Prédica: Gálatas 5.1-11
Leituras: Isaías 62.1-12 e Mateus 5.1-10
Autoria: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Liberdade! Ó Liberdade!
1. Introdução
O tema da liberdade acompanha os seres humanos em todos os tempos. Para algumas pessoas, liberdade é fazer o que se quer. Essa compreensão, no entanto, não dá conta de todo o universo de questões implicadas no conceito de liberdade. Importa resguardar que na noção cristã de liberdade sempre há a dimensão da liberdade de e para. Ou seja, liberdade sempre implica ter sido libertado de algo ou alguém para algo ou alguém.
Os textos previstos para fazer memória do movimento da Reforma têm em comum o tema da liberdade. Embora cada livro desenvolva o assunto à sua maneira, há ênfases e elementos que complementam a noção de liberdade.
Em Isaías 62.1-12, somos confrontados com a palavra profética. Profetas são, por excelência, arautos da liberdade. Não é diferente com aquele que a pesquisa bíblica costuma nomear como Trito-Isaías (56 – 66). Diante dos problemas sociais e religiosos do pós-exílio, o profeta exerce o ministério de consolação, que inclui curar os quebrantados de coração e proclamar libertação aos cativos (61.1). Ele não se cansa de anunciar que, não obstante todas as evidências em contrário, Javé tem a história nas mãos.
O Evangelho de Mateus aporta uma contribuição à celebração com palavras do sermão da montanha (Mt 5 – 7). Mateus diz que, tendo visto as multidões, Jesus subiu à montanha. Ali se dirige ao povo com as bem-aventuranças. À semelhança do que Moisés havia feito no Sinai, Jesus passa a instruir as multidões. Ao falar do reinado de Deus, Jesus deixa claro que ele começa aqui na terra. Basta verificar que nas oito bem-aventuranças, a primeira e a última dão a tônica da presencialidade com a expressão deles é o Reino dos céus. Os primeiros são os pobres no espírito. Os últimos, os perseguidos por causa da justiça. Pobres e perseguidos demarcam a moldura da fala de Jesus. Nessa moldura, temos dois grupos de três bem-aventuranças. Primeiro, os que choram, os que têm fome e sede e os mansos. No grupo seguinte, os que têm misericórdia, os puros de coração e os que promovem a paz.
A história tem mostrado que a luta pela liberdade tem o seu preço. Jesus que o diga. Com a Reforma não foi diferente. Também hoje a liberdade clama por pessoas militantes. A comunidade cristã tem na liberdade em Cristo a oportunidade única para empunhar esse estandarte.
2. O texto
A carta de Paulo aos gálatas apresenta o apóstolo em sua fraqueza. Embora não se saiba ao certo o que aconteceu com o apóstolo por ocasião de sua passagem pela Galácia, Paulo necessitou do cuidado e amparo da comunidade. Contudo, essa condição de fragilidade não o impediu de exercer seu apostolado com o rigor que o momento exigia. Para Paulo, importa retornar ao evangelho anunciado para não cair nas armadilhas do evangelho pautado pela Lei e proclamado pelos judaizantes.
Pelo relato de Atos 15, mencionado por Paulo em Gálatas 2, podemos perceber o quanto foi acirrada a discussão entre o grupo de Jerusalém e o grupo de Antioquia (os de fora da Palestina) por ocasião da assembleia (Concílio) de Jerusalém. Essa tensão acompanha a comunidade dos gálatas. Segundo O’Connor, os gálatas não gozavam de muita simpatia entre os gregos e eram considerados raça misturada, simplórios, imprevisíveis, cruéis, sem perseverança e fáceis de serem enganados (O’Connor, 2000, p. 199).
Conforme Atos 13, antes mesmo da chegada de Paulo e Barnabé à Galácia, já havia ali uma comunidade organizada de judeus que haviam sido assentados na região. Conforme Koester, os primeiros missionários cristãos não apresentavam um “cristianismo” separado do “judaísmo” (Koester, 2005, p. 132). Nas comunidades da Galácia, o conflito é entre judeus: de um lado, judeus fieis à Lei, de outro, judeus que reconhecem Jesus como Messias, portanto cristãos.
Esse grupo de judeus da Galácia que havia aderido à comunidade cristã fazia uma interpretação do evangelho que produziu fortes reações em Paulo. A pregação dos missionários chegados à Galácia depois de Paulo gerou um conflito entre o evangelho da cruz, anunciado pelo apóstolo, e o evangelho das ritualizações judaicas, anunciado pelos missionários que chegaram à comunidade quando o apóstolo já não estava mais presente. Por essa razão o apóstolo escreve a carta.
Na carta, escrita de forma franca e aberta, Paulo dá a entender que há um grupo de judeus que ataca o evangelho anunciado por ele com o objetivo de fazer com que judeus, mesmo sendo cristãos, voltem a seguir as práticas judaicas da Torá. Queriam também que os novos convertidos gentios fossem circuncidados e observassem a lei ritual para usufruir de todos os benefícios de sua condição recém-obtida como membros do povo de Deus (Koester, 2005, p. 133). É com esse pano de fundo que devemos entender toda a indignação e decepção de Paulo com a comunidade.
