Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e Ecumene



ID: 2676

Reflexões teológicas sobre migração

09/09/2015

Reflexões teológicas sobre migração

Palestra de Dr. Andreas Nehring

Cada reflexão teológica sobre migração, hoje em dia, deverá partir das transformações dramáticas dos últimos meses e semanas. Na Europa, o tema da migração, de momento, está intimamente relacionado com a questão dos refugiados que vêm procurar abrigo em nossos países. Naturalmente, a gente também poderia começar com o testemunho bíblico: Abraão saiu de Ur - evento referencial da história de Deus com seu povo. O povo de Israel fugiu do Egito, outra data básica da libertação do povo por Deus. E também, a fuga de Jesus para o Egito etc. Mais adiante chegaremos a tratar destes testemunhos bíblicos. Mas uma teologia da migração, hoje, há de produzir mais do que uma me reflexão bíblica abrangente: É a situação concreta à qual o testemunho bíblico precisa dar resposta, é daí que precisamos partir. Se me permitirem, quero dedicar-me, para falar com Tillich, a uma correla-ção da situação e da mensagem cristã.

Trago minha contribuição em três partes:

Depois de um ensaio de análise da atual situação na Alemanha e na Europa, desenvolvo alguns pensamentos básicos sobre migração, para então, na terceira parte, partindo da Instrução católica Erga migrantes caritas Christi, tentar uma elucidação teológica. Nisso me apoio, sobretudo, nas pesquisas da teóloga pastoral austríaca Regina Polak. Hoje em dia, é ela uma das mais influentes representantes de uma teologia da migração.

1. A humanidade ameaçada

No ano de 2015, o Terceiro Mundo chegou ao Primeiro Mundo; isso, na forma de avalanches de refugiados, mas também como caos econômico no coração da Europa. Estruturas fundamentais estão a desmoronar na Grécia. O sistema de saúde não atende mais aos desempregados, sem seguridade social. Também a educação está em situação de calamidade. Há gargalos de abastecimento. Todo um país está ameaçado pelo estado de emergência, talvez para anos a fio.

E nisso, na calamidade grega, outra vez os migrantes são os que mais sofrem as consequências. Nos acampamentos de entrada, reina a miséria nua e crua. Verbas de euros liberadas não chegam à destinação local. O abastecimento de víveres já não funciona. Na ilha de Lesbos, há poucas semanas, pessoas em busca de asilo, em puro desespero, irromperam de um acampamento e invadiram espaços de uma transportadora: não achando o que procuram, deixam um rastro de violência. Na luta pela sobrevivência, por direitos elementares à vida, surge um vazio jurídico com pessoas buscando seu direito, mas correndo o risco de perderem seus direitos de permanência.

A crescente necessidade leva a questão humanitária - como ideal e como direito - aos limites. Há duas semanas, Heribert Prantl escreveu, no jornal Süddeutsche Zeitung, que dignidade humana não pode depender do número das pessoas que a demandam e reivindicam; e a chanceler Merkel rejeitou a determinação de limites máximos e de capacidades em se tratando de direito a asilo. No cotidiano da ajuda humanitária, demandas regulamentadas são postas em prática, e isso deixa muita gente irritada, uma vez que asilo, no âmbito europeu, é antes percebido como mostra de favor do que como algo de direito. Entre nós, a busca de asilo e a migração do sul para a Europa são vistas como caso de exceção, como momento irregular, que resulta em dano econômico. Mesmo quando o atendimento aos refugiados funciona bem fica na consciência média do povo uma concessão tipo: que possam ficar.

Junto ao estado, à sociedade e às igrejas, portanto, a migração na Europa é percebida, primariamente, em termos de problema e déficit. As dimensões globais e a responsabilidade correlacionada com isso só raras vezes são debatidas; mas, sobretudo, as chances e potencialidades inerentes são, até agora, parcamente tematizadas no discurso político. Embora muito se fale de migração de entrada e do fato de que a Europa, no futuro, precisará de mão-de-obra, de momento se prefere discutir quanto, em termos de benefícios sociais, as pessoas refugiadas devem receber e como se pode distribuir o ônus entre os países europeus.

No provimento com recursos de manutenção para a vida, revela-se algo como uma “graça impiedosa”, gnadenlo-se Gnade, que se manifesta na mera concessão do mais indispensável. Uma luta pela sobrevivência se alastra nas áreas periféricas, onde a vida periga tornar-se impossível - Lampedusa, Lesbos, Cós... - mas também nas fronteiras da Hungria, da Áustria e da Alemanha. 71 pessoas, recentemente, foram encontradas mortas, sufocadas dentro de um caminhão-baú na Autobahn na Áustria, enganadas por coiotes gananciosos.

A identidade nas periferias

As bordas ou as fronteiras e, sobretudo, as áreas limítrofes se tornaram metáforas relevantes para a descrição de identidade. O conceito da marginalidade, que lança o olhar sobre as periferias e, com isso, sobre as fronteiras, adquire hoje uma nova importância, modificada. Nas fronteiras da Europa, hoje não se debate somente como a Europa se entende a si mesma e como poderia ser concebida uma identidade europeia, mas também o que se subentende na Europa por humanidade. Milhares de pessoas moribundas nas fronteiras da Europa e, de forma crescente, também dentro da Europa, dão nova brisança às perguntas pela função e pelo sentido de fronteiras.No discurso das pessoas latinas, na América do Norte, os espaços fronteiriços ambíguos e o cruzar da fronteira, já desde há tempo, desempenham papel significativo. Mas também na Alemanha, na reflexão teológica sobre a importância de igrejas de migração, de pessoas de outras línguas e origens, periferias e áreas limítrofes bem como sua travessia se tornam objeto de reflexão cada vez mais importante. Indaga-se: Como se deslocam fronteiras, onde surge a novidade dos terceiros espaços, como Homi Bhabha denominou essas zonas de sobreposição? E que acontece na Europa com os lugares que são povoados sem serem habitáveis: abrigos de refugiados, contêineres, ginásios de esporte, estações ferroviárias, onde agora vivem pessoas, mas, a rigor, não podem viver? Na Baviera, em Bamberg e Manching, existem hoje as assim chamadas “instalações de chegada e de retorno”, Ankunfts- und Rückführungseinrichtungen, para refugiados vindos do oeste dos Bálcãs, pessoas estas que não têm chance de terem deferido seu requerimento de asilo. Aí, o viver sem direito de permanecer fica reduzido a necessidades as mais elementares, não permitindo que se estabeleçam relações pessoais sustentáveis. Quem está ali vive num plano intermediário diante do qual desfila a vida de um mundo real inacessível.

