Luteranos em Contexto



ID: 2650

Carta de Martinus Eleutherius do século XVI

01/09/2007

 Martinus Torneirus

Meu amigo e tocaio! Desejo-lhe a graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Obrigado por sua carta que recebi no mês passado, encaminhada a mim pelo Jornal Evangélico Luterano. É verdade que a distância entre nós é grande. Separam-nos quase cinco séculos. Vivi na Alemanha do século XVI e você vive no Brasil do século XXI. São mundos diferentes, mas quando o assunto é o Evangelho, essa distância já não conta. Alegro-me pelo fato de haver cristãos luteranos também no Brasil, ‘selvagens’ seguindo a Cristo, como também eu o fui. Na verdade, não gosto que cristãos se chamem pelo meu nome, pois a Igreja é de Cristo. Ela não é minha, mas, se estão convictos de que o humilde servo Martim Lutero disse algumas verdades, então, com muito prazer, lhes empresto meu nome para designar seu modo de confessar e viver a fé.

Aliás, é surpreendente receber uma carta do Brasil, país este que, durante longo tempo, me tem negado o visto de entrada. Suas fronteiras estavam fechadas para mim. A religião oficial, a católica, não permitia o exercício do ‘rito luterano’ e quando, por interesses estatais, chegaram os primeiros imigrantes luteranos, tiveram que enfrentar dura oposição. Você sabe isto melhor do que eu. Hoje, a situação é diferente, graças a Deus, mas demorou até que se concedesse a liberdade religiosa nessa parte do planeta. Você se surpreende com minha ‘língua afiada’, com a maneira às vezes áspera de tratar meus oponentes. Bem, Lutero sempre foi pessoa polêmica. Sofri muita injúria. Vivi como pessoa perseguida, condenada, excomungada durante quase toda a minha vida. Isto deixa marcas na gente, mas não quero me desculpar. Também eu prefiro um estilo polido no trato mútuo. No que insisto é no direito de, em nome do Evangelho, discordar e protestar.

Foi isto o que se me negou. Tinha que discordar de muita coisa na Igreja de meu tempo. Ainda hoje sou acusado de ter fundado uma nova religião. Que bobagem! Não fundei Igreja nenhuma. Tentei reformar a Igreja de Jesus Cristo, fundada nem em Roma nem em Wittenberg, e, sim, em Jerusalém pela ação do Espírito Santo. Sou reformador, não fundador, mas as autoridades não queriam mudanças. Reforma é sempre algo doloroso. Ela costuma esbarrar em interesses e estruturas de poder que a impedem. A própria política brasileira pode servir de exemplo. Ademais, sou acusado de ter provocado a ruptura da Igreja. Não foi esse o meu propósito. Sempre me considerei um bom católico, embora não romano. Não posso deixar de culpar a obstinação do Papa e de seus auxiliares pela divisão dos cristãos, mas não vamos brigar por causa disto. Vamos antes nos esforçar por recuperar a unidade perdida.

Espero que para tanto a minha teologia ajude, eu a considero bíblica, ecumênica. Você percebeu muito bem o meu amor pela Bíblia. Qual seria a outra instância normativa na Igreja além dela? É verdade que nem tudo o que escrevi é de fácil compreensão. Quando discuto com uma pessoa culta como Erasmo de Rotterdam que me desafiou com um escrito de peso, devo responder à altura. Assim aconteceu em várias oportunidades. Nem mesmo a leitura de meus comentários bíblicos costuma ser fácil. Acontece com os meus escritos o mesmo que observamos na Bíblia: também ela contém passagens difíceis. Mesmo assim, sustento que ela é muito clara quando se trata dos assuntos centrais da fé. O mesmo se aplica, assim espero, a Lutero. Para a minha alegria, vejo-o confirmado em sua carta. Descubro em você um ótimo intérprete meu. Parabéns! De fato, apoiando-me somente na Escritura, quero colocar Cristo no centro, através de quem Deus manifestou sua graça a ser acolhida pela fé. São estes os quatro pilares de minha teologia.

Assim também o leio na Bíblia: somos justificados por graça somente. Deus nos aceita exclusivamente por amor, não por pagamento ou mérito de qualquer tipo. Tudo o que recebemos de Deus é gratuito. Parece ser este o grande escândalo do Evangelho. O ser humano acha que deve completar a graça ou então comprá-la com alguma boa obra. Quer substituir o amor de Deus pelo negócio. Vejo nisto uma grande ofensa a Deus. Que dizer de filhos que querem ‘comprar’ o amor de seus pais? Deixaram de ser filhos e passaram a ser fregueses. Foi por isto que me revoltei contra a prática das indulgências. Infelizmente, o mercado religioso está de volta. Compartilho com você a preocupação com as tais das igrejas da prosperidade. Enganam as pessoas com promessas falazes e transformam o Evangelho em mercadoria, mas além delas há outras empresas que se especializaram na venda de produtos religiosos e fazem gordos lucros. Com religião, dá para ganhar um bom dinheiro.

