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ID: 18

Maria numa visão ecumênica

21/06/2007

Na história da Igreja e em nosso continente Latino-americano, Maria é uma personagem muito matizada, com muitos significados. Há uma coleção sem fim de ícones durante toda a história religiosa e da arte. Mulher iconografada com muitos traços, expressões, cores de pele, modelos de roupa. Cada cultura expressou esta mulher de acordo com seus traços. Em torno de Maria temos uma das mais ricas expressões de arte e fé popular. Na América Central ela é indígena, no Brasil é negra, na Europa é branca de muitos jeitos...

Em Maria reúne-se a diversidade (ecumênica) religiosa desde os primórdios. Ela é Madona para poetas e trovadores, é a Pietá e Mãe dolorosa para outros fiéis, é Mãe do Perpétuo Socorro que acolhe todos/as os/as desesperados/as... é Aparecida para pescadores com fome... Cada grupo social na história recorre a ela com suas necessidades e suas crenças. As vezes, ela é uma mistura de deusa indígena com a mãe de Deus (Nossa Senhora de Guadalupe que é também...) Na medida que o cristianismo vai se encontrando com outras culturas, os símbolos vão se fundindo, sendo re-significados para darem respostas a nível da espiritualidade/ mística para as pessoas no seu dia a dia. Os povos, em diferentes lugares e em diferentes épocas vão se apropriando dos personagens de uma religião (no caso de Maria é o cristianismo) e dando vida a partir de sua fé, do seu cotidiano, das suas inquietações.

É interessante observar que as culturas afro-indígenas na América Latina incorporaram muito rapidamente Maria no seu universo religioso, até porque esta mulher tem características muito semelhantes a algumas deusas destas culturas. Na Umbanda ela é ao mesmo tempo Iemanjá, deusa das águas, principal deusa na tradição afro-brasileira. Na tradição indígena ela é semelhante a Iara, também deusa das águas doces. Não é por mero acaso que a Nossa Senhora Aparecida, empretecida pelo lodo e achada nas águas do rio Paraíba é a Maria brasileira. Uma imagem que vem das águas e é negra tal qual a maioria do povo empobrecido brasileiro. No fundo ela é uma deusa, da mesma natureza divina de Deus cristão, mãe de Jesus Cristo.

Por incrível que pareça, a dificuldade ecumênica em torno de Maria, não surge de culturas e religiões não-cristãs, mas por dentro do próprio cristianismo. E nesse caso, a história da Igreja nos ajuda a entender algumas questões nesta controvérsia. Ao redor desta mulher formulou-se quatro dogmas pela igreja cristã: Em Éfeso, no ano 431 foi declarada “Mãe de Deus”, em 649 o Sínodo Lateranense a declara “Virgem”. Estes são os dois dogmas da igreja antiga, Católica Apostólica, antes da Reforma. Somente no ano de 1854 ela foi reconhecida como Imaculada Conceição (livre do pecado original) e recém em 1950 afirma-se que foi elevada aos céus em corpo e alma. Estes dois últimos dogmas é muito recente. Na tradição da igreja, Maria é chamada como filha de Deus Pai, mãe de Deus Filho e esposa de Deus Espírito Santo. Duas afirmações antigas (os dois primeiros dogmas) sobre Maria encontram-se no Credo Apostólico, professado pelas igrejas cristãs.

Os caminhos da Igreja cristã se bifurcam ao longo da história e com ela a devoção mariana também. Nas igrejas do Oriente a devoção mariana começa no século III enquanto que no Ocidente torna-se algo mais relevante no século IV, mas foi a partir do século X apenas que esta devoção teve uma expressão mais significativa na fé popular e na igreja cristã. Mais tarde, com a Reforma prostestante, há um rompimento com a Mariologia então professada pela igreja. O principal obstáculo para uma mariologia nas igrejas de ramo protestante é a compreensão de Maria como “mediadora” entre Deus e os seres humanos. A Reforma protestante rejeitou qualquer tipo de mediação entre Deus e os seres humanos – mudando com isso a sua eclesiologia completamente. Lutero, o reformador mais proeminente não abandonou sua devoção mariana por completo. Maria está presente na sua espiritualidade nas horas difíceis pelas quais passou após a excomunhão da igreja e perda de cidadania em alguns principados.