O etnólogo Marc Augé escreveu um livro sobre os assim chamados não-lugares que surgem nas zonas de transição de itinerantes. Trata-se de espaços usados ou habitados só temporariamente, nos quais a gente não fica ou não é permitido permanecer de forma durável.

Enquanto Augé fala de não-lugares, como passadiços, galerias, aeroportos ou estações ferroviárias, que a qual-quer momento podem ser abandonados, os acampamentos de chegada nas periferias de nossas cidades funcio-nam de forma diferente: aqui só existe tolerância, razão de ser provisória, denunciável. O filósofo italiano Giorgio Agamben, em seu livro Homo Sacer, no qual examina o que afinal sobra como vida nua, fala do acampamento, Lager, como uma forma fundamental de produção de humanidade moderna. Uma vez que no acampamento a vida é constatada e circunscrita burocraticamente, ela exclui a pessoa da vida na sociedade. Aqui se decidem pertenças e destinos. Aqui, eventualmente, se emitem os salvo-condutos para a vida pública: acesso ao mercado de trabalho, a educação, admissão aos sistemas de saúde. Aqui se revela a quem uma sociedade não só quer reconhecer como cidadão de direitos iguais, mas também perceber como pessoa humana. Nenhuma declaração de intenções, nenhum procedimento, por mais politicamente razoável e juridicamente transparentes que possam ser, chegam a considerar a vulnerabilidade concreta daquelas pessoas que, a qualquer momento, precisam contar com deportação. É nos não-lugares da nossa sociedade que se decide o que nós, na Europa, entendemos sob humanitário. É na situação humana extrema, é nos espaços onde a existência é submetida à pressão máxima, que se pode observar a produção de humanidade.

Trata-se da exploração desta, digamos, terra-de-ninguém, também nas teologias pós-coloniais; trata-se da pergunta pelo que acontece neste espaço, e como as diferentes experiências e nuanças deixam suas pegadas.

Embora sobremodo privilegiadas para o raciocínio teológico, ao mesmo tempo as fronteiras e as periferias tam-bém permanecem sendo um espaço ambivalente. O teólogo Vitor Westhelle pergunta:

Seria a fronteira o fim do mundo próprio definido por um centro, ou uma janela pela qual se pode olhar para o que existe para além da fronteira, uma utopia, um não-lugar, ou um ainda-não-lugar? Ou é o interior do exterior a condição da marginalidade? Com outras palavras, fronteiras são um fim ou um começo? São ambas as coisas ou são nada?1

Teorias e teologias pós-coloniais abordam estas perguntas, e, nos últimos 25 anos, desenvolveu-se um vivo debate sobre quem está nas fronteiras e quem domina o discurso sobre as fronteiras.

As bordas, as margens, assim argumenta Westhelle, constituem uma janela para o mundo. Elas descortinam uma perspectiva para dentro do cotidiano por possibilitarem um olhar para um outro mundo, normalmente fechado à visualização. E exatamente por isso, segundo a argumentação de Westhelle, as bordas são perigosas. Trazem à luz o que não era para ser revelado; descortinam insights que podem fazer balançar a ordem das coisas. Migrantes, refugiados, pessoas nas nossas fronteiras... As sociedades, por isso, têm a tendência de ocultar suas periferias;2 de recorrer à exclusão para resguardar-se - quer seja na Hungria ou nas costas do Mediterrâneo, quer nas costas da Tailândia, da Malásia ou da Indonésia, onde os rohinjas são enxotados de volta para o mar.

Ao refletirmos teologicamente sobre marginalia, sobre periferias e fronteiras, sempre e simultaneamente, também surge a pergunta: marginal em relação a quê? Justamente para a teologia tal pergunta é difícil de ser respondida. O centro com o qual se relaciona a marginalidade ou ao qual é pensada, não pode ser facilmente determinado. Ademais, no protestantismo isso também é algo diferente que na igreja católica.

Inclusive o lugar a partir do qual se exerce poder, muitas vezes, é um lugar oculto. A insistência de grupos margi-nalizados em terem qualidade de sujeitos, ou em algo como identidade própria em contraposição ao centro, é uma demanda nada fácil, como ressaltou Gayatri Spivak; porque as atuais suposições de diferença cultural são expres-sões de um processo de secularização no qual centro e periferia, ou seja, fator dominante e fator marginal, não estão claramente definidos, mas são representados discursivamente.

Por isso, é complicado querer distinguir sítios internos e sítios externos. Eles se embaralham. Daí, uma diferenciação clara entre a Europa e os outros, ou seja, entre o Ocidente e o resto, sempre implica certo grau de abstração que ameaça dissimular a real contextura nossa com outros. E quando se trata da articulação de posições, os teólogos ocidentais são mestres na arte de abstração e universalização.

Por outro lado, marginalidade também sempre remete às ambivalências de um centro que não pode ser determi-nado, e isso significa que a marginalidade põe em risco o status ontológico do centro. Neste contexto, vale considerar uma observação feita pela antropóloga Mary Douglas, em seu livro Pureza e Perigo: o fato de uma sociedade ser instável em suas periferias aponta nem tanto para o fato de serem instáveis as periferias desta sociedade, mas que nas periferias se mostra a instabilidade da sociedade como um todo.3 Nossas atuais discussões sobre Dublim I e II revelam isso de forma até chocante.

As bordas, as periferias, expõem a fragilidade de toda uma constituição social e, com isso, põem em risco o centro. Por isso, as periferias têm um potencial destruidor, revelador: o poder de esconder e o poder de revelar. E justamente nisso muitos teóricos do pós-colonialismo enxergam o caráter intervencionista de sua atividade: detec-tar os mecanismos pelos quais as periferias são representadas.

Trata-se, por um lado, de perguntar o que afinal vem a ser esse revelar e ocultar, e por outro lado, como isso pode tornar-se um discurso e um intercâmbio com carga política que afeta o Ocidente. Qual é a relação entre um des-cobrimento e uma prática discursiva? Fronteiras são variáveis, especialmente na geografia humana. Frontei-ras acontecem num instável entre-estar do contínuo espaço-tempo na economia, na política, na sociedade, em nações, religiões e, também, em condições psíquicas. E justamente por isso estão ocultas; não são nem denominadas nem elas próprias denominam.4 (Sic: sie werden weder benannt, noch benennen sie selbst.)

O significado do ser-humano varia dependendo das crises e calamidades nas fronteiras. Humanidade, em tais momentos, no horizonte da migração e no instante de crises econômicas, significa o próprio estado de emergência, por nunca ser estática; porque em sua circunscrição se descarregam condições sociais de soberania. Na Hungria, até se avança com gás lacrimogênio contra os refugiados. Fronteiras deveriam detê-los; por isso, cercas de segregação são construídas em toda parte.

