O rabino Henry I. Sobel esteve hoje, dia 21 de fevereiro, na 9a Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e divulgou uma carta de apoio ao povo muçulmano onde repudia a publicação de charges que retratam o profeta Maomé.
Respeito pelos muçulmanos
Com crescente preocupação, estamos testemunhando a escalada de tensão provocada pela publicação, em alguns jornais europeus, de charges do profeta Maomé consideradas profundamente ofensivas pelos muçulmanos.
Qualquer pessoa minimamente culta sabe que a lei islâmica proíbe retratar Maomé. É claro que, não sendo muçulmanos, os dirigentes do jornais europeus em questão não têm a obrigação de seguir as normas do Islã. Mas por que desrespeitar gratuitamente os adeptos de outro credo? Qual a mensagem que quiseram transmitir os responsáveis pelo jornal dinamarquês que publicou aquelas caricaturas de extremo mau gosto e pelos outros órgãos da imprensa que a reproduziram? Que todos os seguidores de Maomé são terroristas? Que o próprio Maomé era terrorista? Qual era a finalidade de tal ato? Se era para divertir os leitores, o objetivo deve ter sido alcançado. Convenhamos, porém, que se projetou uma péssima imagem do nível de leitores dos respectivos jornais.
A liberdade de expressão, princípio fundamental do sistema democrático é um direito incontestável do ser humano, tem que ser sempre resguardada. Quando desacompanhada de respeito ao próximo, entretanto, a liberdade de expressão pode ser destrutiva. Sabemos que era perfeitamente legal a publicação daquelas charges. O que se questiona não é a legalidade; é o bom senso, o discernimento, a sensibilidade, a responsabilidade cívica de quem as publicou. A liberdade tem limites, sim. Ela acaba onde começa a liberdade e a dignidade do outro.
Além de politicamente incorreto, contar piada de português na presença de portugueses ou caçoar dos gays na presença de um homossexual é uma estupidez que não tem tamanho. Foi isso que fizeram os corajosos e irredutíveis defensores da liberdade de expressão.
Há circunstâncias em que duas leis, dois preceitos, dois direitos entram em conflito um com o outro e somos obrigados a escolher qual dos dois prevalecerá. Neste caso, no confronto entre liberdade de expressão e respeito pela tradição alheia, a decisão deveria ter se baseado em considerações morais e políticas, politicas no sentido de visarem o bem-estar comum. Em um mundo globalizado, no qual se multiplicam os relacionamentos entre diferentes civilizações e no qual um incidente local é capaz de repercutir internacionalmente, torna-se ainda mais vital cultivarmos a tolerância e a coexistência pacífica.
A meu ver, a decisão de publicar as charges foi mais do que inoportuna. Não é retratando Maomé com um turbante-bomba que promoveremos a harmonia entre os povos de diferentes religiões e culturas. Muito pelo contrário! Os muçulmanos radicais, aqueles que apóiam abertamente o terrorismo, vestiram a carapuça e a usaram para espalhar ainda mais ódio. Os muçulmanos moderados, sentindo-se ofendidos ao serem vistos no Ocidente como terroristas, engrossaram as fileiras dos furiosos manifestantes. Da noite para o dia, os amantes da paz – em todos os campos – perderam aliados e ganharam um número incalculável de adversários.
É importante ressaltar que, apesar de que nossa solidariedade para com a comunidade islâmica neste infeliz episódio, não podemos deixar de condenar categoricamente o excesso de violência da reação muçulmana, inflamada por fundamentalistas, que se aproveitaram da crise para fomentar seus interesses próprios. Lamentamos também o fato de que tão poucos muçulmanos protestam quando homens-bomba assassinam pessoas inocentes, ou quando a Liga Árabe-Européia coloca em seu site uma imagem de Hitler na cama com Anne Frank, ou quando o presidente do Irã declara que o Holocausto nunca existiu, declaração esta que a nós, judeus, dói mais do que qualquer charge.
A única maneira de construir um mundo mais pacífico é tentar compreender o ponto de vista alheio e respeitar aquilo que é sagrado para o outro.
Rabino Henry I. Sobel
Presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista e Coordenador da Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil