Em 12 de junho do ano passado, recebi um e-mail confirmando que representaria a IECLB no 20º Seminário Internacional sobre a Teologia de Lutero, intitulado “O Cristão e o Reino Político na Compreensão de Martim Lutero”. Promovido pela FLM - Federação Luterana Mundial, este ocorreu em Lutherstadt Wittenberg/Alemanha, bela cidade de 50.000 habitantes e berço da Reforma Protestante. Anos antes, um amigo pastor tinha participado e lançou para mim a ideia. Eu tinha recém-chegado à Paróquia São Mateus, então, não era o momento mais adequado. O tempo foi passando e as oportunidades para participar destes seminários (um por semestre) estavam diminuindo. Como parte das reflexões acerca dos 500 anos da Reforma, a FLM, por meio do seu Centro de Estudos em Wittenberg, os tem promovido, desde 2009, para ministros/as das Igrejas filiadas. Além dessa, há também modalidades para lideranças comunitárias. Os seminários se encerrarão em novembro de 2022.
Éramos 22 pastores/as de 19 diferentes países: Brasil, Guiana, México, EUA, Canadá, África do Sul, Gana, Tanzânia, Austrália, Cingapura, Índia, Malásia, Indonésia, Tailândia, Islândia, Noruega, Finlândia, Eslováquia e Alemanha. A equipe coordenadora era composta de alemães. O professor era um alemão que atua em Estrasburgo/França e a professora, uma norte-americana atuando em Tóquio/Japão. Por isso, os seminários são ministrados em inglês. No entanto, havia momentos em que podíamos nos expressar em nossa língua materna, como em algumas orações e no Pai Nosso (você consegue imaginá-lo sendo orado simultaneamente em 15 diferentes idiomas?).
Minha viagem ocorreu entre 1º e 17 de novembro, desde a saída e o retorno a Joinville. Na Alemanha, passamos quase todo o tempo em Wittenberg. Porém, tivemos ainda um sábado inteiro na fantástica Berlim, bem no dia das comemorações dos 30 anos da queda do Muro, e uma ida a Bad Schmiedeberg, pequena cidade distante cerca de 30 km de Wittenberg, na qual convivemos com pessoas da Paróquia num encontro de idosos e num culto noturno.
Durante a semana, as manhãs começavam com devoções conjuntas e depois tínhamos as aulas com o tema do Seminário. Nas tardes e noites, a programação variava: visitas a lugares históricos e comemorativos aos 500 anos da Reforma (casas do casal Catarina e Lutero e de Melanchton, Igrejas do Castelo e da Cidade, Panorama 360º “Lutero 1517”, Jardim de Lutero – com árvores simbolizando a comunhão entre as Igrejas protestantes); apresentação de ações da FLM e diálogo com seu representante vindo de Genebra/Suíça; apresentação sobre o Instituto Ecumênico para Pesquisa em Estrasburgo; apresentação dos países e Igrejas participantes do Seminário (cada um de nós elaborou a sua em língua inglesa); práticas e celebrações litúrgicas; conversa com pastores assistentes da região (assim é chamado quem realiza o equivalente ao nosso Período Prático de Habilitação ao Ministério); noite de cantos com um pastor queniano residente na cidade; momentos de diálogo sobre temas estudados e impressões das programações do dia; dinâmicas de integração entre os participantes; equipes de preparação de jantares com pratos típicos de alguns países; ida à Prefeitura de Wittenberg, onde o prefeito local nos recepcionou. Aos domingos, participamos em cultos nas Igrejas do Castelo e da Cidade. Em alguns momentos, tivemos tempo livre – usado para caminhadas, breves passeios, convivência e leituras preparatórias para a aula do dia seguinte. Na nossa última noite juntos, houve um jantar temático dos tempos da Reforma, com comida típica da época (a batata ainda não havia sido levada dos Andes à Europa). Enfim, pude ver, ouvir, tocar e até degustar a História.
Mas voltemos ao objetivo do artigo: que reflexões trago dessa viagem? Compartilho algumas:
- Estudando textos teológicos dos primeiros anos da Reforma, acerca da doutrina da justificação, é fundamental ter consciência de que vivemos somente da graça de Deus. Não há nada que nos faça merecer ou que possamos realizar para obter a salvação por meio de Cristo. Recebemos esta graça unicamente pela fé, resultante da ação divina em nós. Assim, toda energia e tempo que inutilmente gastaria para tentar me salvar, são redirecionados para eu servir ao próximo. Em outras palavras, sou justificado por graça e fé e recebo de Deus a missão de tornar a vida das outras pessoas melhor. Salvação pessoal não resulta em egoísmo, comodismo e indiferença, mas tem reflexos no cotidiano. Assim, cabe a pergunta: fala-se, há décadas, de um avivamento espiritual no Brasil, mas é isso mesmo o que vem ocorrendo? Deveria, então, haver mais reflexos na sociedade! Se estivéssemos de fato tendo um avivamento, os índices de corrupção, violência (incluindo a doméstica), opressão, injustiça, desmatamento, desigualdade, homicídios, feminicídios, estupros, divórcios, acidentes de trânsito e etc, não deveriam estar diminuindo?
- Ainda, quanto ao tema da autoridade temporal (governantes, magistrados e outros), conforme a confessionalidade luterana, Igreja e Estado devem estar separados. A autoridade é instituída e permitida por Deus (Romanos 13.1-7), tanto para o bem de um povo quanto para servir de “ferrão” ou “ponta afiada” (Lutero, por exemplo, via na ameaça da invasão turca a mão divina para a nação e a Igreja se voltarem aos princípios esquecidos do Evangelho). Isso não significa concordar acriticamente com tudo o que ela faz. Orar por toda a autoridade é preciso (1ª Timóteo 2.1-4), mas igualmente faz-se necessário levantar a voz e agir quando ela se desvia dos princípios do Evangelho, tenta escravizar a consciência de cidadãos/ãs, oprime pessoas ou procura impor suas leis acima da Palavra de Deus. Mas o que, há tantos anos, se vê em nosso País? Casos de políticos e lideranças de Igrejas trocando favores, ou seja, se apoia determinada candidatura (votos) para receber benesses futuras, desde que se silencie diante de atitudes erradas; políticos ocupando o lugar da pregação pura do Evangelho em púlpitos e altares de templos, palanques de “marchas” e palcos de eventos “gospel”; apoio “oficial” - em nome da Igreja, de evangélicos e mesmo de luteranos - a determinadas candidaturas, partidos ou alas políticas (de centro, direita ou esquerda); rotulações a quem tem certa preferência política de ser “verdadeiro cristão” ou “servo do diabo” – quando inexistem partidos cristãos ou diabólicos, pois em todos encontramos virtudes e pecados. Quando a Igreja se mistura ao Estado, perde sua voz profética, isto é, a missão de denunciar o pecado e as injustiças, cometidos por autoridades, e de anunciar o juízo de Deus para arrependimento e mudança.
- Convivendo com colegas estrangeiros, vi que há Igrejas Luteranas em constante crescimento, outras estão estagnadas ou até diminuindo. As que crescem, em geral, são as de países em desenvolvimento ou onde há restrição da liberdade religiosa (contextos dominados por religiões não-cristãs). Nossa IECLB tem 83% de seus membros no Sul (97% se contarmos o Sudeste) e é basicamente composta por descendentes de imigrantes protestantes europeus. Ou seja, nos declaramos Igreja no Brasil, mas não temos sido, salvo exceções, Igreja para o povo brasileiro. Nosso contexto de marginalização, isolamento e restrição religiosa mudou há muito tempo, porém, ainda temos dificuldade em deixar de ser “Igreja dos alemães” (aliás, o único elo entre os descendentes de alemães daqui e os alemães de lá é o DNA, porque tudo o mais é bem diferente!). Quando vamos acordar para esta realidade? Quando, de fato, nossas Paróquias e Comunidades se voltarão para o povo brasileiro - fruto da mistura de vários povos nativos, europeus, africanos e asiáticos – e se libertarão da insistência em preservar certas tradições que perderam seu sentido ou de serem centros culturais? Quando seremos Igreja aberta, que convida e acolhe a todos, independente da origem?
- Em meio à crescente valorização de tecnologias, luzes, painéis de LED, novidades, pregadores de estilo “coach” e músicas com maior agitação, vi que podemos ter espaço também para liturgias mais contemplativas e com simbologias. Na Paróquia São Mateus, aos domingos, temos dois cultos: pela manhã, mais “tradicional” e, à noite, com músicas mais modernas e em maior quantidade. Por causa de minha experiência nessa viagem, fizemos alterações na liturgia do culto das sextas-feiras (em janeiro e fevereiro, ocorre às quintas). Buscamos esses momentos mais contemplativos, de oração, com simbologias e usando os Salmos. As formas litúrgicas podem e devem variar. E isso serve para todos os cultos comunitários. Se usarmos apenas um tipo de liturgia e determinados hinos, negligenciando novas experiências e formas, não estaremos afastando ainda mais pessoas dos cultos em nossas Comunidades? Como iremos obter resultados diferentes e crescermos, se ano após ano continuarmos a fazer as coisas do mesmo jeito?
Para finalizar, agradeço a Deus por essa maravilhosa e inesquecível oportunidade! Agradeço também o apoio de minha esposa e família, da Paróquia São Mateus, do pastor sinodal Claudir Burmann, do pastor 2º vice-presidente da IECLB Mauro Batista de Souza, da Federação Luterana Mundial, da equipe coordenadora do Seminário, do pessoal do Colleg Wittenberg (nossa “casa”) e dos irmãos/ãs na fé com os quais tive o privilégio de conviver nestes dias na Alemanha!
* Artigo também publicado no jornal Joinville Luterano 117, edição março/abril de 2020, p. 14 e 15.