É nesse contexto de escolha entre o evangelho anunciado por Paulo, com base nos ensinamentos e na memória de Jesus crucificado e ressuscitado, e a proposta dos judaizantes da Galácia que o tema da liberdade emerge na carta. Para Paulo é inconcebível que judeus voltem a ser escravos da Lei, carregando consigo os gentios convertidos.
Nas palavras de Gálatas 5.1-11, Paulo revela a liberdade na perspectiva da graça e do Espírito. Argumentando com base no Evangelho de Jesus, o apóstolo rechaça a possibilidade de vida livre baseada na Lei mosaica.
O texto apresenta duas partes. A primeira é Gálatas 5.1-6. Nesses versículos, o tema central trata da opção entre liberdade e escravidão, entre Cristo e a Lei. A segunda são os versículos 7-11, que tratam da esperança que resta aos que ainda não aderiram ao “outro evangelho”.
Do ponto de vista exegético, as observações de Werner Wiese no Proclamar Libertação v. 35 se apresentam como oportunas.
V. 1-6 – Os termos liberdade e jugo de escravidão e seus cognatos libertar e submeter no v. 1 resumem praticamente tudo o que foi dito até aqui na carta. O v. 1 é, por assim dizer, a transição (não separação) entre a argumentação teológica e a parte parenético-ética da carta. O que o evidencia é a frase indicativa: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou”, seguida da frase com duplo imperativo: “Permanecei, pois, firmes e não vos submetais...” A partícula pospositiva grega oun, traduzida na versão da Bíblia de Almeida como “pois”, é o elo linguístico entre as frases. É importante observar os sujeitos destacados: Cristo é o sujeito da libertação. Esse é o indicativo da salvação. Os cristãos da Galácia são o sujeito da frase imperativa. Os imperativos resultam do indicativo (Wiese, 2010).
Também com relação às observações exegéticas relacionadas com a segunda parte do texto, Wiese destaca:
V. 7-11 – Nos v. 7-9, o apóstolo evidencia que o que os gálatas estão prestes a fazer não procede daquele que os “chamou na graça” (Gl 1.6) e ainda os está chamando (v. 8). “Vós corríeis bem” (v. 7a) é uma figura extraída do mundo do esporte, que Paulo usa várias vezes (Gl 2.2; 1Co 9.24; Fp 2.16). Ela mostra que a fé e a vida cristã não são algo estático ou inerte, mas dinâmico. Tudo o que os gálatas receberam em Cristo – a verdade dada no evangelho – agora está em perigo. Não é possível dimensionar a influência efetiva dos judaizantes sobre os gálatas. A figura do fermento (v. 9) é uma advertência séria para não se deixar afetar de forma alguma, pois pouco já é o bastante para contaminar o todo. Apesar das preocupações externadas, Paulo está confiante no Senhor de que os gálatas percebam o que está em jogo e se deixem “reconquistar” pelo evangelho, ao contrário do “perturbador” (v. 10; cf. também 1.7-9). Paulo nunca se pronunciou contra a circuncisão de crianças de famílias judaicas. Partindo disso e associado a Atos 16.1-3 e 1 Coríntios 9.20, alguns exegetas supõem que Paulo foi acusado de ainda pregar a circuncisão. No v. 11, ele estaria rebatendo a acusação. Isso dificilmente procede, pois Paulo foi perseguido por judeus por não pregar a circuncisão. Pregar a circuncisão contrapõe-se a pregar a Cristo (1Co 1.17, 23; 2.2; 2Co 1.19; 4.5) (Wiese, 2010).
Paulo argumenta que o sofrimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo é o fundamento da liberdade. Dessa liberdade, a cruz é o símbolo maior. Já o jugo da escravidão diz respeito à pregação dos judaizantes da Galácia. Seu símbolo é a Lei. Diante da escolha entre a escravidão e a liberdade, há uma decisão que precisa ser tomada. Escolher a liberdade implica assumir a vida da nova criatura em Cristo, vivendo o Evangelho na liberdade do Espírito. Escolher pela escravidão significa seguir nas orientações da Lei judaica. Essa escolha implica romper com Cristo e estar fora da graça de Deus. Escolher a Lei significa rejeitar Cristo e a graça divina.
3. Reflexões
No livro “Do Cativeiro Babilônico da Igreja“, Lutero mostra como até mesmo os sacramentos podem se tornar instrumentos do aprisionamento do Evangelho e da vida humana. Estruturas e instituições, em regra, pela sua própria natureza e função, tendem a cercear a liberdade. Na medida em que os veículos da salvação se tornam instrumentos de escravidão do ser humano, o próprio Evangelho é colocado em xeque.