O preço da humanidade depende das despesas pagas por aqueles que se encontram no sistema, de fora (sic: die sich im System außerhalb befinden); os que não podem votar, mas são afetados. Humanidade - isso também se evidencia, de forma dramática, nos atuais debates na Alemanha e nos surtos difamatórios dos políticos - evidentemente, a qualquer momento, é passível de negociação. Humanidade, face às ondas de refugiados, veio a ser algo que corre o risco de ser perdido, algo controverso, difícil, e isso pelo fato de humanidade não ser abstrata, mas representar os direitos de sujeitos concretos e sempre tocar nos limites do factível, do financiável. Na verdade, uma reflexão teológica sobre migração que queira ser socialmente relevante precisa tomar este ponto de partida.

Humanidade, em princípio, exige demais: o abandono de qualquer tentação de se acomodar com determinações exclusivas do ser-humano. Também definições teológicas da pessoa humana, seja como criatura de Deus ou até como imagem à semelhança de Deus, permanecem estranhamente abstratas face à miséria dos refugiados nos acampamentos. Justamente no Lager de transição, nos abrigos que estão sendo precariamente providenciados para buscadores de asilo em quase todas as cidades e lugares na Alemanha, à semelhança dos já construídos de tamanho nem imaginável na Turquia, na Jordânia e no Líbano, justamente ali se revela a possibilidade de uma expressão excepcional do humanitário: a disposição de compartilhar vida, de empenhar vida, de arriscar mais do que a aparente capacidade humana. Isso, a qualquer momento, é também uma opção política. A essência humana de uma sociedade se revela no momento em que pessoas decidem ajudar e voltam a descobrir de forma nova sua humanidade no encontro. No confronto com direitistas violentos, que põem fogo nos acampamentos de refugiados, há de se mostrar se a nossa sociedade é capaz de ser humanitária. Mas isso, de momento, face às avalanches migratórias, parece ser difícil.

De forma exemplar para a etnologia, Paul Rabinow argumentou em favor de uma prática crítica que tome em foco o desenvolvimento histórico e genealógico de discursos sobre fronteiras e periferias. Ele escreve:

Não carecemos de uma teologia de epistemologias nativas ou de uma nova teoria de conhecimento dos outros. Deveríamos atentar para nossa prática histórica, a saber, a prática de projetarmos nossas práticas culturais sobre os outros; na melhor das hipóteses, importa mostrar como, quando e com que meios culturais e institucionais outras pessoas intentaram usar a epistemologia a seu próprio favor.5

Assumir exatamente isso, e também implementá-lo na prática eclesial, se torna mais e mais importante para a atual reflexão teológica sobre migração.

2. Que é migração?

Sobre isso a austríaca Regina Polak, pesquisadora dos fenômenos migratórios, recolheu material importante.6 Tomo-o por base para minhas exposições e gostaria de resumi-lo aqui na esperança de que a argumentação de Polak seja frutífera também para nossas discussões. Migração, assim ela argumenta, é algo inseparável da história humana. Tanto o crescimento demográfico e econômico, mudanças tecnológicas, sociais e culturais, como também conflitos políticos e guerras estão estreitamente relacionados com o fenômeno da migração de pessoas e povos. Migração, portanto, pode efetivamente ser declarada como uma constante da história.

Globalização

A experiência de um só mundo não constitui algo que fosse reservada apenas aos cristãos. Processos de globalização inseriram a unidade do mundo num horizonte real de cada pessoa. Globalkolorit, matiz global, veio a ser marca registrada do nosso mundo. Para isso, Ulrich Beck cunhou o termo Weltgesellschaft, sociedade mundial, que visa expressar que aquilo que separa as pessoas, quer seja em termos políticos, culturais ou também religiosos, está presente hoje numa localidade, numa comunhão e até numa biografia.7 E neste contexto, também falou de uma Weltrisikogesellschaft, uma sociedade mundial de risco.

O falar de globalização - e de interculturalidade - traz consigo promessas e perigos, interpretados com suas respectivas diferenciações culturais.8 Será que por trás dos atuais debates sobre a globalização se esconde uma real mudança estrutural, ou mudou-se, na melhor das hipóteses, a semântica? Recentemente, o politólogo Jürgen Gebhardt, numa palestra, questionou, em princípio, a classificação ainda hoje bastante em voga de épocas históricas: modernização e globalização começaram com o surgimento do homo sapiens e com a migração do homo sapiens, out of Africa,9 para fora da África.

As pessoas hoje se estabelecem em toda parte; fluxos migratórios seguem em todas as direções; a conectividade quase já não conhece qualquer distância; explode o conhecimento sobre implicações naturais; possibilidades técnicas, das quais ainda há poucas décadas ninguém sonhava, vão se tornando realidade - só sobre a “cultura” não há qualquer consenso entre nós, quer dizer, sobre a pergunta como tudo isso, em particular, deva ser interpretado.10 O que podemos observar é o seguinte: não se reduziu o número de conflitos e guerras; não ficou menor o contingente de vítimas destes conflitos e de epidemias globais como HIV/AIDS; pobreza e miséria aumentam proporcionalmente ao dramático crescimento populacional em grandes partes do mundo. A sociedade mundial, Weltgesellschaft, também produziu uma consciência mundial, Weltbewusstsein, bem diferente. O compartir nas catástrofes em todas as partes do mundo, em tempo real, moldou nossa consciência não só de espaço, mas tam-bém de tempo e história.

Também Polak argumenta que o homo sapiens, desde tempos pré-históricos, também sempre teria sido um homo migrans, e que sem migração nem teria sido possível povoar a terra.

Ao mesmo tempo, ela acentua que migração sempre também seria um fenômeno de períodos específicos, uma vez que os motivos e circunstancias para processos migratórios dependem de contingências históricas. Hoje, para nós importa atentar para essa especificidade temporânea, e não partir de um continuum antropológico ou de uma constante, como a migração também poderia ser caracterizada ao olharmos para a história da humanidade. Isto é importante uma vez que, como mais uma vez quero destacar, não tenho qualquer apreço por uma teologia universal da migração englobando tempo e espaço, porque cada teologia precisa ser concebida conforme seu contexto específico, kontextspezifisch, para ser relevante. O fato de que aqui não estamos lidando com um fenômeno unívoco, que em todo o mundo pudesse ser interpretado e enfrentado de maneira igual, já se revela nas diferentes definições de migração.

