Acompanho a cena política dos últimos 30 anos e não poderia imaginar que o assunto alimentação e nutrição pudessem tornar-se programa de governo, com tanta visibilidade e preocupação. De repente, se discute e se trabalha em torno da implantação de restaurantes populares, distribuição de cestas básicas, criação de Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional, etc. em todo o país. O tema da fome e da carência foi alçado à categoria de problema político do país e do mundo.
Este fato nos leva a refletir como evangélicos de confissão luterana acerca de nossa postura e nosso engajamento num terreno em que nós temos ou deveríamos ter relativa proximidade. Digo relativa proximidade porque persiste na cultura e na mentalidade de muitas pessoas uma perspectiva de muita auto-suficiência: “Se existe gente passando fome é porque não se esforçam para ter o que precisam!” Este jeito de pensar e de agir fica muito distante do coração do Evangelho e da mensagem de Jesus.
“Dai-lhe vós mesmos de comer.” (Mc 6.37) Eis a palavra de Jesus, dirigida a seus seguidores, quando estes se depararam com a necessidade de alimento para uma multidão que viera para ouvi-lo. No contexto desta palavra os discípulos haviam sugerido que, diante do problema da alimentação, as pessoas simplesmente fossem despedidas e se virassem por conta própria.
A comida representa o ingrediente mínimo e básico para a vida e concretização da convivência humana. O problema da sobrevivência do próximo torna-se uma questão de fé porque a ameaça à vida do próximo se constitui em ameaça à dignidade do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus. Alimento significa a base mínima para viabilizar a cidadania.
Podemos até ter visões diferentes sobre a melhor maneira de ajudar e resolver os problemas nutricionais em nosso país. No entanto, o fato de este tema ter-se tornado uma preocupação muito séria de amplos setores da população, revela que o sofrimento e a dor decorrentes da ausência do mínimo necessário para a manutenção da vida não pode mais ser desconsiderado na formulação de políticas públicas. Revela também que as denominações cristãs e as religiões, que têm no mandamento do amor ao próximo uma de suas afirmações centrais, não podem ficar indiferentes e isoladas de toda esta mobilização em nosso país.
É claro que assunto traz consigo uma série de tentações. Estas vão desde a instrumentalização política para fins eleitorais até o uso e abuso para fins proselitistas (conseguir novos membros com a distribuição de comida). Isso não é novo para nós cristãos. Vemos no evangelho que as multidões saciadas queriam transformar Jesus imediatamente em rei. (João 6.15) Observamos que Jesus não aceita que se reduza a vontade de Deus à satisfação do estômago.(Mateus 4.4.)
Vivemos em meio ao jogo de muitos interesses contraditórios. Esta é a nossa condição de cristãos. Mesmo assim somos animados e encorajados a dar o testemunho público da fé mediante a nossa inserção e envolvimento em ações que visam superar a dor e o sofrimento de milhares de pessoas vítimas da ausência do “pão nosso de cada dia”. Que Deus nos sensibilize, mobilize e capacite para a vivência da fé na prática do amor.
P. Dr. Rolf Schünemann