Sínodo Sudeste



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"Ide..." - Por águas nunca antes navegadas...

Mateus 28.18-20

29/07/2013

É fundamental considerar que a obra de Jesus de Nazaré não tinha sido realizada apenas nos contornos do que agora era percebido e lembrado pelos mais próximos, mas, sim, na circulação social que já havia acontecido e que iria continuar acontecendo. Os seguidores de Jesus se encontravam entre o instinto de autopreservação ou transformação. Encontram-se entre o Ressurreto, diante do qual tateavam inseguros, de um lado, e o consolo da sua volta, que se postergava mais e mais. “Não queira ir o sapateiro além das sandálias”, ensina o velho ditado. No momento em que os discípulos descalçavam as sandálias, há que se considerar como a espécie humana se relaciona com suas fronteiras, sejam elas físicas, psíquicas, políticas, éticas ou religiosas. Eis os aspectos implícitos em Mateus, capítulo 28.

O reconhecimento das limitações, assim como o reconhecimento do erro, é artigo raro e caro (querido, precioso, custoso) em nossa espécie. Assim, o respeito às limitações, ou às fronteiras, convive com o desejo de ignorá-las. As limitações podem ser também um ativo a ser explorado. “Sintam culpa e paguem por ela”, dizem aqueles que se colocam acima dos outros. O domínio pela culpa é poderoso, propaga-se de forma sutil, não precisa de golpes para acabar com a liberdade das pessoas e com a saúde da comunidade. Diante da prática difundida na época pela igreja de Roma, em que se ‘pagava’ para se livrar dos erros. A instituição receptora devolvia com a absolvição. O beneficiário atribuiu a ela uma função divina, enquanto este não se advogava o direito de ser e se sentir qualificado diante de Deus e dos homens. Resta passar pela vida como um ser desqualificado ao qual cabia o ‘pedágio’, os ‘juros’ por estar eternamente no vermelho. Na outra ponta, o protestantismo calvinista difundia uma pretensa eleição. Os eleitos podiam considerar-se pessoas com vantagens, preestabelecidas por Deus. Entre a opção romana e a calvinista, encontra-se o caminho igualitário e universal proposto por Lutero. Contempla a condição do ser humano. A graça viabiliza um processo contínuo de libertação. Esta compreensão desmistifica os erros, tira-lhes o ‘caráter absoluto’- esse ‘menos’ (opção romana), ou, o ‘a mais’, já conquistado (opção calvinista). A reflexão de Lutero leva a um caminho saudável e livre. Recoloca o ser humano, continuamente, numa posição que lhe devolve dignidade e liberdade para ser aquilo para o qual foi criado e vocacionado por Deus.

A prática religiosa que induz a um ‘pagamento’, tem suas raízes na relativização da radicalidade salvífica e gratuita de Deus. Oferece, mediante pagamento, as conhecidas ‘tábuas de salvação’, omitindo a integridade do barco, ao qual todos podem ter acesso. A opção católica romana sugere uma apropriação do barco pela instituição. A opção calvinista fala que os eleitos que, por serem eleitos já se encontram no barco, devem apenas trabalhar com afinco para fazer reluzir o fato de se encontrarem lá. A compreensão luterana nos fala do barco que, em função da vontade e promessa de Deus, mantém sua integridade através dos tempos. Afirma a capacidade do timoneiro, Jesus Cristo, cuja presença conduz o barco e o resgate dos náufragos, garantindo, assim, indistintamente, o acesso a todos. Não se trata de uma questão de interpretação, fato é que todo ser humano, em algum momento, acaba fora do barco, mergulha e perde o chão sob os pés. Ao ser resgatado, voltar ao barco, segue em frente restituído em sua integridade e dignidade. Desta compreensão e vivência resulta uma visão de conjunto que não existia antes. Todos no mesmo barco sob as mesmas condições! A forma de ir, interagir, ensinar e conviver, conforme o mandato de Mateus 28, defendida no Catecismo Maior, viabiliza uma visão de conjunto não considerada pela sociedade de consumo, suas ideologias, crenças e suas relações destrutivas com o meio ambiente. A teologia no Evangelho de Mateus leva as comunidades a se redefinirem continuamente sem abrir mão da sustentabilidade e acolhida universal.

Lutero transformou o consumo mundano da religião em uma religião para os seres humanos no mundo. Em outras palavras, ao lidar com os limites da condição humana, pessoal e coletiva, redescobriu a forma leal de Deus lidar com esta realidade sem desqualificá-la e destruí-la.

Com a longa noite do predomínio das teses neoliberais, difundiu-se a crença de que as comunidades são irrelevantes, o que importa é o indivíduo. As recentes manifestações nas grandes cidades parecem indicar o despertar de uma consciência de que o individualismo não é o caminho. Parece indicar, ainda, que é chegada a hora das comunidades empreenderem ações coletivas globais, reorganizando-se em organismos capazes de defender seus interesses diante da lógica que tolhe a vida e o bem comum. Com a volta dos atores coletivos, a missão que promove a comunidade precisa reinventar-se, pensar seu papel e testemunho num mundo interligado com as modernas tecnologias de comunicação que conectam as pessoas em fração de segundos. As construções culturais e religiosas dos fluxos migratórios vêm se conjugando com as transformações internas das comunidades para produzir novas identidades em escala planetária. Horizonte já contemplado em Mateus 28!