Pelas ciências sociais migração é definida como “mudança duradoura de lugar”, dauerhafte Ortsveränderung, “que pode estar combinada com cruzamento de fronteira e que traz consigo uma troca do sistema de referência social e cultural”. No processo da migração acontece uma conjunção de momentos bem distintos: fronteiras são atravessadas, espaços são interligados, espaço e valores culturais são entrelaçados de forma nova, normas sociais como, por exemplo, casta e classe, são renegociadas de forma completamente nova.

O conceito de migração, portanto, se refere, conforme a pesquisa de migração, a fenômenos múltiplos e de várias dimensões: mobilidade geográfica, emigração e imigração duradouras, formas de migração circular como as do trabalho pendular e sazonal, dimensões que precisam ser distinguidas estruturalmente de migrações no ciclo da vida e formas de migração involuntária como refúgio e asilamento ou migração transnacional. Distintos também são os motivos da migração: situam-se entre, por um lado, a espontânea decisão individual pela migração, e, por outro, a coação estrutural por dominação ou violência.

Polak também demonstra como são heterogêneas as definições de migrantes. Enquanto a definição oficial da ONU classifica como “migrantes internacionais” aquelas pessoas que moram fora de seu país de origem no mínimo durante um ano, conhecemos na Alemanha “pessoas com histórico de migração” e até “migrantes de segunda e terceira geração”. Trata-se de pessoas que têm no mínimo um membro de seus progenitores nascido no exterior, ou seja, filhos/as e netos/as de famílias imigradas. Mas também migrantes “trabalhistas”, migrantes “ambientais”, refugiados e requerentes de asilo, migrantes internos nacionais estão sendo subsumidos - no âmbito da língua alemã - neste conceito ambivalente de “migrante”.

Afinal, migração repercute não somente sobre as pessoas que emigram ou se refugiam, mas também sobre as pessoas residentes e as instituições dos respectivos países de chegada e de origem. Assim, migração de entrada, p. ex., causa mudanças em termos jurídico, político, estrutural e religioso no país de chegada; migração de saída causa o assim chamado brain drain, a evasão de cérebros ou de talentos, e pode significar a perda de contingentes jovens e formados de um país; migração transnacional, por sua vez, traz consigo consequências econômicas e políticas paralelamente aos repasses de recursos entre a nova e a velha pátria.

Sobre este panorama, atualmente, se discute na Alemanha, porém sem dispor de uma base de informação fidedigna, como, p. ex., estatísticas, tais como aqui apresentadas por OKR Martin, de forma gratificante. Ademais, as instituições europeias ainda não reagiram satisfatoriamente aos processos de transformação na sociedade e às sociedades ainda distintas na Europa que surgiram com o afluxo de migrantes, p. ex., fazendo adaptações conve-nientes nos sistemas de formação, reformulando questões jurídicas e ampliando as possibilidades de participação para migrantes.

Em tomando conhecimento de estatísticas de migração através da mídia, e refletindo, como igreja, sobre migração e sobre pessoas que vêm aos nossos países, faremos bem em verificar mui atentamente o que e quem, a cada vez, são designados pelo termo. A quem e para que servem estas definições? Cada hermenêutica teológica da migração, para ser concreta, há de perceber os problemas vinculados com estes termos, levar em consideração diferenças, contradições e as realidades concretas, e prestar contas: De que está falando? De quem está falando? Com que interesse está falando? E que vozes de migrantes afinal chegamos a perceber?

Polak destacou alguns aspectos de migração que considero sumamente importantes para serem contemplados ao tratarmos do assunto, pois deixam muito nítidos os desafios específicos da migração para a teologia e a igreja:

Globalização: Cada vez mais países são afetados, simultaneamente, por migração. Países de imigração recebem migrantes de entrada de cada vez mais países de origem. A maioria dos países de entrada recebe migrantes oriundos de uma ampla gama de origem econômica, social e cultural.

Aceleração: Todas as grandes regiões mundiais estão afetadas simultaneamente por crescimento quantitativo de migração internacional. Com isso, vai aumentando a pressão sobre os governos. Fica cada vez mais difícil tentar reduzir o crescente fluxo da migração.

Diferenciação: Na maioria dos países existe um pluralismo de tipos de migração: por motivos de trabalho, refugiados, estrangeiros com permissão, migrantes não documentados. Esta multiplicidade constitui um dos maiores desafios no que tange a medidas políticas nacionais e internacionais.

Crescente politização: A migração internacional desafia as relações bilaterais e regionais entre nações e as estratégias de segurança nacional. Cresce a consciência para a necessidade de cooperação entre paí-ses de acolhida, de trânsito e de origem bem como para uma governança global.

Migrações em massa, nos últimos 500 anos, desempenharam papel fundamental no colonialismo, na industrializa-ção, na formação de estados nacionais e no desenvolvimento do mercado mundial capitalista. Com isso estavam relacionados: deslocamentos forçados, deportações, violência, males e injustiças - mas também o intercâmbio de saberes e valores, de tradições culturais e religiosas.

Fato novo, na situação atual, é o caráter intensivo e global da migração. Migração constitui um conjunto complexo de interações sociais, com um amplo leque de estruturas institucionais e redes informais entre países despachantes, recebedores e intermediários. Assim, a desconstrução das fronteiras pelas migrações traz consigo maiores laços de vinculação e encontro. Isso se traduz em novos desafios também para o ecumenismo. As igrejas cristãs, como o resto do mundo, vivem experimentando a tensão entre global e local, entre universal e particular, entre mundial e regional/contextual. A constatação de que vivemos em um só e o mesmo mundo só pode ser feita a partir de uma perspectiva que transcende a forma de experimentar o mundo no próprio plano local, quer seja esta perspectiva epistemológica ou ético-normativa. As igrejas têm a seu favor uma história relativamente longa de encontros, conflitos e parcerias interculturais. Contudo, mundo a fora, os cristãos mais e mais fazem a experiência de que o mútuo entendimento intercultural está se tornando mais difícil em todos os níveis. Nem são eficazes, no plano internacional, as hermenêuticas ecumênicas que querem manter a continuidade da tradição apostólica, nem se mostram sustentáveis, no longo prazo, as hermenêuticas contextuais, que priorizam a particularidade de experiências cristãs vinculadas ao contexto.11

A reflexão teórica sobre múltiplas identidades, as quais, como já dito, não vieram à tona a recém com o uso do termo “globalização”, e os discursos sobre identidades religiosas, sociais, políticas e culturais, são algo significativamente novo desde, mais ou menos, o início dos anos 90 do século passado.

Embora poucas nações jamais tenham sido etnicamente homogêneas, mesmo assim o nacionalismo dos dois sé-culos passados trouxe contribuições maciças para o mito do estado nacional homogêneo. Em muitos países, em virtude da migração, nos últimos anos, a pluralidade social, cultural e, também, religiosa cresceu mais do que nos últimos 100 anos. Esta diversidade se revela com a criação de numerosas associações étnicas em um país. Lembro que Benedikt Anderson falou dos estados nacionais como de invented communities, comunidades inventadas, que arrogam para si uma homogeneidade linguística e cultural. Tal equivalência hoje não se sustenta mais.

