Em 1520, Martim Lutero escreveu um livro intitulado: À nobreza cristã da Nação Alemã acerca do melhoramento do estado cristão. É a primeira grande manifestação política do reformador. Nesta obra Lutero apela aos príncipes e a todos os governantes da época para se empenharem por mudanças estruturais na Igreja e na sociedade. É impressionante observar como Lutero ousa ser concreto em suas propostas: deve ser abolido o pagamento de certos impostos; deve ser achada uma solução para acabar com a mendicância; precisa acontecer uma reforma do ensino desde a universidade até a escola de primeiro grau. Eis apenas algumas exigências dirigidas por Lutero, ao poder público.
O livro acima citado, juntamente com outros escritos posteriores inaugurou uma nova maneira de relacionar fé e política, Igreja e Estado. Na época dizia-se que o poder eclesiástico era superior ao poder secular. A autoridade eclesiástica máxima seria, ao mesmo tempo, a maior autoridade política do mundo. Estavam, nesta idéia, as principais causas que emperravam qualquer tentativa de reforma. Enquanto a Igreja não queria mudanças, as autoridades seculares não estavam autorizadas a promovê-las.
Lutero pensa de modo diferente. Para ele, o Estado não está sujeito à tutela da Igreja. O Estado tem responsabilidade própria. É preciso cuidar para não misturar as competências. A confusão de Igreja e Estado resulta em regime teocrático que, segundo Lutero, é contrário ao evangelho. A pregação da palavra de Deus é uma coisa; governar uma nação é outra coisa. A confissão luterana faz questão de fazer esta distinção.
Mas Lutero também seria mal entendido se alguém concluísse que religião e política nada têm a ver uma com a outra. As funções da Igreja e do Estado não podem ser confundidas. Mas também não devem ser separadas. A idéia de que assuntos políticos não interessam à Igreja não pode apoiar-se em Lutero. Se esse fosse o caso, por que ele teria escrito o seu livro à nobreza cristã...? Assuntos de fé e de política devem ser distinguidos, porém jamais isolados. As razões são muito simples. Todos sabemos que não há um setor sequer de nossa vida que esteja isento de aspectos políticos. A política permeia tudo. Uma Igreja a-política não existe. Mas não apenas isto é, para Lutero, o argumento decisivo. A necessidade de interessar-se pela política decorre do fato de Deus ser Senhor não só da Igreja. Ele é Senhor de todo o mundo. Perante ele são responsáveis todas as autoridades políticas deste mundo, sejam elas cristãs ou não-cristãs. Deus exige a justiça, o esforço pelo bem-estar, pela paz e pela preservação da criação. É isto o que a Igreja deve lembrar às autoridades políticas, assim como Lutero o fez em seu livro acima mencionado.
A nossa confissão luterana, pois, proíbe a fuga para uma atuação supostamente a-política. Isto seria restringir o Senhorio de Deus. Seria prejudicar a validade da vontade divina que tem em vista o bem-estar de todas as suas criaturas. Deus governa também através de uma boa e justa ordem social. Por isso cabe à Igreja insistir na responsabilidade das instâncias políticas e de todos os cristãos. As esferas políticas e religiosas devem permanecer distintas e, ainda assim, correlacionadas. É dever do Estado promover a justiça e o bem estar geral do povo. É dever da igreja proclamar o Evangelho e os compromissos dele resultantes, inclusive para o poder estatal. É o que Lutero nos ensina.
P. Valdemar Gaede