Diariamente surgem milhares de livros. Querem ser lidos por alguém. Bons autores fazem história e deixarão saudades. Outros fazem sucesso no momento e, assim como surgem, se vão. Algumas publicações fazem tanto sucesso de venda que se tornam ícones da literatura mundial. Entre estes está a Bíblia. Não sei qual é sua relação com ela. Sei, esse livro também não é uma unanimidade. A Bíblia sempre foi bombardeada aqui ou proibida ali. Sempre houve quem quisesse acabar com sua hegemonia como livro dos livros e palavra de Deus. Observa-se uma sistemática desconstrução da auto-atribuída autoridade bíblica. Experiências pessoais ou experiências comunitárias passam a ter mais autoridade e legitimidade que esse livro dito de inspiração divina. Uma importante revista brasileira, voltada à adolescência e juventude, há pouco tempo publicou artigo de capa questionando sobre a autenticidade da Bíblia e sua autoridade. Milhares de jovens leram o artigo. De que forma foram influenciados? Não que seja mau fazer questionamento à autoridade bíblica, até porque é pelo questionamento que as verdades ficam mais bem estabelecidas..
Na semana em que o Brasil sepultou sua escritora imortalizada Raquel de Queiroz (1910-2003), fugida da seca do Ceará, calou-se mais uma voz que deixa sua experiência cravada neste chão de angústias e buscas. Ela não é autora bíblica (portanto também não é tão questionada), mas em suas dificuldades viscerais compartilha o mesmo que o livro dos livros faz. Em 1930, ao escrever Diversidades em Tempo de Seca, nos deixou uma lição à altura de um dito inspirado:
Quando Chico Bento, depois daquela noite passada ali, no abandono da estrada, chamou a mulher e, ajudando a levantar um dos meninos, foi andando em procura do povoado, em vão buscou, pelas voltas do caminho, sentando nalguma pedra, o vulto de Pedro. Na estrada limpa e seca só se via um homem com uma trouxinha no cacete, e mais à frente, dentro de uma nuvem de poeira um cavaleiro galopando.(...) chegaram ao Acarape, e debalde perguntaram pelo menino a todo o mundo. Não... Ninguém tinha visto... Sabia lá!... A toda hora estava passando retirante... Numa bodega, onde o vaqueiro novamente fez indagações alguém lembrou:
- Homem, por que você não vai falar ao delegado? Ele é que pode dar jeito. Mora ali, naquela casa de alpendre.
No modo que agora era o seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento endireitou para a casa apontada, que ficava meio apartada das outras, tendo de um lado um alpendre onde se viam algumas cangalhas de palha roída. E bateu à porta, enquanto Cordulina se sentava no chão, na beirada do alpendre. Lá de dentro, uma voz de mulher disse baixinho:
- Abre não, menina, é retirante... É melhor fingir que não ouve...
Chico Bento escutou; e sua voz lenta explicou, dolorida:
- Não vim pedir esmola, dona; eu careço é de ver o delegado daqui...
A Bíblia continua apontando, com absoluta clareza, para o propósito da palavra de Deus: ela traz discernimento, dividindo e classificando aquilo que humanamente é impossível perceber. A Bíblia tem essa prerrogativa do discernimento em seu conteúdo. A Bíblia ensina a olhar para além das aparências ou das primeiras impressões. A Bíblia ensina a olhar para os outros com justiça e amor. Ela não apenas aponta a injustiça do preconceito e do descaso, como também aponta a solução. É bem verdade que o texto bíblico vai surgindo à medida que o povo de Deus caminha, em parte como inspiração divina e em parte como experiência vivida, mas sempre como resultado direto da ação reveladora e mística de Deus. Certamente, isso lhe confere ainda maior autoridade, assim como é concreto e sensível um escrito de Raquel. Ou seja, usando as palavras de Brunner, a Bíblia não vem apenas dos cristãos; os cristãos também vêm da Bíblia. Há bíblias porque há cristãos. Há cristãos porque há Bíblia. A Bíblia é o chão do qual nasce toda fé cristã.
A Bíblia, mais vendida que lida, haverá de inspirar mais motivações de lermos bons livros, que, sensíveis como ela, trazem discernimento às atitudes humanas. No entanto, sua leitura é absolutamente insubstituível. É basal.
Rolf Rieck
pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
na Paróquia São Mateus
em Joinville - SC
Jornal ANotícia - 07/11/2003