Migração, por isso, tem uma importância socioeconômica e política como nunca dantes jamais. Nova é a atenção que os políticos dedicam a este fenômeno. Contudo, também a resistência política contra a migração é tão acerba como nunca, pois jamais veio tão intensamente acompanhada por discursos de segurança nacional, por conflitos sociais, culturais e políticos e por tanta complexidade em nível global.

Comunidades étnicas, em determinados contextos sociopolíticos, também podem transformar-se em minorias que se delimitam propositalmente da sociedade majoritária. Elas se formam através dos intrincados processos de imputação racistas, discriminatórios e excludentes experimentados no contexto, e através das respectivas autodefinições reativas. Quanto mais forte a experiência do isolamento e da exclusão, tanto mais intensa fica a tendência de aderir e cultivar a respectiva identidade étnica própria, seus símbolos e suas práticas de antes da migração. Estas então servem para reagir contra discriminação e exclusão. Na Alemanha, muitas vezes, podemos observar isso entre jovens turcos que, em parte, já vivem na Alemanha em terceira geração. Mas este fato também constitui um desafio à nossa convivência com cristãos do hemisfério-sul que estão criando comunidades religiosas na Alemanha. Quando, porém, identidades não têm feitio estático, mas múltiplo, então também não se pode falar “do cristianismo africano” ou “da teologia asiática”, mas só observar que cristãos africanos e asiáticos que vêm até nós são tais quais e ao mesmo tempo diferentes das pessoas no meio das quais vivem, mas também diferentes das pessoas entre as quais viviam antes da migração. Naturalmente, trazem consigo sinais das respectivas culturas, como idioma, hábitos, tradições. Mas a pessoa humana não está condicionada por tais traços a ponto de ela ou as outras pessoas poderem ostentá-los de forma pura, ou como se pudessem retornar aos mesmos de forma inalterada.

A maioria dos cristãos oriundos do hemisfério-sul passa pela experiência de que suas identidades tantas vezes construídas e conquistadas dolorosamente, com recorrência voltam a sofrer pressões. Conflitos religiosos ou étnicos no próprio país, a influência avassaladora de desenvolvimentos tecnológicos ocidentais e o poder do capital que força a adesão à “cultura de um mundo só”(Eine-Welt-Kultur) são momentos importantes a exercerem pressão sobre identidades afro-cristãs ou asiático-cristãs, talvez até mais importantes que a questão da inculturação ou da “empatriação” do evangelho que lhes foi confiado, questão que nós do ocidente ainda consideramos como sendo o mais importante desafio teológico de nossas igrejas parceiras. Por isso, também é míope a exigência de adaptação à nossa cultura quando não levar em consideração as experiências complexas das pessoas imigradas e refugiadas.

Muitas vezes, igrejas em países de minoria cristã nem têm a possibilidade de se idealizarem como firmes ou culturalmente estabelecidas. A moda, no entanto, de declarar igrejas de migração destes países como “igrejas a caminho”, como se gosta de fazê-lo no linguajar ecumênico entre nós, a meu ver diverte o olhar da complexidade das construções de identidade nos respectivos contextos políticos e sociais, porque esta maneira de falar pressupõe um modelo de ecumenismo linear, de orientação escatológica e, com isso, ainda, um modelo teleológico.

A par dos desafios ecumênicos, a atual situação confronta o nosso país com as questões da participação política, da vida com pluralidade cultural e identidade nacional, e demanda o desenvolvimento de visões universais de direitos civis. Se não conseguirmos fazer com que as pessoas procedentes de condições precárias possam ter entre nós participação política e vivenciar seus direitos civis de tal maneira que possam ser considerados independentes de concepções de homogeneidade étnica e de assimilação cultural, nossas formas europeias de democracia ficarão cada vez mais instáveis, e formas fundamentalistas de todas as cores vão crescer.

Cultura e etnicidade tornaram-se motivos de exclusão social e, em consequência, também símbolos de resistência de minorias. Onde se recusa participação e, ao invés, se aposta em delimitação e coro uníssono, há de se contar com conflitos sociais e violência. Principalmente, uma segunda e terceira geração marginalizada pode vir a ser um enorme desafio para estruturas políticas.

3. A tarefa da teologia

Numa perspectiva teológica é notável que, em se tratando de migração, identidade e pertença, com recorrência, surja também a pergunta pela justiça, de forma implícita e explícita. Porque migração desmascara a injustiça glo-bal: na maioria dos casos, a migração é forçada - por pobreza, violência e privação. A migração revela a pobreza no mundo, da qual muitos ricos não querem ser lembrados, porque levanta a pergunta pela responsabilidade deles. O Concílio Vaticano II, já nos anos 60, na Gaudium et spes, constatou: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo.” Nisto reside, a meu ver, um momento que foi de suma importância também na teologia da libertação. A igreja não só se solidariza com as pesso-as marginalizadas, mas com elas se identifica. Ainda mais, o Vaticano II assevera: “Nos pobres, o próprio Cristo como que apela em alta voz para a caridade dos seus discípulos.”12 Com isso, a dignidade humana a partir de Deus é entendida humanamente, mas simultaneamente transformada em direito legal fundamentado no chamado de Cristo.

Da perspectiva bíblica, não existe salvação religiosa sem o engajamento por uma sociedade justa. Critério para um entendimento de justiça teologicamente responsável são dignidade e bem-estar dos pobres e excluídos. As considerações das ciências sociais no tocante à migração evidenciam que a teologia, atualmente, precisa reaprender a entender-se no contexto de uma humanidade que perde, transforma e transpõe suas fronteiras tradicionais; que tece múltiplas conexões e redes e que, ao mesmo tempo, está gravemente ameaçada em sua coesão por iniquidade e injustiça. A consciência da unidade da humanidade como também da responsabilidade política por um mundo justo estão crescendo - talvez justamente porque a situação está precária. Uma teologia da migração pode ser desenvolvida somente dentro deste horizonte.

