O Salmos nos inspira a refletir sobre a nossa vida. às vezes ele nos falam das transgressões, daquilo que podemos mudar na nossa forma de pensar. Por vezes, os Salmos são protestos diante da maldade que ocorre no mundo. Há ainda os Salmos que lamentam diante das dificuldades da vida. Mas também há Salmos que nos fazem refletir sobre a fauna e a flora, pois utilizam imagens e metáforas no mundo animal e vegetal. É isso que encontramos no Salmo 92. Lá temos uma reflexão teológica e espiritual sobre a realidade conflitante do ser humano a partir de exemplos da natureza. A oração bíblica presente no Salmo 92 menciona a erva comparando-a com os perversos, ao mesmo tempo em que reflete sobre o justo como quem se torna semelhante à tamareira e ao cedro. O próprio salmista se compara com um bovino selvagem. E a pergunta que fica é: podemos pensar em espiritualidade ecológica?
A fauna e flora podem ajudar o ser humano a compreender a sua relação com o mundo, bem como com as demais pessoas. Toda a natureza possui a capacidade de transmitir uma lição de vida ao ser humano, sendo que tal lição revela a palavra de Deus e uma sabedoria específica nela contida.
A pessoa que ora o Salmo 92 utiliza metáforas e comparações com a fauna e a flora. Pois, provavelmente esses exemplos estão relacionados com o contexto geral das pessoas que irão ouvir a oração e, por isso, o salmista utiliza diversos vegetais e animais como forma de ilustrar sua fala. Isso nem sempre acontece em todos os Salmos, no entanto, a nomeação de árvores, vegetais baixos e animais chama a atenção do ouvinte-leitor dessas orações bíblicas.
Como estrutura o Salmo apresenta um discurso individual. Em grande parte do Salmo não sabemos quem é a pessoa que ora (v. 2-4), sendo que depois, o salmista adota, na parte central do poema (v. 5-12), a primeira pessoa do singular, falando a partir de si mesmo. Chama a atenção que em somente um momento, o “eu” do salmista cede espaço à visão comunitária, sendo que, no v. 14b, o salmista, ao olhar para o templo, diz “nosso Deus”, fazendo uso do plural – “nós”. Além disso, o eu do salmista, por sua vez, dialoga com o tu, que é o Senhor, Deus de Israel. Onde Deus é invocado sete vezes no Sl 92 (v. 2a.5a.6a.9a.10a.14a.16a), sendo sete importante para a cultura hebraica, pois assim ele faz referência para a semana na qual houve a criação de Deus (Gn 1,1–2,4a).
Em grande parte, o Salmista faz uma contraposição entre as pessoas que são boas e as pessoas que são ruins. No final do salmo, ao terminar sua oração, as palavras do salmista parecem até confundir-se com as palavras dos justos (v. 16). Todavia, para caracterizar o comportamento e o destino de ambos os grupos – dos justos e dos malfeitores perversos –, o salmista envolve, de forma extensa, comparações e metáforas ligadas à fauna e à flora.
Quando realidades caóticas atingem a pessoa, é difícil encontrar palavras para descrever o que acontece. Isso vale também para o salmista no Sl 92. Por isso, ele usa a palavra e a imagem da erva. Em muitas passagens a erva tem características positivas. Aqui o
Salmista adota uma outra intenção. As ervas à qual o Salmista se refere a uma espécie de gramíneas, ou seja, vegetais herbáceos, tratando-se ora de plantas selvagens, ora de plantas cultivadas pelo ser humano (Sl 104,14). Ao usar a erva como metáfora para os perversos, o Salmo 92 quer dizer que os “perversos floresceram como erva” (v. 8a) e que, assim, “brotaram todos os malfeitores” (v. 8b). No entanto, o destino dos dois seria “a supressão deles”, e isso “para sempre” (v. 8c). Cabe, portanto, às pessoas, de modo especial as insistentes na perversidade, aprender da erva a lição da brevidade e, com isso, a sabedoria de que, em princípio, será substituída rapidamente por outra erva. Mais ainda, nasce com isso um contraste irônico em relação aos perversos e malfeitores: a presença deles será curta (v. 8a), mas sua ausência será eterna (v. 8c). Para o justo sofredor, por sua vez, o Sl 92 prevê outro destino.
