Para a minha vida, nas diversas situações, a dádiva do Sacramento do Batismo é fundamental. Aprendo diariamente da explicação de Martim Lutero sobre a dinâmica salvadora de Deus revelada no batismo, essa que nos permite morrer e nascer diariamente para viver dignamente em comunhão com Deus. Lutero ancora sua explicação na palavra bíblica de Tito 3: “... ele nos salvou porque teve compaixão de nós, e não porque nós tivéssemos feito alguma coisa boa. Ele nos salvou por meio do Espírito Santo, que nos lavou, fazendo com que nascêssemos de novo e dando-nos uma nova vida. Deus derramou com generosidade o seu Espírito Santo sobre nós, por meio de Jesus Cristo, o nosso Salvador. E fez isso para que, pela sua graça, nós sejamos aceitos por Deus e recebamos a vida eterna que esperamos.”
Viver diariamente, certos da graça de Deus, com fé, esperança e dignidade, nos aproxima da realidade onde Deus, na cruz, revelou o seu amor e ação salvadora. A graça de Deus nos move em direção a realidade onde as forças e os sinais de vida e morte, beleza e brutalidade humanas estão em movimento. Ali, todos os dias, pelo poder do Espírito Santo, ganhamos novos olhos para ver e novos ouvidos para ouvir. É assim que nos apropriamos do nascer de novo diariamente, que sustenta nossa dignidade, esperança e paixão pela vida. E afasta de nós a indiferença em relação aos perigos e ameaças da morte. Como brisa que chega e alenta, nos dá discernimento para escolher valores, atitudes, caminhos, gestos e espaços que nos aproximam da presença de Deus.
Convido você para continua essa reflexão. Desculpa-me o simplismo, mas assim como precisamos tomar banho todos os dias para nos limpar da poluição e das sujeiras, a ação do Espírito Santo em nos conceder um novo nascimento diariamente indica um limpar-se de contaminações impostas pela mesma realidade de cruz e brutalidade humana. Quais as “sujeiras” que o Espírito Santo lava?
Ontem ao ir ao mercadinho, próximo da minha casa, por volta das 18h30, num momento de chuva e temperatura de 9 graus deparei-me com mais de 20 pessoas de rua mal agasalhadas, algumas usando drogas, outras encostadas nas soleiras das portas de lojas fechadas. Como não esquivar-se desse cenário? Como interagir com dignidade numa cidade em movimento brutal que não cuida da sua gente caída, excluída e exposta a agudo sofrimento?
Assim como eu, centenas de pessoas transeuntes foram contaminadas pelo pecado do descaso, da omissão diretos e indiretos. Comportaram-se com passividade. Demonstraram conivencia com o consenso de que esse problema é social e a solução está nas mãos de outros. Eu e milhões de outros convivem passivamente com modelos de governos municipais, aqui em São Paulo e em outras metrópoles e cidades, que investem recursos financeiros em maior monta para limpar a cidade do lixo comum, construir viadutos e patrocinar eventos do que para cuidar das pessoas ameaçadas e privadas de condições mínimas para viver.
Solitários, em família ou em comunidades permitimos o avanço da brutalidade humana e omitimos apoio e compromisso com as iniciativas que nos aproximam do Deus da justiça e da graça.
À noite, naquele momento que antecede a chegada do sono, ainda sob o impacto do cenário das ruas por onde passei para ir ao mercadinho, pensei: Daqui há dois anos vou morar em uma cidade que não tem pessoas morando nas ruas...
Ontem fui dormir enlameado e com vergonha. E hoje, novo dia, continuo com algumas dúvidas... Preciso nascer de novo! Quero abraçar a dádiva do Batismo e a apropriar-me da novidade de vida. Será que eu sou o único que já passou por essa situação?