É meio-dia. Junto com Wellington Conceição sento no pátio, com piso de cimento, em frente a sua cela. Está quente, aconchegante, após uma longa série de dias de frio invernal. Wellington e eu temos sorte: não há o costumeiro barulho do presídio. Podemos trocar ideias com calma. A metade dos trezentos candidatos a liberdade condicional não estão em suas celas; estão trabalhando nas oficinas, costurando bolas de futebol ou consertando pregadores de roupa. Wellington tem 29 anos. Aos 19 anos foi condenado pela primeira vez. Desde então, já foi solto por três vezes e novamente preso. Há dois anos está novamente trancafiado. Será solto em agosto. Como será?
Trouxe comigo um livrinho de Vera Weissheimer: “ESCOLHAS”. Que título, num lugar que transmite exatamente o contrário de opções! A figura da capa sugere que, realmente, há opções de escolha no cotidiano: um grande portão duplo de madeira em um batente alto e curvo; uma aba do portão está totalmente aberta. O portão está semiaberto. Acima, o título: “Escolhas”. Olho para o rosto de Wellington enquanto ele observa a figura. Ele olha para mim com o rosto iluminado por um sorriso largo. Ele diz: “Eu gosto desta porta”, olhando por alguns instantes para o livro. Mas, chances de escolha ele nunca teve em sua juventude. Seu pai morreu num acidente de carro quando ele tinha dez anos, e sua mãe ficou, desde então, numa cadeira de rodas, sozinha com quatro filhos. Uma tristeza encobre o seu olhar como um véu. Não, ele nunca teve escolha entre duas verdadeiras opções que poderiam ter modificado a sua vida. Quanto mais eu e ele tentamos descobrir juntos, tanto mais o meu parceiro de diálogo silencia e se distancia. Fazemos uma viagem mental sobre opções para a sua vida após a sua próxima soltura em dois meses. Nada nos ocorre. Ele busca meu olhar, roça meu braço e pede pelo endereço da minha igreja.
Wellington é um dos 1.800 detentos desta prisão. No estado de São Paulo são mais de 160.000. As celas estão superlotadas. Na cela de Wellington vivem 13 pessoas em seis leitos. As condições não são muito diferentes daquelas que Wellington tinha antigamente na sua casa. Se hoje ele adoece e tiver sorte, recebe um comprimido analgésico. Se, após uma semana, não apresentar melhora, receberá mais. Se isso não resolver, ninguém mais poderá ajudá-lo. Não há médicos no assim chamado “ambulatório”. Assim como com ele, isso ocorre com dezenas de milhares de detentos em São Paulo.
Vivemos numa cidade dividida. Não estou falando da cidade de Berlim antes da queda do muro. Vivo em São Paulo, numa sociedade dividida por possibilidades de cultura, de escolhas na prevenção de doenças e pela qualidade da infraestrutura material e cultural, como transporte e segurança. Não há paz nesta cidade. Há um ano, maciças demonstrações públicas estão na ordem do dia. Não só Wellington e seus companheiros de desdita no bairro “Parque Santa Tereza”, nas favelas e nos presídios superlotados da cidade, mas nossas elites sociais, culturais e econômicas são prisioneiras da sua qualidade de vida, do distanciamento social e do separatismo emocional em relação a Wellington e da sua impossibilidade de escolha atrás dos portões aferrolhados de sua juventude e de seu momento presente, que o fazem desaprender sua criatividade e suas perspectivas.
Os membros de nossa igreja luterana fazem, em sua maioria, parte da sociedade privilegiada, que querem preservar a qualquer preço e não compartilhar suas propriedades sociais, culturais e econômicas. Não querem estabelecer a igualdade de escolhas para todos. Reter e multiplicar o que têm! Uma necessidade humana.
Conservar o status da propriedade, manter a identidade social e cultural. Este também era o lema dos israelenses na escravidão babilônica a partir de 597 a.C. Os princípios do exercício da religião, o templo sagrado em Jerusalém, não estavam disponíveis. A fim de evitar que as particularidades dos judeus se afundasse totalmente na miscelânea de povos da Babilônica, teólogos e sábios judeus enalteciam o judaísmo e a fé judaica. A nata da sociedade israelense conduzida para o exílio foi desafiada a encontrar novas formas para a sua religião, sem se separar da população da cidade de Babilônia.
E é nessa situação que se encaixam as palavras do profeta Jeremias (capítulo 29, versículo 7): “Trabalhem para a paz e a prosperidade da cidade. Orem por ela, porque, se ela tiver paz, vocês também a terão”. Deus não é um deus de um grupo, ou de uma classe social ou política, nem de uma nação ou de uma ideologia. Deus é Deus para toda a comunidade. Jeremias encoraja também nós, luteranos: “Trabalhem todos em prol do bem estar de São Paulo! Cuidem para que hajam estruturas sociais aceitáveis para todos!”. Deus nos convida a pensar com criatividade e a agir. Ele quer uma paz social, baseada em justiça e igualdade de escolhas.
Também os luteranos são convocados, pela fé, a unificar e ajudar uma sociedade cativa, estraçalhada em seu âmago. A proposta é abrir um portão para Wellington, um portão aberto para novas perspectivas de vida, excluindo, ao máximo, as probabilidades de seus filhos e filhas vivenciarem as situações adversas como ele viveu.Amem. Em nome de Jesus. Amem.