Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e Ecumene



ID: 2676

"Ostra feliz não faz pérola"

10/08/2014


“OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA”

 

Lori Altmann1

Roberto E. Zwetsch2

 Rubem Alves nos deixou ou ficou encantado, como ele gostava de dizer das pessoas  queridas, que morrem e deixam saudades. Vamos, sim, curtir muita saudade com a ausência desse escritor, teólogo, educador, filósofo da educação, psicanalista, e pastor no início de sua carreira. Mas com a saudade ficará a ternura por ele e o apreço e amor por seus livros, suas crônicas, seus contos infantis, escritos para crianças que ele adorava, mas que adultos amam, e como!

Rubem Alves nasceu em Boa Esperança, MG, em 15/09/1933, mesma cidade de seu famoso conterrâneo, o músico Nelson Freire. É também a cidade reverenciada por Lamartine Babo e Francisco Alves na conhecida música “Serra da Boa Esperança”. Se Nelson Freire se revelou excepcional como pianista, Rubem Alves será sempre lembrado por sua contribuição à literatura brasileira, ao pensamento sobre a educação e a filosofia da ciência, por seus livros infantis e, não por último, por sua teologia que, nos anos de 1970, se filiou à Teologia da Libertação, ainda que por um caminho independente e muito particular. Ele faleceu em Campinas, cidade onde viveu boa parte de sua vida, no dia 19/07/2014. Conforme registrado em carta guardada por seu ex-colega e amigo Carlos Rodrigues Brandão, que teve a autorização para divulgá-la, assim ele resumiu sua trajetória humana:

Sou grato pela minha vida. Não terei últimas palavras a dizer. As que tinha para dizer, disse durante a minha vida. Recebi muito. Fui muito amado. Tive muitos amigos. Plantei árvores, fiz jardins. Construí fontes, escrevi livros. Tive filhos, viajei, experimentei a beleza, lutei pelos meus sonhos. Que mais pode um homem desejar? Procurei fazer aquilo que meu coração pedia [...]. Não tenho medo da morte, embora tenha medo do morrer. O morrer pode ser doloroso e humilhante, mas à morte, eis uma pergunta. Voltarei para o lugar onde estive sempre, antes de nascer, antes do Big Bang? Durante esses bilhões de anos, não sofri e não fiquei aflito para que o tempo passasse. Voltarei para lá até nascer de novo.

Suas cinzas haverão de fecundar o chão que amou e pelo qual dedicou uma vida inteira de sonhos de liberdade, beleza e paz criadora. E como ele optou, ainda em vida, pela cremação, elas serão depositadas à sombra de um ipê, árvore-símbolo da árvore da vida.

Rubem Alves estudou teologia em sua juventude no Seminário Presbiteriano de Campinas, onde foi aluno do teólogo norte-americano Richard Shaull, que contribuiu com o surgimento da teologia latino-americana nos anos de 1950 e 1960 com sua “teologia da revolução”. Formou-se em 1957 e no ano seguinte foi enviado por sua Igreja Presbiteriana do Brasil para a cidade de Lavras, onde exerceu o pastorado até 1963. Casou-se com Lídia Nopper em 1959, com quem teve dois filhos, Sérgio (1959), Marcos (1962), e uma filha, Raquel (1975), que se tornou sua musa inspiradora dos contos infantis.

Brilhante como estudante e teólogo, em 1963 transferiu-se para Nova York onde fez estudos de mestrado no Union Theological Seminary, cidade em que foi surpreendido pelo golpe civil-militar de abril de 1964 quando leu no trem uma manchete de jornal sobre o fato acontecido no Brasil. Retornou ao Brasil em maio de 1964, mas suas posições teológicas e políticas provocaram a ira da ala mais conservadora de sua igreja. Foi denunciado pelas autoridades eclesiásticas ao governo como subversivo e perseguido pela repressão, o que o obrigou a retornar com a família para os EUA, em 1968, onde recebeu o PhD em 1969 no Princeton Theological Seminary, com a tese publicada em seguida: A Theology of Human Hope (New York: Corpus Books, 1969, com prefácio de Harvey Cox). Sobre este livro há uma informação interessante. O livro deveria chamar-se “Teologia da libertação”, mas o autor foi desaconselhado pelo editor, para quem o título não atrairia público leitor. Mal sabia este último que o título censurado, dois anos depois, seria dado a um dos principais livros da teologia latino-americana, Teologia da libertação. Perspectivas (Lima: CEP, 1971), escrito pelo teólogo católico peruano Gustavo Gutiérrez. Rubem Alves e Gustavo Gutiérrez só foram se conhecer em 1966, quando puderam finalmente conversar sobre a convergência de seus pensamentos e de suas posições teológicas. Um encontro ecumênico em todo o sentido da palavra.

