adiante: também a apropriação da salvação é obra exclusiva de Deus. A nossa fé nada pode contribuir para o que Cristo fez por nós em seu sofrimento por nós e por nossa causa. A ação humana em nada contribui para a obra redentora de Deus. Ela é dele e só dele!

   Lutero também dá novo sentido à reconciliação. Geralmente, entendemos por reconciliação e sacrifício a dádiva que trazemos até Deus para que Ele mude de opinião em relação a nós. Para Lutero, isso é ofensa a Deus. O amor de Deus já está presente em tudo. Jesus não provoca uma mudança na postura de Deus. Ele já é mudança da postura de Deus. Ele já é consequência do amor de Deus. A sua pessoa e a sua obra são ato de Deus.

   Assim, em Cristo, Deus está lutando por nós, tão grande é o seu amor. Lutero percebeu Cristo lutando com o diabo e com todos os tiranos que nos querem afastar de Deus. Ele trava essa luta em favor do ser humano no ser humano. A finalidade da obra de Cristo é a nossa justificação. Lutero não consegue ver a morte e a ressurreição de Jesus apenas como fatos do passado. Morte e ressurreição são presente. Isto é, todos os cristãos estão envolvidos na morte e na ressurreição de Jesus. Morte e ressurreição de Jesus são fato único, mas Gólgota, onde Jesus morreu, não é mero fato histórico: de nada vale, se creio que Cristo uma vez existiu, morreu e ressuscitou. O significado de Cristo depende totalmente do fato que, neste exato instante, ele é meu Senhor e Redentor, que me está remindo da morte e do temor do inferno.

   ´Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, nascido do Pai desde a eternidade, e também verdadeiro homem, nascido da Virgem Maria, é meu Senhor, que me remiu a mim, homem perdido e condenado, me resgatou e salvou de todos os pecados, da morte e do poder do diabo, não com ouro ou prata, mas com seu santo e precioso sangue e sua inocente paixão e morte, para que eu lhe pertença e viva submisso a ele, em seu reino, e o sirva em eterna justiça, inocência e bem-aventurança, assim como ele ressuscitou da morte, vive e reina eternamente. Isso é certissimamente verdade´ (Martim Lutero).

P. Dr. Martin Norberto Dreher
(cursou Teologia na Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, doutorou-se em História da Igreja pela Ludwig-Maximilians Universtät, em Munique, foi Professor de Teologia e atuou no Pastorado de várias Paróquias da IECLB. Com diveras obras vinculadas à história da Reforma do século XVI, história da Igreja na América Latina, além de história da colonização e imigração na América Latina, principalmente germânica, também foi Professor de História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo)
Fonte: Jornal Evangélico Luterano, 2012 março
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Não há pecado maior do que não crermos no perdão dos pecados. Este é o pecado contra o Espírito Santo.
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