Anseio por justiça
Somente a graça corresponde à afirmação central da pregação presente na Escritura Sagrada. A sua síntese mais didática está contida nas epístolas do apóstolo Paulo. Pregar somente a graça, porém, não foi acolhido com naturalidade muitas vezes. O Novo Testamento traz o eco de vozes que tinham dificuldades com o anúncio paulino, por exemplo, em 2Pe 3.15s. Também as pessoas, a partir da era moderna, passaram a ter grandes dificuldades com esta pregação. Pode-se afirmar que, em todas as épocas, o Evangelho da justificação da pessoa pecadora por graça e fé causou escândalo. O próprio Paulo escreve que a palavra da cruz é loucura para os gregos e escândalo para os judeus (1Co 1.23).
A justiça está entre as virtudes mais consideradas. Mesmo o senso comum concorda que uma pessoa justa e uma sociedade justa estão entre os maiores bens. Também a tradição bíblica louva a justiça. O Antigo Testamento proclama o amor à justiça. Por meio da lei e da justiça, as relações humanas seriam organizadas de tal modo, que todas as pessoas envolvidas nessas relações poderiam ter o seu direito garantido, sem precisar fazê-lo à custa dos direitos dos outros. A justiça é compreendida como aquilo que dirige o conjunto das relações entre as pessoas, garantindo a preservação da vida humana. Onde reina a justiça, ali nasce a paz.
Conhecimento que liberta
Com base no Salmo 51, Lutero afirmou o seguinte O conhecimento de Deus e do ser humano é a verdadeira e divina sabedoria teológica, mas é o conhecimento de Deus e do ser humano à medida que se relaciona ao Deus, que justifica, e ao ser humano, que é pecador. Portanto, o objeto da Teologia, na verdade, é o ser humano culpado e condenável e o Deus que justifica e é redentor. Isso quer dizer que, para ele, o interesse principal da pregação e da Teologia é o Deus que age, trabalha, faz a sua obra, que se dirige às pessoas e se preocupa com elas em sua condição lastimável. Isso tem a ver com a palavra de Deus. Deus age falando a sua palavra, uma palavra que cria do nada e faz nascer vida onde não há vida.
A isso, Lutero relaciona o Cântico de Maria ´Deus fez grandes coisas em mim, ele que é poderoso´. Para o Reformador, isso quer dizer que ninguém faz coisa alguma, somente Deus faz tudo. Ele age em todas as coisas. Todas as obras das criaturas são obras de Deus. Lutero explica também o termo todo-poderoso, presente no Credo Apostólico. Deus é poderoso porque, em tudo, por meio de tudo e acima de tudo, tudo é feito exclusivamente por seu poder. Esta é a razão para que Deus seja adorado.
Aqui se manifesta a, assim chamada, ´descoberta´ da Reforma. Lutero angustiou-se ao extremo até descobrir o sentido da expressão ´justiça de Deus´ na Escritura Sagrada. Lutero havia aprendido que a justiça de Deus é aquela que Deus exige que seja cumprida pelo ser humano. Com isso, apesar de todos os esforços para cumprir essa justiça, Lutero acabou em desespero. Foi levado a odiar a Deus, pois exigia dele uma coisa que não podia cumprir. Em meio ao desespero, tentou compreender o que o apóstolo Paulo chama de ´justiça de Deus´. Tinha à sua frente o versículo Eu não tenho vergonha do Evangelho de Cristo, pois é um poder de Deus para a salvação de todos os que creem. Nisto é revelada a justiça que tem valor perante Deus, à qual vem de fé em fé (Rm 1.16s).
Conduzido por essas palavras, chegou à compreensão de que Paulo entende por justiça de Deus aquela justiça que Deus dá de graça. A justiça que o próprio Deus cria quando tem misericórdia das pessoas e as torna justas pela fé. Ao mesmo tempo, Lutero entendeu outras expressões da Escritura: poder de Deus é o poder com o qual Deus torna as pessoas poderosas; sabedoria de Deus é aquela pela qual Ele as faz sábias. Em todos esses casos, Deus é quem dá essas qualidades às pessoas. O que podem fazer as pessoas? Deixar que essa ação divina ocorra em suas vidas: somente a graça!
Deus faz todas as coisas
O que chamamos justificação por graça e fé tem na sua base o seguinte conhecimento: Deus faz todas as coisas e o faz de forma ampla. Começa criando de forma continuada. Prossegue agindo na obra salvífica de Jesus Cristo e continua atuante por meio da obra do Espírito Santo.
Pode parecer muito simples e sem novidade alguma dizer que uma Teologia tem a Deus e sua ação no centro. Isso, no entanto, não era tão natural assim naquele tempo. Podemos perguntar, também hoje, até que ponto a Igreja e a Teologia têm claro que, em primeira instância, Deus é quem está em ação? Em sua época, Lutero perguntava ´Como posso ter um Deus da graça e do amor?´ Na espiritualidade e nas práticas de fé daquela época, queria-se obter e chegar a Deus por meio das mais distintas obras. Essa espiritualidade estava orientada no ser humano e não em Deus. Na descoberta da Reforma, é fundamental a compreensão de que Deus faz tudo, por isso a explicação do Primeiro Mandamento, no Catecismo Menor, Devemos temer, amar e confiar em Deus acima de todas as coisas.