Em tal mundo, o amor vai diminuindo, porque amor autêntico é sempre gratuito. Amor não se compra, por isto mesmo a sociedade de vocês não gosta da cruz de Cristo. Seria sinal de fracasso. O que importa seria a ressurreição, a vitória, o triunfo. É este mais outro perigo que vejo no Brasil do século XXI, a saber, o culto ao sucesso. É preciso vencer, pertencer aos ganhadores, tirar vantagem por sobre os outros. Isto de qualquer jeito, com métodos legais e ilegais, mediante corrupção, roubo, extorsão ou mesmo assalto. Cria-se, desse modo, uma sociedade cada vez mais violenta, brutal e cruel e a religião deve ajudar para alcançar o objetivo! Jesus, sob este ponto de vista, foi um fracassado. Apostou no amor, não na esperteza, na força ou no lucro. Manifestou a misericórdia de Deus, não sua vingança, por isto teve que morrer, mas que ninguém se engane: a fraqueza do amor é mais poderosa do que todo o capital, as armas e a inteligência juntos. Recomendo a você pensar sobre isto. Sem misericórdia, tanto divina quanto humana, este mundo está perdido.

Já que estamos falando do Brasil, queira permitir-me uma última observação. Você, em sua carta, já aponta o assunto. Sim, também eu me preocupo com uma fé que perde a cabeça e afunda no delírio. Certamente fé sempre possui uma dimensão emocional, sentimental. É preciso cuidar dela, mas quando ela deixa de pensar, quando perde o controle de si, quando cai em transe, êxtase, já não mais é a fé em Cristo. Deve-se esperar de religião sabedoria. Não simpatizei com Müntzer e outros entusiastas do meu tempo por esta razão: perderam a percepção para a realidade, tornaram-se ‘aéreos’, ilusionistas. Ainda: onde está o amor no movimento dito ‘carismático’? O supremo ‘carisma’ do Espírito Santo é exatamente este!
Pois é, Martinus. Pelo que me parece, vocês luteranos no Brasil têm uma grande missão em seu contexto religioso, social e político. Se me fosse permitido voltar, teria muitas verdades a repetir. A situação de vocês é diferente, sim, mas vejo que vocês se defrontam com muitos problemas semelhantes aos de quinhentos anos atrás. Aliás, são problemas, com os quais já o próprio Jesus lutou: a vontade de Deus sofre contestação e sua graça provoca indignação junto a quem se considera justo, por isto mesmo também ‘luteranos’ continuam suspeitos. O Papa Bento XVI acaba de dizer que só católicos são realmente igreja. Ele se engana. Igreja luterana é igreja, sim, pois não é o Papa que faz a igreja. Igreja está lá, onde Jesus Cristo está e ele nem sempre está em Roma. Também prodígios carismáticos não são sinal seguro da presença de nosso Senhor. Religiosidade pode ser altamente ambígua. Dizia que igreja é o grupo das ‘ovelhas’ que ouvem a voz de seu Pastor. Concordo plenamente com meu amigo F. Melanchthon quando afirma na Confissão de Augsburgo que ‘a igreja é a congregação dos santos na qual o Evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente’. É a presença da palavra de Deus que faz a Igreja.

Por isto, meu amigo Martinus, continue encorajando a IECLB a seguir firme o caminho do Evangelho. Que coloque um pouco de ‘sal luterano’ na sopa religiosa do Brasil. Para tanto, queira ela mesma ‘reformar-se’, eliminar alguns vícios internos e cuidar da sua unidade. No mais, porém, queira conscientizar-se do talento que recebeu para com ele trabalhar. Sua condição de minoria não é desculpa para enterrá-lo, como o fez aquele sujeito preguiçoso na parábola de Jesus. Peço a Deus que lhe dê força para cumprir o que dela espera.

Martinus Eleutherius

(autor: P. Dr. Dr. h.c. Gottfried Brakemeier)

Publicado no Jornal Evangélico Luterano 2007 setembro

Veja:

Carta de Martinus Torneirus do século XXI


Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Luteranos em Contexto
Natureza do Texto: Artigo
ID: 19939

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