Há poucos dias, um dos jornais mais importantes do País relatou a experiência da mulher alpinista que, socorrida em tempo, a mais de seis mil metros de altitude, conseguiu ser salva na paisagem gélida da Cordilheira dos Andes. Em meio aos chamados agoniados do parceiro e traumatizada pela noite de terror, a jornalista afirmou: Senti que o fim estava próximo. Mas ela sobreviveu. E continua firme a sua vontade de retornar às montanhas. Finalizou o seu depoimento, lembrando: Foi ele, Eduardo, meu parceiro, quem me ensinou que estar nas montanhas é estar mais perto de Deus..
Neste mundo tão avesso à presença de Deus, ainda que o depoimento da alpinista sobrevivente careça de uma maior argumentação, ele evidencia muita coragem. Trata-se de um testemunho que emociona e poderia ser a expressão de confiança, um grito de socorro de uma pessoa em busca de consolo. O louvor a Deus pode acontecer, segundo as palavras do salmista (Salmo 148), do alto das montanhas, nas alturas dos céus. Os astros - assim como todos os elementos criados, nas profundezas dos oceanos e em todos os lugares onde a criação se faz realidade - são convidados a louvar ao Senhor. Verdade é que a proximidade do Deus Criador não depende da vontade individual de quem se dispõe a louvar este Deus, cujo poder criador é soberano e está acima de qualquer iniciativa e intenção humanas.
O Deus do povo cristão é o mesmo Senhor que mostra a sua soberania sobre todos os ídolos antigos e modernos. Revelando-se, o Deus da Bíblia questiona mitos e quebra projeções humanas. Conforme o testemunho bíblico, a epifania de Deus pode suceder no cume mais alto das montanhas. Foi isto que aconteceu na história do povo eleito, acampado em torno do monte do Sinai e em muitas outras oportunidades, enquanto seguia rumo à Terra da Promissão. A Escritura Sagrada, a Bíblia, tão humana e tão divina ao mesmo tempo, é fértil para veicular fatos e detalhes a respeito do relacionamento de Deus com o seu povo querido.
O livro, fonte geradora da confiança do povo cristão, é rico em revelar a plasticidade e a estética de Deus. Seja através da sua palavra, dinâmica e criadora, seja por intermédio dos fenômenos da natureza e sobretudo a partir da revelação pessoal, em Jesus Cristo, o Deus da Bíblia se faz conhecido. Revela o seu poder, manifesta a sua misericórdia e dá a conhecer qual é a sua vontade. Torna-se, assim, Senhor compreensível e próximo. O Deus Criador evidencia a sua disposição prioritária de estar junto das suas criaturas e perto da sua criação. Ele faz isto de graça! A iniciativa é Dele. A confiança das pessoas sensíveis à presença de Deus não se fundamenta em manifestações teológicas místicas e pouco compreensíveis. Quando a teologia e a antropologia estabelecem parcerias, a profundidade de Deus se torna acessível e a identidade humana evidencia transparência. Acontece, então, o abraço entre a realidade de Deus e a realidade humana. A ponte para que aconteça o diálogo constante e fraterno está construída. O reformador suíço Calvino falava do mundo criado, lugar da revelação de Deus, na perspectiva de grande cenário da glória de Deus (theatrum gloriae Dei). O novo ser humano, por causa de Jesus Cristo, é motivado a glorificar este Deus Criador. Em comunidade, ele festeja agradecido e inspirado a liturgia da grandeza das obras de Deus. Até mesmo a majestosa Cordilheira dos Andes, também quando se manifesta em sua adversidade mortal, faz parte do cenário a serviço do teatro da glória de Deus. Diante da grandeza do Deus Criador, assim no Cântico de Débora no livro de Juízes 5, 4-5, até mesmo os céus gotejam e os montes vacilam diante do Senhor. A teologia da revelação nos faz descobrir este Deus humano. Ele deseja viver na companhia do seu povo eleito. É Senhor que vem em socorro. Quando passares pelas águas, eu serei contigo, quando pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti (Isaías 43, 2).
As ações de Deus provocam reações humanas. Para os críticos mais radicais do movimento religioso, prevalece a tese de que Deus está morto. O filósofo Nietzsche diz: Fomos nós quem o matamos. A julgar pelas manifestações egoístas humanas, a pessoa deixou de ser a imagem criada à imagem e à semelhança de Deus. O contrário é que aconteceu. Os deuses do mundo religioso resultam das projeções humanas. Identificam-se com as carências, em especial, com os medos humanos; tornam-se criações dos desejos pessoais não realizados da espécie humana. O homem em todos os tempos tentou promover a sua autodivinização. Ao invés da conquista de uma felicidade pessoal maior, as pessoas humanas não se tornaram mais felizes; tampouco promoveram a felicidade alheia.
Não poderia aquele testemunho expresso pela alpinista renascida do gelo e da neve servir como desafio para juntos colaborarmos na construção de uma vida mais humilde e agradecida? E não estará a revelação do Deus crucificado em Gólgota a serviço da boa notícia de que é possível vivermos o espaço que desde o princípio do mundo nos foi assegurado? É preciso que Deus ocupe o lugar que só a Ele pertence! Quando Deus ocupa o lugar que é seu exclusivamente e quando nós vivermos o lugar que de fato nos compete, então tudo vai bem! É desse jeito que colaboramos para a cultura da paz, justa e generosa. Acontecerá, então, uma santa subversão. Para sempre cairá na desgraça aquela necessidade egoísta vidrada na auto-realização, sempre fundamentada na política do merecimento e ancorada na manutenção do poder próprio.
Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC
Jornal A Notícia - 21/01/2005