Que salvação é esta que o Deus que justifica dá gratuitamente às pessoas? Uma vez, Lutero definiu o ser humano como simples matéria de Deus para a vida em sua ´forma futura´, se referindo à pessoa na glória eterna. No entanto, isso não é apenas consequência do juízo final, pois a salvação está presente já, agora, em todos os momentos, através do Espírito Santo, o Santificador, que torna as pessoas santas. A salvação de Deus começa já, aqui e agora. O Espírito Santo, que faz nascer a fé, a leva a produzir frutos, consola a pessoa em meio ao sofrimento e ao risco da morte iminente.
A santificação tem um grande significado para cada grupo de pessoas, para cada comunidade humana. Isso porque o Espírito Santo mata no crente o egoísmo, a inveja, o desejo de vingança e a ânsia pelo poder. Lutero conclui que justamente a pessoa crente pode ser alguém correta no mundo, ou seja, a pessoa, conduzida pelo Espírito Santo, pode agir na esfera pública resistindo ao seu interesse próprio, sem querer vantagem para si mesma. A salvação da pessoa, que Deus produz pelo Espírito Santo, está direcionada para a sua plena realização na eternidade, mas, ao mesmo tempo, já é salvação nesta vida, para cristãos e não cristãos, através de Cristo.
Somente a fé é uma afirmação que precisa ser permanentemente sustentada, porque tudo o que Deus outorgou à humanidade, através de Jesus Cristo, é dádiva incondicional. A justificação decorre exclusivamente da bondade e misericórdia de Deus, sem nenhum mérito ou dignidade por parte da pessoa. Por outro lado, não se pode compreender somente a graça no sentido que a pessoa agraciada permaneça intocada em sua existência. Por certo, a graça corresponde à misericórdia dirigida por Deus à pessoa em relação a qual Ele é gracioso. A misericórdia constitui a própria essência de Deus. A sua graça o impele por completo, de maneira que, não só quem dela é alvo, mas também o próprio Deus é por ela determinado. Deus é gracioso de coração. Ele é gracioso de coração porque é inteiramente movido pelo amor.
Amor incondicional
O amor, porém, não pode ser merecido. O amor se dá incondicionalmente, do contrário não é amor. Quando Deus tem misericórdia da pessoa pecadora, o seu amor não se dirige a alguém amável ou digno de amor, mas a alguém que o rechaça e de modo algum se mostra amável. Conforme Lutero, o amor de Deus não vai ao encontro do que é digno de ser amado, mas, antes de tudo, cria o que é digno de amor. Na pessoa pecadora, não existe algo de bom que possa contribuir para a sua justificação. Mesmo se quisesse, não poderia merecer o amor de Deus. Ela somente o vivencia por graça. Portanto, já que a graça exclui toda colaboração humana, ela não pode ser compreendida como um poder especial divinamente atribuído, que deixa a pessoa em condições de colaborar para fazer-se agradável a Deus e tornar-se merecedora de algo. A graça de Deus não se enquadra nos esquemas do mérito e da colaboração.
O que se exclui na expressão somente pela graça? Todo esforço, colaboração e mérito, toda participação da pessoa em sua justificação. Isso faz bem à pessoa. Promove a sua humanidade. Ao invés de sujeitar-se a esforços, exigência de produtividade, cobrança por resultados, méritos, a pessoa se descobre presenteada. Ser presenteado traz alegria. Da mesma forma, presentear traz alegria. Não são exigidos resultados ou produtos, mas a alegria de ambos os lados se torna possível quando a graça se manifesta: alegria da parte do Deus que justifica e da parte da pessoa justificada. O Deus, que justifica, se alegra com a pessoa à qual concede a sua graça e esta se alegra com o Deus justificador. A alegria exclui toda e qualquer contabilidade e compensação. A alegria impede que, de algum modo, a graça seja contabilizada ou compensada. Isso é decisivo para um correto entendimento a respeito do arrependimento. Quando a graça acontece, acaba toda e qualquer compensação, pois a graça de Deus - somente a graça - sempre é graça em abundância.
P. Dr. Ricardo Willy Rieth
(Pastor ordenado da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), é graduado em Teologia e Ciências Sociais e pós-graduado em História da Igreja. Entre 1992 e 2010, foi Professor na Faculdades EST, em São Leopoldo, RS. Desde 2000, é Professor na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas/RS, ocupando atualmente a função de Pró-Reitor de Graduação. Desde 1993, integra, e atualmente coordena, a Comissão Editorial Obras de Lutero. Também é membro do Comitê Científico do Congresso Internacional de Pesquisa em Lutero)
Fonte: Jornal Evangélico Luterano, 2012 abril
- Portal Luteranos