Podemos, portanto, encarar o atual fenômeno da migração como um desafio que importa ser descoberto e desenvolvido na proclamação do evangelho da paz. A par de uma sólida descrição do fenômeno pelas ciências sociais, e das tarefas éticas, políticas e pastorais daí resultantes para a igreja, trata-se de um quadro de referimento bíblico-teológico onde se pergunta pelo significado que a migração pode ter na história da salvação de Deus para a sociedade humana com vistas a uma communio universal. O fato de que os eventos políticos mundiais, como a dissolu-ção da União Soviética e o conflituoso despertar de identidades étnicas e nacionais no sul da Europa, no assim chamado Oriente Próximo, na África e na Ásia, são pertinentes também ao ecumenismo não é nada surpreenden-te, a meu ver. E afetam-nas não só por desafiarem as igrejas para se engajarem no diálogo e no trabalho da re-conciliação, mas tocam o ecumenismo no cerne. Colocam-se as perguntas: Que tipo de concepção de unidade o ecumenismo busca e como esta concepção pode ser fundamentada, ou de que lugar pode ser falado? O que precisamos como igreja é uma leitura conjunta de percepção sociopolítica, socioeconômica e sociocultural e de inter-pretação teológica. Que significa, concretamente, falarmos de ecúmena, de uma comunhão mundial vista como uma família de povos? Ademais, as migrações hodiernas colocam aos cristãos novas tarefas de missão, no sentido da Federação Luterana Mundial: como transformação, reconciliação e empoderamento da solidariedade.

A transição de sociedades monoculturais para multiculturais é vista, num documento do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, como sinal da presença viva de Deus na história e na comunhão universal. (Reino de Deus, Comunidades de Migrantes)

Instrução Erga migrantes caritas Christi
do Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes, 200413

Migração, segundo a Instrução Erga migrantes, é um sinal dos tempos, e não só um fenômeno temporário que deva ser combatido. Importa descobrir no migrante não só o “forasteiro”, mas a “imagem de Cristo” (segundo Mt 25). Migração é interpretada como continuação do evento de Pentecostes no qual pessoas de diferentes povos e raças podem entender-se umas às outras e aos apóstolos pela dádiva do Espírito Santo, cada qual em sua própria língua, e justamente não num idioma-padrão. A concomitante pluralização não constitui fator perturbador, mas faz parte do plano da salvação de Deus. Eliminadas devem ser, isto sim, as causas da injustiça e da incapacidade de conviver com diferenças.

A migração e os desafios que a acompanham são vistos como “dores de parto de uma nova humanidade”. De modo algum, porém, o quadro é desenhado apenas de forma positiva. A Erga migrantes menciona também os sofrimentos que acompanham a migração, e a profunda ruptura que, através do pecado, rasgou a família humana e também penaliza a migração. Assim, migração constitui um chamado para a solidariedade e a justiça, e, finalmente, é entendida como alusão à “grande multidão ... de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7.9), àqueles “que virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à mesa do reino de Deus” (Lc 13.29). Migração pode ser o encontro definitivo de toda a humanidade com e em Deus.

Com isso, migração pode ser percebida como “sinal de esperança” para o mundo, fenômeno que pode acelerar “a transformação do mundo na caridade” e na justiça. Migração proclama o mistério da Páscoa pelo qual morte e ressurreição promovem a criação da nova humanidade na qual, conforme Gl 3.28, não existem mais escravos e estrangeiros.

Com esta abordagem, a Erga migrantes está muito à frente da teologia protestante de fala alemã. A instrução desenvolve uma teologia da migração. Para a discussão na sociedade, esta abordagem descortina perspectivas de percepção que permitem ver a migração também como oportunidade: como chance para o empenho comum por justiça e solidariedade global; como possibilidade de conviver em paz na multiplicidade e diversidade; como locus de experiência espiritual e caminho para Deus - e, com isso, como lugar de aprendizagem para a humanização do gênero humano.

Migração como tema bíblico-teológico central

Não é invenção teológica do século XXI perceber-se migração como tema teológico. As Sagradas Escrituras e suas muitas teologias, em sua quase totalidade, são resultantes do fenômeno da migração. A maioria dos textos têm origem num contexto de exílio, fuga, expulsão, peregrinação e situações de diáspora. Judaísmo e cristianismo germinam numa tensa interação de experiências ora sedentárias ora migratórias, que ensejaram a gênese de teologia(s). Migração constitui o espaço da experiência que, desde os princípios, caracteriza - embora de maneiras distintas - a autocompreensão ética, espiritual e teológica de judeus e cristãos. Contudo, migração não tem per se valor intrínseco religioso nem adquire destaque teológico especial. Em todos os textos da Bíblia, migração está relacionada com a pergunta por justiça. Também a igreja antiga se entendia como igreja itinerante e via nisso um sinal de esperança. Ela estava pronta para acolher pessoas e povos os mais diferentes, com sua multiplicidade, e, com todas as diferenças, era geradora de comunhão.

Já os primeiros conceitos judaico-cristãos de migração, contudo, foram determinados nem tanto pela compreensão de communitas e pelo aspecto liminar da partida e do retorno, e sim, mais pela peregrinação e separação. O povo de Deus itinerante em sua peregrinação ao Sião... Peregrinar e migrar?

O autor norte-americano Richard Sennett viu a diferença essencial em relação à cultura grega justamente em que as pessoas do Antigo Testamento se entendiam com migrantes desarraigados. E para Agostinho, a figura da peregrinação serviu para expressar identidade cristã. (Sennett, Civitas: 21ss.) Quando Alarico ameaçava invadir Roma, Agostinho escreveu, em De Civitate Dei - A Cidade de Deus, sobre a vida dos cristãos como peregrinação através do tempo:

Sobre Caim, pois, a Sagrada Escritura diz que fundou uma cidade; mas Abel, como peregrino, não o fez, porque a cidade dos santos é soberana e celestial, embora produza cá embaixo os cidadãos, nos quais é peregrina até chegar o tempo do seu reino, quando reunirá a todos, ressuscitados em seus corpos, e então lhes será entregue o reino prometido, onde com o seu príncipe, o rei de todos os séculos, reinarão sem fim para sempre. (Agostinho, A Cidade de Deus, 15.1, 214)

Perguntas

Será que podemos compreender migração como metáfora para a vida no tempo moderno/pós-moderno? No con-texto dos atuais debates sobre a globalização, a questão da mobilidade adquiriu maior importância. Diferente do que ainda Heidegger entendia, ao definir a relação da pessoa com lugares através do “morar” e ver no desarrai-gamento a condição sem-lar da modernidade per se, a mobilidade de fato veio a ser um momento de superação da vicissitude e de garantia do futuro. (Bauen Wohnen Denken, construir morar pensar)

Nomadismo moderno, identidades híbridas, terceiro espaço, contactzone, boarderthinking, traveling cultures: tudo isso são conceitos que estão em voga nos atuais discursos pós-modernos e pós-coloniais. O livro Passagen-Werk, de Walter Benjamin, avançou para um dos mais importantes inspiradores dos atuais debates sobre ciência cultural, e sua figura do flaneur (perambulador urbano. playboy), para protótipo do homem moderno dos séculos IX e XX. Topografias discursivas e imaginárias de relatos de viagem de séculos passados gozam de grande popularidade na pesquisa.