Importante destacar que somente a pessoa que alcançou a liberdade em Cristo pode ser considerada verdadeiramente livre. Da mesma forma, somente uma pessoa libertada em Cristo pode se comprometer com a liberdade da cruz. Aqui adquire importância o que, segundo Paulo, a cruz e ressurreição de Jesus proporcionam aos que creem: perdão, vida e salvação. Para a pessoa cristã, liberdade é a condição decorrente do perdão, da vida e da salvação alcançados em Cristo.
Resgatando o pensamento de Paulo em Gálatas sobre a liberdade, Lutero expressa isso de maneira magistral quando, no livro “Da Liberdade Cristã”, escreve o seguinte: “Um cristão é um senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é um servidor de todas as coisas e sujeito a todos“ (Lutero, 1981, p. 9). As duas colunas da salvação que descrevem a condição da pessoa cristã no âmbito da fé e do amor constituem a essência da liberdade cristã.
O Dia da Reforma é uma data oportuna para resgatar a centralidade da dimensão teológica da Reforma. Embora o movimento tenha provocado desdobramentos em outras áreas (política, economia, eclesiologia), a dimensão teológica encontra toda a sua força na palavra de Paulo de Gálatas 5.1: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou“. Lutero inclusive se entende como parceiro desse processo de ser libertado.
Somente quem foi libertado em Cristo pode se tornar servo de todas as pessoas, como Paulo afirma em 1 Coríntios 9.19: Porque sendo livre de tudo, fiz-me servo de todos.
4. A pregação
O texto de Gálatas abre caminho para diferentes ênfases. Importa que a pessoa pregadora tenha clara a sua intencionalidade ao falar da liberdade, da liberdade em Cristo. Um primeiro caminho se mostra na própria situação vivida pelas comunidades da Galácia. A maneira como Paulo lida com o conflito surgido na comunidade e a forma enérgica como argumenta contra a escravidão patrocinada pela Lei tem muito a nos dizer acerca de práticas, rituais e narrativas que mais escravizam que libertam.
Um outro caminho pode passar pela lincagem entre a ideia de liberdade e o movimento da Reforma. Nessa abordagem, a experiência de Lutero pode servir de ponto de partida para discorrer acerca da liberdade. Além disso, também pode receber alguma atenção o que acontece quando o próprio Evangelho é libertado dos aprisionamentos nos quais se encontra. Ecclesia semper reformanda.
Outro ponto com o qual a prédica pode se ocupar diz respeito ao tema da liberdade em geral. Como já foi mencionado em auxílios de edições anteriores do Proclamar Libertação, ser livre é o que todo ser humano deseja. Contudo, a liberdade, em regra, é buscada justamente lá onde as pessoas acabam sendo aprisionadas, escravizadas. Tanto a liberdade individual como a coletiva é um horizonte a ser buscado, sempre.
Nessa direção também pode ser tratada a liberdade numa perspectiva social. Em que medida regimes e governos promovem ou não a liberdade? Qual a responsabilidade decorrente do exercício da liberdade?
Por fim, a liberdade como desafio de nosso tempo. Desafiar a comunidade a pensar sua responsabilidade, como comunhão de pessoas libertadas em Cristo, diante dos sinais de morte que insistem em marcar presença e escravizar filhos e filhas de Deus.
5. Subsídios litúrgicos
Saudação: Por amor de Sião, não me calarei e, por amor de Jerusalém, não me aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua salvação, como uma tocha acesa! (Isaías 62.1)
Oração do Dia: Senhor, Deus da liberdade! Em Jesus, teu Filho, a boa nova chega às pessoas, chega também até nós. Ajuda-nos a viver em liberdade, a cultivar a liberdade. Dá-nos clareza sobre como viver a liberdade em Cristo. Abençoa a tua comunidade com a liberdade que pela fé e pelo amor testemunham a tua salvação. Que o Espírito Santo nos faça livres. Que a liberdade para a qual Cristo nos libertou reine entre nós, hoje e sempre. Amém
Oração geral da igreja:
– Interceder pelas pessoas que estão escravizadas e privadas de liberdade.
– Interceder pelas pessoas que têm fome e sede de liberdade.
– Interceder pelas casas e cidades que cultivam a liberdade em Cristo.
– Interceder pelas pessoas que têm misericórdia, são puras de coração e promovem a paz de Deus.
– Interceder pelas casas e cidades que negam a liberdade como presença e sinal do Reino de Deus.
– Interceder pelas pessoas que choram, têm fome e sede e são mansas.
– Interceder pela liberdade.
Bibliografia
BÍBLIA. Português. Tradução brasileira. Bíblia Sagrada/Antigo e Novo Testamentos. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2.
LUTERO, Martim. Da Liberdade Cristã. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1998.
O’CONNOR, J. M. Paulo: Biografia Crítica. São Paulo: Loyola, 2000.
WIESE, Werner. Auxílio homilético para Gálatas 5.1-11. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010. v. 35, p. 341-346.
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