Hoje, o louvor parece banalizado. Como posso, então, louvar a Deus de maneira genuína? Buscando responder a esta pergunta, fui defrontado com o texto de Ap 15.2-4 que diz: “Vi, como que um mar de vidro, mesclado com fogo, e os vencedores da besta, da sua imagem e o número de seu nome, que se achavam de pé no mar de vidro, tendo harpas de Deus; e entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo- Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das Nações! Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor? Pois só tu és o Santo; por isso, todas as nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus atos de justiça se fizeram manifestos”.
1. O texto de Ap 15.2-4
A partir do texto referido acima, podemos perceber que o louvor genuíno no sentido bíblico precisa considerar quatro pontos – tomo por base a análise de Vitor Westhelle no PL XV. Eis os quatro pontos:
A) louvor genuíno pressupõe vivência comunitária que busca viver a fé por graça. Visões, imagens, símbolos e metáforas são a matéria das narrativas apocalíticas. Nosso texto em análise não é diferente. No v.4 temos uma cena até simples. Os que venceram a besta, sua imagem e o número de seu nome (cf. cap.13) estão perante o trono de Deus, fazendo música com cítaras divinas e cantam. Quem são os que venceram a besta? O destinatário da visão de João é o povo cristão reunido em comunidades, um povo de perseguidos que persevera. Sim, o destinatário da carta não é um indivíduo, mas um grupo de indivíduos, assim como a perseguição não é a um indivíduo e seus atos. “Uma perseguição por Cristo é uma perseguição a pessoas enquanto vivem em comunidades onde já estão presentes os valores do Reino. Perseguição religiosa é a justificação ideológica decorrente do confronto de valore sociais e políticos contraditórios.” Não é de graça que João a igrejas, comunidades, uma vez que indivíduos não conseguem ameaçar um império e sua lógica. No cristianismo “não há mártires de causa própria [...] há perseguidos e martirizados por causa da vida que o povo organizado busca já aperitiva, e pela denúncia e rejeição dos poderes e estruturas que se opões a esta busca”. A forma de perseguição mais corrente era a marginalização econômica e social dos que resistiam à divinização da autoridade do imperador romano.
B) louvor genuíno almeja encorajar. Nosso texto almeja encorajar, alentar a esperança e instruir o povo para que persevere, pois a história não fugiu do controle de Deus. A imagem trazida no texto não é uma projeção futura do destino daqueles que perseveraram, mas é, antes, uma realidade profunda do que representa a perseverança. Analisemos a imagem: mar e fogo, dois elementos simbólicos que representam um poder irresistível. O mar é o que engole, cala, coopta e faz resignar. O fogo é o que consome, a própria tribulação e a autoridade da besta (o império). Quem persevera, no entanto, não é tragado pelo mar, nem consumido pelo fogo, mas permanece sereno, firme sobre fogo e mar (lembra Mc 6.45-52). Estes perseverantes tocam cítaras e cantam as maravilhas das obras de Deus e a justiça de seus caminhos. Perseverar significa não se submeter ao poder da besta, quer dizer, do império com seus ídolos. Perseverança e perseguição são dois lados da mesma moeda. Não há saída mágica. Evitar a perseguição é não perseverar. Ou se aceita o domínio da besta (o império) e se incorre em idolatria ou se segue a Cristo e os valores do Reino. Entretanto, é bom atentar ao seguinte detalhe: os perseverantes cantam em meio às inseguranças e tribulações (o mar e o fogo estão debaixo de seus pés). Isto obviamente só é possível para quem, além das aparências confia nas obras e nos caminhos de Deus.
C) louvor genuíno faz enxergar pelo óculos da fé. “Em uma época de repressão, dominação e decorrente insegurança, a narrativa apocalíptica revela para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir a essência submersa da realidade”. Ou seja: a realidade deve ser vista por detrás das máscaras das aparências. A verdade acha-se velada na profundidade e não na superfície. O apocalipse quer exatamente isto: revelar a face oculta da história. O propósito é reafirmar o povo em sua fé, assegurar que a saudade de o povo ver com seus olhos os feitos libertadores de Deus é uma esperança concreta. Tudo isso tem sentido se observarmos que além do sofrimento e da perseguição de um império que parecia simpático e adornado gozando de respeito e de admiração (cap.13), internamente, as comunidades viviam uma crise de continuidade. Afinal, os apóstolos estavam morrendo. A geração que esperava viver o juízo estava desaparecendo. As comunidades perseveravam, mas já estavam se perguntando se Deus não havia mudado de opinião, ou suspendido suas promessas. Teria Deus abandonado os seus? É neste momento que João reafirma com toda sua linguagem e força de imagens que as promessas são válidas. Enfim, “a fé permite olhar através da máscara da aparente derrota e infâmia, para a profundeza do poder de Deus.” Os que vivem por graça através da fé resistem às regras que dominam o jogo social, político e econômico (ao prestígio, competição, recompensa, poder, etc).
D) louvor genuíno convida à celebração. Apesar de toda opressão, perseguição e martírio da realidade circundante das comunidades, João convida à celebração. A imagem de que os vencedores da besta estão tocando cítaras e cantando as maravilhas de Deus em cima do mar de vidro misturado ao fogo (sem que estes primeiro desapareçam) sugere que os que confiam no Senhor cantam em meio aos sofrimentos e a luta pela vida. A mensagem é claramente dirigida para o instante presente. Esta tese é reforçada pela referência ao cântico de Moisés, de Ex 15, cujas diferenças são notáveis, mas que nos remetem à seguinte idéia: se outrora se cantava a fidelidade de Deus em guiar o seu povo para a terra da liberdade, agora se canta o poder do sangue do Cordeiro, que manifesta e realiza junto ao povo maravilhosas e inesperadas obras, desvendando caminhos novos. Um cântico novo agora é cantado, em meio à opressão, pois quem crê e confia sabe com quem Deus está apesar de todas as aparências. A libertação começa em meio à opressão. A dimensão futura não desaparece, pois no versículo de n° 4 vemos claramente que o futuro não é de vingança do povo, mas como o momento em que todas as pessoas no mundo reconhecerão a Deus como o Único, pois então seus justos atos serão expostos e se farão manifestos a despeito de todas as versões históricas conhecidas. Enfim, o louvor é uma celebração que canta os feitos de Deus em tempo real em meio à opressão. É a mais pura fé: os olhos vêem ainda a realidade circundante de perseguição, mas já agora se canta a libertação de Deus, canta-se como já realizado.
2. Confrontando a Palavra com a nossa vida
O louvor genuíno, da forma detalhada acima, levou milhares a serem perseguidos e martirizados. Sem dúvida, a passagem de Ap 2.10 foi essencial: “Sê fiel até a morte e dar-te-ei a coroa da vida eterna”. Aí vem a pergunta que requer atualização: o pano de fundo do louvor genuíno era um contexto de sofrimento e perseguições, como vamos nós, homens e mulheres do séc 21, louvar a Deus de maneira genuína uma vez que o nosso contexto é outro? Neste sentido, é muito elucidativa a história do mártir Policarpo. Vamos acompanhar:
Corria o ano de 155 da era cristã. Um velhinho, de cabelos brancos, com 87 anos, está perante o juiz, acusado de um grande crime: ser cristão. Seu nome é Policarpo. O juiz, quando vê aquele homem tão idoso, fica com pena dele. Sabia que Policarpo era um homem de bem que não achava certo queimar uma pessoa assim no fogo. Por isso procurou ser bondoso para com ele. Sugeriu que ele negasse a Cristo por apenas alguns instntes, que ele o soltaria. A esta sugestão carnal Policarpo respondeu: “oitenta e seis anos servi ao Senhor e ele nunca me fez mal. Como posso agora negar o meu Salvador e blasfemar contra ele, ele que me salvou?”. E, quando o juiz, irritado, ameaçou joga-lo no fogo para fazer medo a ele, Policarpo respondeu: Não tem problema, pode me jogar no fogo, se quiser. Mas não se esqueça de um outro fogo que irá atormentar o seu espírito eternamente” e Policarpo morreu queimado. (Fonte: Lindolfo Pieper)
Provavelmente ninguém de nós foi preso por causa de sua fé. Mas nem por isso podemos ficar despreocupados. Hoje os perigos são outros. Naquela época, ao que tudo indica, as perseguições dos romanos visavam a vida da pessoa. Procurava-se matar o corpo. Hoje, mata-se a alma. E a grande arma dos poderes do mal hoje é a sedução. Os poderes do mal hoje nos oferecem todo o tipo de prazeres e felicidade a todo custo, solução para os problemas através do uso de drogas lícitas e ilícitas, magia ou feitiçaria, o ter no lugar do ser, etc. Enfim, quem sede, torna-se escravo. Então, morre a alma.
Além disso, fica também o questionamento sobre o estilo do nosso louvar. O nosso louvor é: individualista ou comunitário?; leva à resistência e a luta contra formas de opressão no mundo, ou leva à fuga?; “massageia o ego” ou impulsiona, encoraja?; as palavras usadas em nosso louvor são palavras jogadas ao vento que evocam o puro sentimentalismo e uma volta ao estoicismo ou são palavras grávidas de significado?
Portanto, o louvor em nossas comunidades não deve ser banalizado. O louvor a Deus é muito mais que um belo e sincero sentimento no coração de alguém. É mais que qualidade artística, do que conhecimento ou ensaios. Ele é uma importante arma de resistência, e, quando genuíno, podendo levar pessoas à salvação. Ele tem e terá um poder imenso se: for um louvor comunitário (louvor não individualizado), olhar pelos óculos da fé a nossa realidade circundante (louvor não egoísta), levar à perseverança (louvor não relativista) e à celebração (louvor não ritualista). O louvor permeia toda a vida em seu todo. Deus nos auxilie a louvar sempre mais!!!!