O VULTO DE MARTIN LUTHER
Discurso proferido a 31 de outubro de 1953 por ocasião do ato comemorativo do Dia da Reforma, realizado por Igrejas Evangélicas no Auditório Araújo Viana em Porto Alegre/RS1.
Ao meio-dia de 31 de outubro de 1517 um modesto monge agostianiano se dirigiu à Igreja do Castelo em Wittenberg para afixar na porta 95 teses referentes a um abuso que vinha sendo praticado na Igreja com a venda de indulgências. Esse fato constitui um momento histórico de projeção universal: Marca ele o ponto inicial do movimento que não somente haveria de reformar a Igreja mas deu nova feição ao mundo e à vida dos homens.
Certamente nós hoje vivemos em época diferente, época que nos dirige as suas perguntas e que exige a nossa resposta.
Mas há fatos e acontecimentos que não pertencem somente a uma determinada época, mas que são de importância decisiva para todos os tempos. Já é importante conhecer a história do Reformador: Como ele, um jovem estudante, abandonou o caminho iniciado para uma carreira brilhante, contra a vontade dos agostinianos, tornando-se monge; como ele, por ordem de seus superiores, empreende uma viagem a Roma, cheio de esperanças de conhecer a Cidade santa e como regressa, pensativo, decepcionado; como ele, consagrado a sacerdote e promovido a doutor de teologia, presta o juramento, a mão deitada sobre a Bíblia, de pregar e ensinar sempre fiel e puramente a caríssima Sagrada Escritura; como esse jovem professor de igreja na Universidade de Wittenberg está à procura da verdade; como a verdade lhe está acima de tudo, proclamando-a publicamente sem perguntar pelas consequências, como não conhece medo nem respeito humanos; conhece uma única autoridade, e a ela obedece em tudo: à consciência presa na palavra de Deus. Ele sozinho se empenha em uma luta gigantesca com os maiores poderes do seu tempo, o poder do Papa e do Imperador, e nesta luta demonstra coragem e paciência, não se deixando amendrontar: Sabia que estava lutando pela verdade e a verdade vencerá. A sua própria pessoa lhe era de nenhuma importância.
Tratava-se sempre e somente da verdade, não de uma verdade humana, mas da verdade que é Jesus Cristo.
Por isso não se pode tratar para nós evangélicos, ao comemorarmos o Dia da Reforma, de glorificar e enaltecer a pessoa do Reformador; porque a causa da Reforma, a causa evangélica, é unicamente a verdade, o Evangelho de Jesus Cristo.
Não conhece Martin Luther quem o vê somente como o grande herói ou até revolucionário que teve a coragem de enfrentar um mundo inteiro, lutando pela liberdade do homem: Luther não quer ser herói e ele não lutou pela liberdade humana; ele não é o primeiro grande defensor dos direitos individuais da pessoa humana. E nem tampouco é nos permitido — porque seria contra a verdade — ver em Martin Luther o grande homem religioso, o Santo da Igreja. Mas, sob qual categoria devemos então encarar e compreender esse vulto singular do Reformador? O que era Martin Luther?
Há um quadro de um pintor contemporâneo e amigo do Reformador, Lucas Cranach; neste quadro vemos Martin Luther pregando do púlpito de sua Igreja em Wittenberg: diante de si a Bíblia aberta, ele fala à comunidade, mas a sua mão direita está estendida, indicando para o centro, e lá no centro encontra-se a cruz. Essa é a única legítima categoria, na qual podemos compreender o Reformador: Ele é evangelista, e outra cousa não queria ser — servidor do Evangelho, servo de Jesus Cristo. A palavra que o apóstolo Paulo escreveu à sua comunidade: Nada me propus saber entre vós senão a Jesus Cristo, e esse crucificado2 — ela define também o que era o Reformador. Quantas vezes disse claramente: Não se trata de mim, do meu nome, da minha pessoa; não tenho em meu poder nenhuma verdade especial, com a qual vos poderia ajudar; tenho unicamente uma mensagem, que me foi confiada a anunciar: o Evangelho de Cristo, o crucificado.
Martin Luther, perguntando unicamente pela verdade do Evangelho, passo a passo foi impelido a lutar contra a Igreja Romana. Em nenhum momento de sua vida, porém, Martin Luther cogitou em fundar uma nova Igreja. Ele sabia: A Igreja não é uma instituição humana que pudesse ser fundada por homens. A Igreja foi instituída uma vez para todas por Jesus Cristo mesmo. Mas esta foi a luta do Reformador: que a Igreja deixasse de servir a interesses humanos, que ela tornasse a ser a Casa de Deus, edificada sobre o fundamento posto não por homens, mas por Deus mesmo: Jesus Cristo. É o maior mal-entendido da Reforma a opinião que para Luther se houvesse tratado de livrar o homem da Igreja, opinião tão vulgar entre protestantes que, cultivando a sua própria religiosidade individual, se consideram livres da Igreja. Para Luther a Igreja era, como lhe dizia o Novo Testamento, o Corpo de Cristo — como poderia alguém pertencer a Cristo senão como membro do seu corpo? Isolar-se da Igreja era para Luther separar-se de Cristo.
