“Ao Senhor Deus pertencem o mundo e tudo o que nele existe” Salmo 24
O salmo intercala perguntas e respostas. Traz diante de nós uma reflexão que se encontra no âmbito do culto e da liturgia. O Salmista por três vezes faz uma pergunta é em seguida obtém as respostas (v. 3s,8,10). Não são perguntas meramente retóricas, aquelas que se fazem porque já sabemos as respostas. São perguntas que não são feitas por apenas uma única pessoa, diversos participantes são responsáveis ora pela pergunta, ora pela resposta ora pela aclamação. Por isso, o Salmo é uma alternância de várias vozes, várias pessoas que possuem perguntas e querem respostas. Dessa forma, o salmo 24 resume em si uma proclamação popular, traz em si as vozes de várias pessoas e suas dúvidas. Esta alternância de vozes e o consequente envolvimento de diversos participantes mostra que o gênero de nosso salmo é a liturgia.
A liturgia é algo que faz as pessoas se encontrarem com um propósito em comum. Assim como é o culto. Mesmo que tenhamos várias dúvidas e questionamento. No culto todas as pessoas se reúnem para louvar, agradecer e interceder a Deus, o Criador. O salmo 24 é uma liturgia de ingresso. Pois, há referência ao momento de entrada; “subir” (v.3), “entrar (v.7b,9b). Contudo, há uma significativa diferença no que tange ao sujeito dessa entrada: no v. 3 se trata do ingresso de pessoas, nos v.7b,9b da chegada do rei da glória, i.e., de Deus. Além disso, o Salmista se preocupa em deixar bem explicito às pessoas que elas precisam ter um compromisso ético diante de Deus: “Somente aquele que é correto no agir e limpo no pensar”. Pois são essas pessoas que poderão estar na presença do Rei da Glória, como dizem os versículos 8 e 10. Podendo assim acessar o âmbito e o espaço sagrado no qual Deus se encontra (v. 3), passando pelos portais para a entrada do próprio Deus (v. 7-10).
Essa liturgia de ingresso ocorre na entrada, nos umbrais, em frente à porta. É como um convite para que a pessoa entre no espaço no qual se encontra Deus. No Antigo Testamento, o templo de Jerusalém era o lugar no qual Deus habitava. Por isso, essa liturgia de ingresso adquiria um caráter especial. Era um cerimonial litúrgico festivo que se desenrola entre os peregrinos e os agentes do templo (sacerdotes, levitas, cantores), na entrada do pátio do santuário, provavelmente junto aos portões de acesso. Conforme Êx 23.14ss cada israelita deveria comparecer por ocasião das três grandes festas anuais “diante da face do Senhor Deus”. Na chegada ao santuário os peregrinos (leigos) perguntam pelas condições de ingresso e permanência no âmbito do sagrado (v.3); o pessoal do templo lhes dá a resposta (v.4) e, enquanto vão tendo acesso ao “lugar santo”, os abençoa e caracteriza como pessoa que adoram a Deus e recebem dele a sua promessa de salvação (v. 5-6).
Já os versículos 7-10 nos falam de uma outra forma de liturgia de ingresso, que se dava na frente de um portão ou entrada. Nesses versículos fala-se de uma liturgia do portão, ela não era como a peregrinação anual dos leigos até o Templo, era uma procissão, conduzida por agentes do sagrado, ainda que eventualmente acompanhada por leigos. Era de uma procissão, porque não são pessoas (como no caso da peregrinação), mas é o próprio sagrado (“o rei da glória” - Deus) que pede acesso. Esta procissão certamente conduzia e celebrava a arca do Senhor.
Assim, o Salmo relata e registra duas situações distintas: a peregrinação ao santuário e procissão da arca. Os participantes não são os mesmos: a procissão é dirigida por pessoas que desempenham alguma função no Templo, enquanto a peregrinação é composta por todas as pessoas que creem em Deus e vem de lugares perto ou longe de Jerusalém. E esses dois momentos distintos foram incorporados ao mesmo Salmo, formando um único texto. E o que liga e conecta ambos os eventos são as festividades que ocorrem diante de “portas”, como ritos de entrada.
Uma das coisas mais interessantes é o fato de que antes deste Salmo virar texto e ser usado numa celebração litúrgica ele foi vivido e vivenciado por muitas pessoas. O texto em si é um testemunho de várias pessoas e várias vozes com pensamentos diferentes, meios de vida diferentes, oriundos de região diferentes e espalhados por toda a região. E todas as pessoas se reúnem com um mesmo propósito em Jerusalém. Ou seja, no seu lugar de culto a Deus.
Para isso, o Salmista nos faz refletir sobre onde estão as nossas portas e portões. Onde está a linha que me separa dos outros. O salmista quer que possamos pensar que precisamos das demais pessoas! Que não apenas nos fixemos nas nossas próprias portas e entradas e, assim, não deixemos mais ninguém passar ou entrar. Afinal, se fechamos as portas e as passagens para as pessoas como irá entrar o Rei da Glória, o próprio Deus?
Ser igreja de Jesus hoje é estar com as portas abertas, mas também nossas mentes! Pois o juízo final e a condenação não cabem a nós, não podemos nós sermos as pessoas que irão dizer quem pode ou não estar na presença de Deus. Cristo veio para salvar e abençoar a todas as pessoas! E para isso, precisamos deixar as portas físicas e de nossos corações sempre abertas!
Que possamos ler este Salmo como um meio de esperança de que Deus une as diferentes pessoas ao redor de si. Que através do exemplo de Cristo todos nós hoje podemos nos dirigir até a presença de Deus e louvar seu nome.
Baseado em: SCHWANTES, Milton. Salmo 24: uma liturgia singular. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 22, n. 3, p. 283-304, 1982. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/1323/1274. Acesso em: 30 jun. 2021.