Por outro lado, com o paroquialismo que a atual crise favorece, renasce o desejo de fechamento das comunidades sobre elas mesmas em sua suposta homogeneidade cultural ou racial. Brotam atitudes racistas e de discriminação cultural e religiosa, tendem ao fechamento de grupos e comunidades em si mesmos, estreitando seus laços por intermédio da religião.

Muita coisa do que se falou e praticou no ambiente religioso tem um tom “nós somos diferentes desses ou daqueles”. O mandato no Evangelho de Mateus não se interessa por isso. A ênfase deve ser colocada nos conteúdos e possibilidades que ainda não existem. Passam a existir quando confiamos no significado da Páscoa, no poder do Ressurreto: “Ensinem, demonstrem que é possível morrer e renascer!”.

Ao sermos confrontados verdadeiramente com todas as coisas nas quais nos apegamos ao longo da vida ocorre uma ruptura para a qual nunca estaremos preparados. Se pleitearmos ininterruptamente por segurança, como nos iremos comportar num contexto que causa estranheza e insegurança? Se pleitearmos todo o tempo por reconhecimento e garantias, como reagiremos no momento em que perdemos o chão sob os pés? A forma como lidamos agora com as nossas experiências determinará a forma de lidarmos com os desafios no amanhã. Será apenas mais do mesmo? Quando não ocorre a imersão na água, conforme Lutero, “e se deixa a pessoa antiga correr solta... a desvirtude vai crescendo... a pessoa antiga não para de desenvolver sua índole natural.” (Catecismo Maior)

Como lidamos então com situações em que perdemos as nossas referências e ficamos desorientados? Abrimo-nos para o que é incomum e assustador, ou nos retraímos para o primeiro reduto que se nos apresenta? Diante do perigo, conseguimos permanecer serenos e receptivos? Encaramos os acontecimentos que se avizinham? Valemo-nos dos recursos que temos e então mergulhamos de cabeça na situação? Fazemos de tudo um estado de calamidade e emergência? Enrijecemos o nosso corpo e ficamos a espreita de um momento oportuno para nos safarmos do perigo? Optamos pelo ‘efeito boiada’? Somos pessoas que admitem medos e dúvidas? Concedemos a eles um espaço? Procuramos desmistificar os problemas, recolocando-os na esfera do real, para então lidar com eles de forma sóbria e objetiva? O que fazemos quando, em meio a uma realidade que nos é estranha, percebemos nosso despreparo? Ao sermos confrontados, verdadeiramente, com todas as coisas nas quais nos apegamos ao longo da vida ocorre inevitavelmente uma ruptura e transformação.

Mergulhar e ressurgir deixa para trás a compulsiva necessidade de autopreservação e liberta para a missão. Graças ao batismo podemos seguir em frente, transcender tudo que nos trouxe até aqui. “Não desviemos os nossos olhos! Não fechemos os nossos ouvidos e a nossa boca! Vamos seguir em meio a este mundo que se esfacela, olhando para a rocha eterna, da restauração que não tem fim.” (Paul Tillich)

No Evangelho de Mateus as coisas importantes ocorrem no alto de uma montanha, entre o céu e a terra. É lá que o Ressurreto aparece mais uma vez a seus amigos e colaboradores. Um grupo que experimentou perda, decepção e desânimo. Muitos não conseguiam acreditar em sua ressurreição. Não queriam, mais uma vez, criar expectativas para, em seguida, colher nova decepção. Mateus descreve estas reações de forma sóbria. Os céticos e os menos céticos acabam subindo o morro...

“Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado...” (Mt. 28, 18s)

“Ide...” - Não recuem. Não se retraiam. Não se recolham às fórmulas conhecidas. Cuidado com as construções mentais que condicionam o jeito de falar e de agir. Interajam com o mundo sem preconceitos. Evitem as respostas e julgamentos pré-concebidos. Ensinem e aprendam. Usem intensamente, sem reservas, o coração e a mente de vocês. Façam um esforço para perceber e acolher as coisas como são. Confiem no vestígio pascal que se move para agir no comportamento e na envergadura dos seres humanos e suas comunidades. Sem pressão por resultados. Sem tensão desnecessária, num clima de confiança, contemplação, acolhimento, aprendizado e crescimento.

Oração: Dirigimo-nos a Ti, Deus Pai, para que em teu compassivo coração, toda a criação encontre vida e salvação. Para que o Universo e cada um de nós, mergulhado no Amor Divino, sejamos testemunhas da ressurreição, da graça e restauração que não tem fim. Amém!

 


Autor(a): Hermann Wille
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Meditação
ID: 23346

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