Lutando contra Roma ele não lutou contra a Igreja, mas pela Igreja. E tudo. que tinha a opor às autoridades eclesiásticas, não o disse na opinião de que os homens não necessitassem da Igreja, mas ao contrário: Por necessitarem da Igreja, por não poderem ser cristãos sem ela, por isso a Igreja deve ser verdadeiramente Igreja de Jesus Cristo, na qual Ele reina por sua palavra e os sacramentos, e não pode ser uma instituição entregue à vontade humana e destinada a glorificar o homem e a enaltecer a sua autoridade. Martin Luther, de fato, lutou pela liberdade, mas unicamente por essa liberdade do Evangelho, que dele fosse toda autoridade na Igreja, para que os homens, ouvindo e aceitando o Evangelho, se tornassem livres de toda autoridade humana para entregar-se à única e legítima autoridade na Igreja: ao Senhor Jesus Cristo.
A obra da Reforma, de Martin Luther e seus colaboradores, foi esta de pregarem novamente o Evangelho na Igreja: Que por Jesus Cristo somos filhos de Deus, e como filhos temos acesso a Deus sem quaisquer intermediários. Que Deus mesmo é o nosso único verdadeiro Senhor, do qual inteiramente dependemos e perante o qual somos responsáveis, e este Deus é o nosso Pai que nos ama. Essa é a liberdade evangélica, e outra Luther não conhecia: A liberdade de sermos filhos de Deus. Não mais necessitamos de sacerdotes nem santos que nos pudessem ajudar a preparar o caminho para Deus. Jesus Cristo é o caminho, e ninguém vem ao Pai senão por Ele. Nossa é a responsabilidade de ficarmos neste caminho. Nenhum outro aqui pode interceder por nós. Esta é a dignidade do cristão evangélico, que ele, ele mesmo, ele pessoalmente, se sabe responsável por si perante Deus. Assim Luther não diminuiu, mas aumentou a responsabilidade de cada cristão, e não podia ser de outra maneira, porque assim corresponde ao Evangelho. Se Jesus Cristo diz: Segue-me — então eu mesmo tenho que decidir-me, eu mesmo tenho que responder, e não posso ser substituído por ninguém.
Cristo, o crucificado — Ele é o centro da Reforma. Servo de Cristo — é o que foi o Reformador Martin Luther. E a mensagem central da Igreja da Reforma é mensagem da cruz: A tal ponto Deus amou o mundo...3 Cristãos evangélicos não procuram a sua própria honra e pessoa, mas com gratidão reconhecem a Cristo como seu verdadeiro Senhor; cristãos evangélicos não confiam em si mesmos, não se entregam à ilusão de serem melhores do que outros, mas sabem: Vivemos unicamente da Graça e Misericórdia de Deus, por isso não podemos orgulhar-nos de nós mesmos; só Cristo o crucificado nos pode ajudar; sem Ele estamos perdidos e condenados; mas a Ele podemos chegar-nos com todas as nossas perguntas, com todo o nosso pecado, com toda a culpa que está em nossa vida. Sim, podemos chegar à Cruz, para ouvirmos bem pessoalmente dita a nós a palavra do Senhor: Eu te remi, não temas, tu és meu4.
Cristãos evangélicos, comemorando a data da Reforma, fazem sua a confissão de Martin Luther:
Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, gerado do Pai desde a eternidade, e também verdadeiro homem, nascido da virgem Maria, é meu Senhor, que me remiu a mim, homem perdido e condenado, resgatou e salvou-me de todos os pecados, do poder da morte e do diabo ; e isso não por meio de ouro e prata, mas sim, por seu santo e precioso sangue, e por sua inocente paixão e morte, para que eu lhe pertença e viva submisso a Ele no seu reino, e lhe sirva em eterna justiça, inocência e beatitude, assim como Ele ressuscitou dos mortos, vive e reina eternamente.
Assim o creio firmemente5.
Notas:
1. Publicado em: Estudos Teológicos, Studien und Berichte, [São Leopoldo, Rotermund] 1953, 61-64.
2. 1 Cr. 2.2.
3. João 3.16.
4. Is 43.1.
5. Catecismo Menor de Lutero, explicação do 2o artigo do Credo Apostólico.
Veja:
Testemunho Evangélico na América Latina
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS