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Culto da Reforma na Comunidade Evangélica de Joinville

Paróquia Cristo Redentor

31/10/2014

Culto da Reforma na Comunidade Evangélica de Joinville
Paróquia Cristo Redentor

Textos: AT – Isaías 62.1-12 – Epístola: Gálatas 5.1-11
Prédica: Romanos 1.16s; 3.21-28

Caríssimas irmãs e irmãos em Cristo,

Cara Comunidade Evangélica de Joinville,

Estamos reunidos numa noite muito especial e minhas primeira palavras são de agradecimento por este honroso convite para compartilhar com vocês a Palavra de Deus num dia que entrou na história do Ocidente, mesmo que seus principais protagonistas sequer o pudessem imaginar quase 500 anos atrás. Normalmente, é assim que acontece. Vejamos.

Nós vivemos momentos importantes nos últimos dias com as eleições que ocorreram em todo o país. Passado o domingo 26 de outubro, parece que a vida volta ao normal. Mas o que significa normalidade nesse caso? A volta da especulação financeira para pressionar os governos eleitos? As contínuas denúncias de atos de corrupção em todos os níveis, em todos os partidos, em todos os três poderes, sem que encontremos um remédio efetivo? A preocupação com a possibilidade de queda do nível de emprego e a dificuldade das pessoas para pagar as contas, as dívidas? Normalidade num país como o nosso deveria ser um alerta para uma vigilância cidadã constante diante dos processos sociais, econômicos e políticos que nos envolvem a todos e dos quais não podemos fugir sob pena de inviabilizarmos nossa vida cotidiana. Por isto, julguei muito oportuna a Carta das Eleições 2014 divulgada pelo pastor Presidente Nestor Paulo Friedrich, antes das eleições. Nela ele advertia:

¨A IECLB evita a tentação de exercer qualquer tipo de tutela sobre os seus membros. A partir do Evangelho, as pessoas, ao mesmo tempo cidadãs e membros da Igreja, têm uma profunda liberdade para agir responsavelmente na sociedade e no mundo. Nenhuma pessoa pode ser coagida a agir contra a sua consciência. Nenhuma liderança eclesiástica pode impor qualquer candidatura ou proposta político-partidária. Deve, isso sim, incentivar a reflexão sobre valores e princípios a serem considerados nas escolhas políticas. Deus fica descartado como cabo eleitoral e nenhuma candidatura pode arvorar –se como preferida de Deus. O uso do nome de Deus para mascarar interesses particulares torna-se uma ofensa a Seu nome. A defesa de interesses pessoais e corporativos, inclusive de igrejas, representa uma forma de egoísmo grupal. Pisoteia o valor sublime da política que se caracteriza pela dedicação ao bem comum, pela defesa da dignidade humana e pela transformação da sociedade. A partir da liberdade proporcionada por Cristo, as pessoas evangélico-luteranas chamam a si a prerrogativa da crítica e do questionamento às instituições quando estas não estiverem a serviço da justiça, da paz e da integridade da criação. Pessoas evangélico-luteranas não voltarão as costas para a política quando regimes e governos estiverem prestando um desserviço à sociedade. Contribuirão, isso sim, para a sua reforma, seu redirecionamento, sua transformação ou sua substituição segundo os propósitos de Deus.¨

Amigas e amigos,

Percebo nesta Carta dirigida a todos os membros da IECLB um claro posicionamento que tem como fundamento teórico a teologia da Reforma: notem que algumas palavras sobressaem no texto do Pastor Nestor: tutela, liberdade, coação, Deus não é cabo eleitoral de ninguém, a falsidade no uso do nome de Deus para mascarar interesses particulares ou corporativos e, não por último, as diversas formas de pisotear o valor sublime da política. A política como exercício da cidadania e da defesa do bem comum, isto é, do bem de toda a sociedade, a começar pelas pessoas e grupos menos favorecidos e mais vulneráveis, tem um valor sublime, tanto diante da sociedade quanto diante de Deus. Nós precisamos compreender, portanto, que a política do bem comum não terminou no domingo, mas continua todos os dias e nos desafia a colocarmos os nossos pequenos grãos de areia na construção democrática do país cada dia. E isto não é de lei, mas é algo que procede da fé, da liberdade que recebemos em Cristo. Por isto, nossa gente evangélica e luterana não cruza os braços passadas as eleições. Ou não deveria, afirmo eu modestamente.

Faço uso deste exemplo bem próximo de nós para mostrar que a redescoberta do evangelho de Cristo feita por Lutero em 1517 tem validade permanente na vida da igreja cristã, de todas as igrejas cristãs, como os últimos consensos ecumênicos têm demonstrado. Mas o que Lutero, na verdade, redescobriu? Sinteticamente, diria assim: Deus nos salva por graça, misericórdia e compaixão, por meio da fé em Cristo. E mesmo a fé que nos faz compreender, aceitar e viver da graça e por meio da graça é também dom de Deus. De modo que nada temos a apresentar diante de Deus que pudesse nos tornar justos, santos, piedosos, irrepreensíveis. Aliás, toda a nossa bondade, justiça, beleza de nada valem diante de Deus. É que nosso valor não procede de nós nem de nossas boas e importantes obras neste mundo, ele vem de Deus e tem como medida o Cristo. E se estamos em Cristo, como escreveu Paulo, somos nova criatura. Somente novas criaturas conseguem renovar este mundo. Mesmo quando elas não se encontram explicitamente presentes na comunhão da igreja.

O que vem a ser, então, a vida cristã? Por brevidade, responderia assim: é viver da graça e do amor, do perdão e da compaixão de Deus. E a partir dessa misericórdia divina, doar-se a si mesmo como cooperador de Deus para a transformação deste mundo, como Paulo escreveu em Romanos 12. Aliás, este é o cerne da espiritualidade luterana como escreveu um professor meu, o Dr. Hermann Brandt, no seu pequeno livro Espiritualidade – vivência da graça, em que comenta a incrível proximidade entre a teologia de Lutero e a teologia da libertação do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez. Gutiérrez fez afirmações muito semelhantes ao Reformador em sua interpretação do Cântico de Maria, de Lucas 1, embora quase 500 anos os separem.

Nesse cântico, a jovem mãe de Jesus canta que Deus derruba dos tronos os poderosos e exalta os humildes, que Deus enche de bens os famintos e despede vazios os ricos. Ambos os teólogos chegam à mesma conclusão: esta profecia de Maria não é apenas algo do passado. Pois Deus age sempre assim, Deus não suporta a soberba e a impiedade. Por isto ele exalta a humildade e fere com braço forte quem se acha grande, forte, poderoso e imune ao mal. No prefácio do texto de Lutero, publicado pela Editora Sinodal com o sugestivo nome de O louvor de Maria, o Reformador escreve algo que merece nossa atenção: “Deus criou o mundo do nada. E ele não mudou sua maneira de agir: até o fim do mundo ele quer transformar tudo aquilo que é insignificante, desprezado, miserável e morto em algo precioso, honrado, bem-aventurado e vivo. Por outro lado, ele quer reduzir tudo o que é alguma coisa [...] a nada. [..] Esta é a razão por que os olhos de Deus olham somente para baixo, nunca para o alto. [..] Os olhos do mundo e dos seres humanos fazem o contrário: olham somente para cima e querem erguer-se a todo custo [...] todos procuram coisas acima deles – honra, poder, riqueza, conhecimentos, bem-estar e tudo o que é grande e superior. Todos se juntam a pessoas desse tipo e gostam de servi-las. [..] Não é sem razão que, na Bíblia, poucos reis e príncipes são descritos como honestos. Por outro lado, ninguém quer olhar para baixo. Lá tem, pobreza, desonra, miséria, desgraça e angústia. Todo mundo desvia o olhar disso. Todos se afastam de pessoas dessa espécie. Evitam, rejeitam e abandonam essa gente, e ninguém se lembra de lhes ajudar e de trabalhar para que também elas sejam alguém. [...] Paulo ensina em Romanos 12: ‘Prezados irmãos/irmãs, não atenteis para as coisas elevadas, mas solidarizai-vos com os humildes’”.

Desejo sugerir a vocês nesta noite que a preocupação com as pessoas humildes, desgraçadas, angustiadas, abandonadas não é algo opcional para a fé cristã ou para quem se julga honestamente um fiel evangélico-luterano. Este olhar para baixo ou para os lados, este olhar misericordioso e compassivo para com a dor alheia se insere no coração mesmo da fé. E por que ouso afirmar isto? Porque não basta dizer hoje que somos salvos gratuitamente por graça através da fé, como algum dia aprendemos no ensino confirmatório ou numa prédica especialmente inspirada num culto ou retiro.

Esta afirmação está correta e eu concordo com ela. Mas a questão hoje é como viver a graça que nos salva por meio da fé. Se esta mensagem libertadora não se encarna na nossa vivência cotidiana ela cai no vazio da inércia e nos tornamos simplesmente cristãos de carteirinha, que – convenhamos – não serve para nada. O desafio que encontro na Carta aos Romanos, nos textos lidos, é redescobrirmos hoje e amanhã o que significa viver por graça e fé. E aqui me permito compartilhar uma leitura muito pessoal do que descobri relendo Paulo, como o fez Lutero. Paulo escreveu:
“Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê [...] visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: o justo viverá por fé”.

Explicando por partes:
1) precisamos superar a vergonha de sermos evangélicos e de confissão luterana neste país, como o apóstolo Paulo e tantas outras irmãs e irmãos antes de nós. Precisamos assumir esta fé que liberta de culpa, pecado e morte; e nos faz gente alegre e que alegremente assume o testemunho desta fé e se engaja na luta pela transformação desta sociedade injusta e desigual que fere a dignidade das pessoas, especialmente das mais frágeis;

2) isto ocorre porque a justiça de Deus não segue a lei de talião, do olho por olho, dente por dente. A justiça de Deus é diferente, ela é justiça evangélica, se revela no evangelho que nos fala de um Deus amoroso que não nos trata segundo as nossas incoerências e traições, mas por seu amor infinito revelado em Cristo;

3) esta justiça libertadora e transformadora, que restaura a alma e a vida de quem crê, não acontece magicamente, num abrir e fechar de olhos, mas como escreve Paulo, de fé em fé. Quando descobri esta parte do evangelho, me senti muitissimamente aliviado. Porque desde jovem, quando assumi o compromisso da vida cristã de forma mais consciente, sempre me sentia frustrado comigo mesmo. Eu pensava: Não sou digno do amor de Deus. Não ando conforme os seus mandamentos. Não assumo pra valer a vida de testemunho que Cristo espera de mim. Não sou um bom cidadão. Nem estudar, estudo direito. E por aí afora. Julgava-me um zero à esquerda na caminhada da fé cristã. E por que este sentimento tão negativo e pobre?

Porque não havia compreendido que a vida cristã é um desafio que quando começa não acaba jamais. Que a vida cristã é um aprendizado diário. Que a vida cristã é um converter-se cotidiano, todo dia; é um voltar-se para Deus e sua graça que se renova a cada manhã, no nascer do sol, e a cada noite no silêncio do descanso e da oração, que por vezes se resume a um gemido de dor e de entrega.

De fé em fé, escreve Paulo. Significa que a vida cristã é um processo, que experimentamos dia a dia, aprendendo e ensinando, caindo e levantando. A vida cristã não nos faz melhores do que os outros, mas se manifesta na liberdade que recebemos de e em Cristo para melhor servir e amar as pessoas, começando com quem está próximo de nós e se estende para além da família, para a sociedade e para os últimos dos seres humanos, sem qualquer discriminação. Ou seja, não tem medida o amor que nasce da fé em Cristo. É amor desmedido, que se faz solidário, crítico, politicamente transformador, socialmente justo e ecologicamente cuidadoso com a terra tão ferida por nossa sociedade do descartável . Viver a partir da justiça de Deus é algo extraordinário e libertador. Porque vem de Deus em Cristo. E isto é algo maravilhoso e transformador na vida pessoal, na vida comunitária e na sociedade, por mais que nos pareça o contrário. Por isto é que Paulo adverte a comunidade de Gálatas a não se deixar dominar pelo jugo da escravidão da lei e da justiça própria. Em Cristo e por meio de Cristo somos livres. E livres para amar e servir, sem ser mais escravos de ninguém, mas antes como fieis companheiros e companheiras do Cristo para realizar hoje sua obra, colocando sinais do seu reino aqui e agora. O Espírito de Cristo segue adiante de nós em direção a este reino da justiça, da paz e do amor incomensurável do Deus vivo que Jesus certa vez comparou a um grande banquete em que ele é o anfitrião e o servidor! Para esta caminhada ele nos chama hoje e amanhã.

Concluo com uma frase de Lutero que nos ajuda a compreender esta dinâmica nova em que somos inseridos e para a qual somos hoje, amanhã e sempre convocados por Deus mesmo:

A vida cristã não consiste em ser, mas em tornar-se, não na vitória, mas na luta, não na justiça, mas na justificação” (WA 57, Gal, p. 502).

Perguntada certa vez por que gostava dos luteranos, uma senhora bem humilde que se achegou à comunidade luterana em Cuiabá, MT, disse o seguinte: “Gosto dos luteranos porque são gente que luta!”. Pode não ser uma interpretação dogmaticamente precisa do que Lutero ensinou, mas esta senhora nos ajuda a compreender o sentido da fé em Cristo conforme a redescoberta feita por Lutero. Ser evangélico de confissão luterana nos coloca no caminho da luta pela justiça de Deus, a justiça que salva e dignifica o ser humano, pelo amor de Deus que não tem limites ou fronteiras. Que este Deus nos ajude a sermos fieis a esta justiça da fé que liberta, transforma e nos faz novas criaturas!

“E a paz de Deus, que excede todo entendimento, guarde os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus” (Fl 4.7). Amém.
 


Autor(a): Roberto E. Zwetsch
Âmbito: IECLB / Sinodo: Norte Catarinense
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Dia da Reforma
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 30579

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