O obstáculo ecumênico pelo lado protestante está na veneração de uma imagem ou peregrinações a santuários e acima de tudo no papel de Maria como mediadora, reconhecida na mariologia católica. Por outro lado, gostaria de levantar uma hipótese em relação ao protestantismo: a sua dificuldade de inculturação na América Latina (veja estatísticas das religiões no Brasil, p. ex. O protestantismo histórico está descrescendo). Há uma negação muito grande no reconhecimento das culturas locais, suas tradições, ritos e símbolos, e neste aspecto a religiosidade popular em torno a Maria, matizada pelas culturas locais também. A mariologia popular na América Latina tem seu caminho próprio apesar das diretrizes da igreja oficial. A dificuldades no diálogo ecumênico neste aspecto, não tem apenas razões doutrinárias, tem descaminhos históricos e desencontros culturais.

No entanto, quero apontar possibilidades de ecumenicidade em relação a Maria: o que temos em comum são os relatos bíblicos e os dois primeiros dogmas, embora tenham outro peso. No ramo protestante, Maria é reconhecida como mãe de Jesus, como apóstola (At 1) junto às outras apostolas e apóstolos, relatado no livro de Atos, uma personagem histórica importante na tradição cristã. A mariologia no protestantismo tem como referência importante o Magnificat do Evangelho de Lucas (Lc 1, 46-54). Lutero tem um texto belíssimo sobre o Magnificat onde ressalta alguns aspectos fundamentais da vida cristã. O Cântico de Maria foi o texto de consolo de Lutero em momentos cruciais em sua vida, ameaçado de morte. A sua espiritualidade, brota a partir de sua condição de rejeitado, excluído, perseguido pela Igreja e por príncipes aliados com o Papa. Lutero encontrou forças e fortalecimento de sua fé na identificação com Maria e com seu cântico de boas novas. O momento e contexto de Lutero foram a porta de entrada para a compreensão e interpretação da condição de Maria como mulher, pobre e sem grandes possibilidades de ser reconhecida como gente na sociedade de então, e, a profecia de suas palavras. Maria é para Lutero modelo de vida cristã, que experimentou a justificação por graça e fé. A outra motivação do escrito de Lutero sobro o Magnificat, foi o pedido de orientação do príncipe da Saxônia, de como governar cristãmente. A partir deste fato, a exposição do Magnificat deve ser lida também como um escrito de ética política.

Talvez seja difícil uma aproximação simbólica mariana, mas sem dúvida, podemos nos aproximar ao redor de alguns enunciados fundamentais para a vida encontrados no Magnificat:
- “Pois contemplou a humildade de sua serva. Por isso me considerarão bem aventurada todas as gerações” (1,48). É uma característica de Deus olhar para as coisas insignificantes. Tapeinophrosyne é o termo grego utilizado neste cântico, que é a inclinação para as coisas insignificantes e desprezadas. É Deus que ouve o gemido de dor dos escravos do Egito, vê a sua opressão e exploração, vem para libertá-los...

- “E sua misericórdia dura de uma geração a outra, para os que o temem”. Após ter cantado sobre si mesma e seus bens divinos e honrado Deus, Maria passa a fazer um passeio por todas as obras de Deus realizadas em todas as pessoas. Ela também canta sobre elas. Ensina-nos a reconhecer devidamente suas obras, o caráter, a natureza e a vontade de Deus. Maria cita seis obras divinas em seis categorias de pessoas nos quatro versículos seguintes, dividindo o mundo em duas partes. Em cada lado há três obras e três categorias de pessoas. Uma parte está sempre em oposição contrária a outra. Então Maria mostra o que Deus fez em ambas as partes: os pobres de espírito, os oprimidos e os necessitados fisicamente, restituindo-lhes a vida; aos soberbos, poderosos e aos ricos, dispersou-os, derrubou-os dos tronos e despediu de mãos vazias.

Conforme Lutero o Magnificat mostra várias obras de Deus:
- Primeira obra de Deus: a Misericórdia. “E sua misericórdia dura de uma geração a outra, para os que o temem.” (1,50)
- Segunda obra de Deus: destruir a arrogância espiritual. “Age poderosamente com seu braço e destrói a todos que são orgulhosos nas intenções de seus corações”. (1,51)
- Terceira obra de Deus: humilhação dos grandes. “Destitui os grandes senhores de seu governo” (1,52a)
- Quarta obra de Deus: exaltação dos humildes. “Exalta os que são nulos e nada” (1,52b)
- Quinta e sexta obra de Deus: “Sacia os famintos com toda sorte de bens, e deixa vazios os ricos” (1,53)
 

Creio que podemos ter uma afetuosa ecumenicidade, mesmo com as nossas diferenças, reconhecendo a missão fundamental desta mulher Maria, como canta no seu maravilhoso cântico, principalmente nestes tempos que estamos empenhadas/os em saciar a fome e restituir a justiça na terra. Maria pode nos ajudar a todos e todas no encontro central da vida humana, o projeto da vida abundante para todas e todos.

Pa. Haidi Jarschel


Autor(a): Haidi Jarschel
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6758

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