A segunda imagem no Sl 92, traz um animal: o “bovino selvagem” (v. 11a). Mas porque o Salmista iria comparar o ser humano a um boi selvagem? Segundo a literatura bíblica, o boi selvagem é “sinônimo de vigor e força, e até de soberania e liberdade”, pois o ser humano não tem poder sobre ele e nem consegue domesticá-lo (Jó 39,9-10). Mas, por mais forte que este animal seja, Deus exerce seu domínio sobre ele (Jó 39,9-10). E esse é um dos motivos pelos quais o Salmista usa essa comparação. Para afirmar que o ser humano é livre, que a criação de Deus é majestosa. Ademais ele quer dizer, “mesmo que muitos animais ameaçassem os humanos e que, por isso, estes últimos os combatessem, isso não impedia de também admirar tais animais”. Assim, ao observar a flora e a fauna o ser humano também pode aprender, que elas podem transmitir sua sabedoria.
O cedro existia, sobretudo, no Líbano e na Cilícia, mas não em Israel, por crescer em regiões montanhosas, sobre solos rochosos. Com sua altura de trinta a cinquenta metros e com um diâmetro de tronco de até dois metros, o cedro fornece madeira preciosa de construção, sobretudo por sua resistência. No mundo antigo, as diversas nações a importavam para construir navios (Ez 27,5), templos, palácios e móveis (2Sm 5,11; 7,2.7; 1Rs 5,20.22.24; 6,9.10.15.16.182x.20.36; 7,22x.3.7.11.12; 9,11; Jr 22,14; Ct 1,17; 8,9; Esd 3,7; 1Cr 14,1; 17,1.6; 22,42x; 2Cr 2,2.7), e até ídolos (Is 44,14). Além disso, conforme as leis de culto no Pentateuco, “a madeira do cedro e/ou as lascas dela eram importantes para ritos de santificação e purificação (Lv 14,4.6.49.51.52; Nm 19,6)”.
O que, por sua vez, caracteriza a presença do cedro nos Salmos? Deus tem sobre essa árvore majestosa (Sl 29,52x). O Senhor, Deus de Israel, é contemplado como quem “plantou os cedros do Líbano” e os sacia com a chuva que oferece (Sl 104,16). O justo” é analisado como quem “crescerá como um cedro no Líbano” (v. 13b). De um lado, cabem-lhe, portanto, altura, majestade, grandeza, poder, realeza e longevidade, a fim de servir a projetos de construção e à saúde física e espiritual dos seres humanos. De outro lado, por mais que se destaque e possa ter um bom futuro, o justo, como cedro, deve estar consciente do poder de Deus sobre ele e da primazia de Israel.
Quem reza no Salmo 92 contempla repetidamente fauna e flora. Além disso, o orante observa que, em meio à natureza, existem os processos de “florescer” (v. 8a.13a.14b), “brotar” (v. 8b), “crescer” (v. 13b), “plantar” (v. 14a), “prosperar” (v. 15a), “ser seivoso” (v. 15b) e “ser exuberante” (v. 11b.15b). Mais ainda, assim como existem “elevações” (v. 11a), também há a possibilidade de ocorrerem “supressões” (v. 8c). Com esse olhar atento e pormenorizado para a natureza, nasce a ideia de que fauna e
flora guardem uma lição de vida e/ou uma sabedoria própria para o ser humano, sendo que esta, constantemente, culmina na reflexão sobre Deus.
Os Salmos convidam a acolher e a respeitar a natureza. Consequentemente, a destruição de fauna e flora apenas iria eliminar um importante lugar de encontro com Deus.
Baseado em: GRENZER, Matthias. Erva, Bovino Selvagem, Tamareira e Cedro. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 64, p. 66-86, jan./abr.2020. Disponível em: <10.17771/PUCRio.ATeo.47868>. Acesso em: 17 jun. 2021.