O etnólogo James Clifford, num de seus livros mais recentes (Routes: Travel and Translation in the late 20th Century; “Rotas. Viagem e Tradução em Fins do Século XX”) fez da viagem a metáfora central para o processo etno-gráfico. Contudo, deu preferência ao termo “peregrinar” em relação ao “viajar” (travel). Travel, para ele, é um termo apropriado para comparações culturais, por trazer consigo conotações de cunho histórico. Ele escreve:

Peregrinação” me parecer ser um termo comparativo melhor para o raciocínio. Ele abrange um grande leque de experiências ocidentais e não-ocidentais e tem menor viés de classe e de gênero do que “viajar”. Ademais, tem um jeito agradável de subverter a moderna oposição entre viajante e turista. (Clifford, 1997:39, traduzido do inglês)

Clifford usa peregrinação para deixar claro que hoje, nos processos de formação de identidade, fatos como coa-ção, expulsão, reassentamento, migração etc. não são acidentais, mas, num mundo sempre a caminho, devem ser vistos como constitutivos para a produção de significado cultural. Assim, peregrinar se torna elemento constitutivo para a construção de identidades na modernidade. Hermann Graf Keyserling, em seu livro Reisetagebuch eines Philosophen (Itinerário de um Filósofo), o expressou assim: A viagem mais curta para si mesmo leva ao redor do mundo.

Um pouco diferente de James Clifford, Zygmunt Bauman enfoca “peregrinar” como um fenômeno moderno, diferenciando-o de formas pós-modernas de passear, andar por aí, fazer turismo. Enquanto a modernidade, segundo ele, estava ocupada com o problema de construir identidades e mantê-las estáveis, o problema da identidade na pós-modernidade seria o de evitar qualquer fixação e de manter as opções abertas e fluentes. Bauman escreve:

Em tal país, comumente chamado sociedade moderna, a peregrinação já não é uma escolha do modo de viver; menos ainda é uma escolha heroica ou beata. Viver sua vida como peregrinação já não é o tipo de sabedoria ética revelada aos (ou criado pelos) escolhidos e justos. Peregrinação é o que se faz por necessidade, para evitar per-der-se num deserto. (Bauman, 21, tradução do inglês)

Anexo I

Referências bíblicas

No Antigo Testamento, a revelação de Deus acontece em meio à história de exílio, expulsão, migração, ser-estranho e diáspora. Esta história inicia com a expulsão de Adão e Eva do paraíso (Gn 3). Ela vai através do reas-sentamento de Noé e seus descendentes após o dilúvio (Gn 8), a saída de Abraão e Sara de Harã (Gn 12), a fuga de Jacó diante de Esaú para Harã (Gn 28) e a venda de José para o Egito (Gn 37) até à transferência de todo o clã de Jacó para o Egito (Gn 46). Ela culmina com o êxodo dos israelitas do Egito e a travessia para a Palestina (a partir de Êx 12), tendo seu ápice na terra-de-ninguém do Sinai: ali, entre as fronteiras, revela-se o significado teológico destas experiências.

A história da migração de Israel vai desde as experiências no exílio após a queda de Israel nos séculos VII e VI antes de Cristo até à expulsão definitiva dos judeus da Judeia, concomitantemente com a segunda destruição do templo, por volta do ano de 135 depois de Cristo. Todos estes acontecimentos foram usados e elaborados como “experiência de aprendizagem e tesouro de experiências”, e teologia bíblica passa a ser uma “teologia da migração” (conforme o Bispo Auxiliar de Münster Dieter Geerlings). Identidade de migração se torna componente da confissão de fé. A própria experiência de vida chega ser uma “xenologia empática”, que se condensa no mandamento da hospitalidade e numa legislação diferenciada em favor de estranhos. Ela encontra seu ápice no mandamento de amar a pessoa estranha como a si mesmo.

Assim, pois, o mandamento singular do Antigo Testamento tem duas dimensões. Em Lv 19.18, é atinente ao próximo; em Lv 19.33-344, ao estrangeiro: “Se o estrangeiro peregrinar na vossa terra, não o oprimireis. Como o natural, será entre vós o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito.“ Também a postura em relação à diversidade é regulamentada (no decálogo): os forasteiros podem participar de festas sem serem obrigados a assumir as obrigações religiosas (Êx 20.10; Dt 5.14).

Também o Novo Testamento é condicionado por experiências de migração. Jesus caminha pela Galileia como pregador itinerante; sua vida começa com a fuga para o Egito e continua não tendo onde descansar. Essa condição de sem-lar também se impõe aos seus discípulos para que possam anunciar o reino de Deus. A autocompreensão como “estrangeiros e peregrinos” (Hb 11.13; 13.14; 1Pe 2.11) é própria dos primeiros cristãos. Das novas comunidades de cristãos se dizia que “eram do Caminho” (At 9.2), e que seus pés trilham “pelo caminho da paz” (Lc 1.79) e “caminho da verdade” (2Pe 22). Paulo, o primeiro apóstolo itinerante “internacional”, acentua a irrenunciável unidade dos homens, mesmo com suas diversidades, em Cristo (p. ex., Gl 3.28; Cl 3.10-11). A responsabilidade pelo estrangeiro se torna mandamento ético e, com isso, o lugar espiritual de encontro com o próprio Cristo (Mt 25). A autocompreensão missionária do cristianismo bem como a expansão da fé cristã são inseparáveis de experiências de migração.

Anexo II

Do jornal Süddeutsche Zeitung: 19/09/2015, coluna Heimat (pátria), de Carolin Emcke

Home is where one starts from, assim começa um verso do poeta T. S. Eliot, na coleção Four Quartetts. Significa: “Lar/pátria é de onde se parte”. Eliot continua (traduzido): “Quando envelhecemos, o mundo fica cada vez mais estranho, mais confusas as estruturas”. Que o mundo se torna mais estranho, e mais confusas as estruturas, muitos o experimentam nestes dias: os refugiados e aqueles aos quais eles chegam. Contudo, o que é ou poderia ser “pátria”, numa sociedade de imigração, quão segura ou insegura, quão aberta ou fechada, sobre isso há menos certeza.

Pátria é aquilo de onde se parte. Mas de onde afinal se parte? A resposta óbvia, ou talvez especialmente intuitiva, seria: de lá de onde se vem. Dependendo de quem pergunta, a resposta vem aludindo a uma superfície maior ou menor. Pode ser “Europa” (quando alguém da Ásia pergunta) ou um país (quando alguém da Europa pergunta), “Alemanha”, “França”, “Polônia”. Mas quanto mais perto chega a pessoa perguntadora, quanto mais se estende a conversa, tanto mais preciso e também mais individual se torna aquilo que se declara de “pátria”.

Pátria - isso também são todas aquelas histórias que contamos. Aquilo, de onde a gente vem, primeiro é uma paisagem, logo mais só uma horta de cerejas ou um bosque de oliveiras; é o olhar para estas casas com telhados de ardósia, ou aquela mina de carvão com chaminés enferrujadas. Aquilo de onde se vem são os cheiros ou ruídos relacionados com esta paisagem: o aroma do feno recém-segado, as buzinas dos barcos no rio na cerração matinal, o saibo de areia entre os dentes. Pátria, assim entendida, como lugar determinável, é algo que se pode perder, que não se pode levar consigo na fuga, algo de onde se pode ser expulso, pelo que se tem saudade no exílio. Assim entendida, pátria também é algo que pode ser destruído.

Mas quanto mais se prolonga a conversa sobre pátria, mais aéreo e abstrato se torna o objeto da conversa. Porque aquilo de onde se parte, de maneira alguma, só consiste de uma paisagem ou uma localidade; a pátria tam-bém é constituída de rituais e hábitos que determinam um ritmo e estruturam o pensamento. Para algumas pessoas, a sexta-feira se relaciona com velas acesas e com a bênção expressa sobre o pão trançado; para outras, vem à lembrança o domingo, com cantatas de Bach. Algumas pessoas, na data de 11 de setembro, pensam logo nos atentados ao World Trade Center em Nova Iorque; outras, na mesma data, recordam o golpe militar no Chile e a morte do presidente Salvador Allende. Muitas pessoas celebram o ano novo em março (Newroz); outras, em setembro ou outubro (Rosch Haschana), e todas juntas, mais uma vez, a 1º de janeiro. Para muita gente, pátria também traz à consciência os crimes perpetrados na mesma e, assim, igualmente o sentimento da vergonha. Numa sociedade de imigrantes, são diversos crimes em diversos lugares que vêm à lembrança e são lamentados. Quando aquilo de onde se parte não é um lugar, quando são práticas e significados que constituem a pátria, então ela não é facilmente perdida, mesmo que se desejasse. Então ela cola na gente aonde quer que se vá.

Aquilo “de onde se parte”, aliás, também permite outra interpretação. “Partir de algo” também me remete àquilo que me consta como certo, que me é familiar. Assim, pátria, como aquilo de onde se parte. também pode ser o que não precisa ser questionado com recorrência ou onde eu próprio não sou constantemente questionado. Não ter que negar-se, não ter que camuflar-se, não ter que se defender, sim, em certo sentido, não ter que aparecer, isto para muitas pessoas marginalizadas e estigmatizadas é uma experiência de pátria que não encontram ali de onde provêm. Para aquelas pessoas que não correspondem ao normal, para aquelas que são ridicularizadas ou humilhadas, que são criminalizadas ou patologizadas, para aquelas que são tratadas como estranhas no próprio país, pátria não é nenhum dado objetivo. Em sentido positivo, a gente poder ser irrelevante ou discreto, com de-masiada frequência é privilégio só daqueles que têm pertença ou aceitação como iguais. Pátria, entendida como simplicidade de poder viver, crer, amar com autodeterminação, pode ser algo que não existe desde o começo, mas em direção ao qual se precisa partir. Pátria pode ser algo que primeiro precisa ser construído, não a sós, mas junto com outros. “Pátria”, disse certa vez o sociólogo americano Russell Hardin, “é o consolo epistemológico do lar” (do estar em casa). Pátria, segundo ele, não seria uma paisagem nem idioma, também não seriam apenas hábitos (mesmo que algumas pessoas nestes dias gostariam que assim fosse), mas seriam o saber e a compreen-são acondicionados em narrativas; seriam todas essas histórias que contamos em público ou em particular, todas aquelas associações que determinados escritos ou imagens ou sons evocam em nós e que nos acalmam só pelo fato de nos serem familiares. Pátria seriam as histórias dolorosas ou alegres de que nos lembramos, ou que in-ventamos, que transmitimos de geração em geração, e nunca sem distorcê-las um pouquinho. Aí também têm lugar as lacunas nas histórias, os tabus e aquilo que se gostaria de emudecer ou eliminar. Tal pátria, como corrente de associações, permite ser completada e ampliada por histórias lembradas e inventadas, pelas figuras das novas pessoas que se achegam. Por fim, quem sabe, pátria seja de fato somente aquilo de onde se parte, aquilo com que se pode começar, mas não terminar. O conceito de pátria não serve como veículo teórico de exclusão, porque cada pátria, já desde sempre, é híbrida e dinâmica. Transforma-se com cada história contada sobre ela. Pátria não existe nem como um original nem como uma falsificação; ela sempre é uma falsificação original, assim como o “nós” que conta a história da pátria.
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Adendo

Por conta do tradutor

Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no Oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, tiver desaparecido da existência de todos os povos, quando um desportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: Para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas.

Martin Heidegger (1889-1976), em :Introdução à Metafísica
https://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Heidegger

Notas bibliográficas:

1. Vítor Westhelle, After Heresy. Colonial Practice and Post-Colonial Theologies, Eugene 2010, 121s.

2. Westhelle, After Heresy, 122.

3. Mary Douglas, Reinheit und Gefährdung. Eine Studie zu Vorstellungen von Verunreinigung und Tabu, Frankfurt a. M. 1988, 151ss.

4. Westhelle, After Heresy, 122. 

5. Rabinow, Paul, Repräsentationen sind soziale Tatsachen. Moderne und Postmoderne in der Anthropologie, in: Berg, Eberhard und Fuchs, Martin (Ed.), Kultur, soziale Praxis, Text. Die Krise der ethnographischen Repräsentation, Frankfurt a. M. 1993, 168s.

6. Ver o artigo Migration als Ort der Theologie em:

https://www.google.com.br/search?q=BinnenmigrantInnen&ie=utf-8&oe=utf-8&gws_rd=cr&ei=ytQbVuGzC4yUwAST37mgCw#q=Polak+BinnenmigrantInnen 

7. Cf. Beck. 

8. Ver panorama histórico em Osterhammel/Peterson. 

9. Cf. Gebhardt. 

10. Sobre o seguinte, cf. Wägenbauer; sobre a problemática geral, também Appadurai.

11. Cf. Raiser. 

12. http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html 

13. http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/migrants/documents/rc_pc_migrants_doc_20040514_erga-migrantes-caritas-christi_po.html




 


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