Ao retornar ao Brasil, por indicação do professor Paul Singer, foi contratado para lecionar Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, SP. Em 1971 foi professor-visitante no Union Theological Seminary, em Nova York. Em 1973 tornou-se professor da Universidade Estadual de Campinas onde permaneceu até a aposentadoria. Em 1974 foi professor de Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, sendo depois nomeado professor-titular da Faculdade de Educação da mesma universidade, e em 1979, professor livre-docente do IFCH.

No início da década de 1980 tornou-se membro da Sociedade Paulista de Psicanálise, passando a clinicar em Campinas desde então. Em 1988 foi professor-visitante na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Posteriormente, a convite da Rockfeller Foundation fez residência no Bellagio Study Center, na Itália.

Durante sua carreira acadêmica, Rubem Alves tornou-se conhecido por seus livros que abrangeram uma vasta gama de assuntos e temas. Publicou uma extensa obra, de mais de 120 livros, nas áreas de Teologia, Filosofia da Religião, Filosofia da Ciência e da Educação, Crônicas, uma biografia sobre o Mahatma Gandhi, e muitos livros infantis e infanto-juvenis, entre os quais Ostra feliz não faz pérola, livro publicado pela editora Planeta que conquistou o 3º lugar na categoria contos e crônicas no Prêmio Jabuti 2009. Mas o que mais atraía a atenção das pessoas que o conheceram foi sua paixão de ensinar. Escreveu que ensinar era um ato de alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte. É como a vida de um palhaço que entra no picadeiro todos os dias com a missão renovada de divertir. Ensinar é fazer aquele momento único e especial, ou conforme uma máxima latina, rindo, dizer coisas sérias. Rubem Alves procurava assim mostrar que esta é a forma mais eficaz de transmitir conhecimento. Sua magia não procurava iludir, mas abrir a possibilidade de, pela fantasia, imaginar novos mundos possíveis, que estão guardados nos sonhos mais profundos da humanidade.

Depois de aposentar-se, tornou-se proprietário de um restaurante em Campinas, que lhe permitiu desenvolver sua paixão pela culinária, inspirado pela protagonista do extraordinário filme A festa de Babette, uma das obras de cinema que mais apreciou. O lugar também serviu para ministração de cursos sobre cinema, pintura e literatura, além de contar com um ótimo trio de música ao vivo, contando ainda com a colaboração espontânea de musicistas da Faculdade de Música da UNICAMP.

Ele tinha um site, A Casa de Rubem Alves, que permitia seguir suas reflexões como poeta, educador, pensador, sábio. Recebeu o título de cidadão honorário de Campinas e ainda a Medalha Carlos Gomes de contribuição à cultura. Foi membro da Academia Campinense de Letras.

Sobre Rubem Alves e sua obra foram escritas muitas teses e dissertações. Numa delas, Iuri Andreas Reblin reconstrói com competência e ousadia a “teologia de Rubem Alves”, a ponto de surpreender o próprio teólogo, como ficou registrado em carta a Iuri, publicada na apresentação do livro Outros cheiros, outros sabores ... O pensamento teológico de Rubem Alves (São Leopoldo: Oikos, Faculdades EST, 2009).

Nessa memória, queremos cada qual deixar registrado nossa particular relação de amizade com Rubem Alves para guardar o sabor da experiência pessoal que ele nos proporcionou. Por isto, no que segue, primeiro Lori Altmann vai trazer sua palavra, seguida depois pela de Roberto Zwetsch.

 Lori Altmann:

Perdemos um amigo, um inspirador. Outro dia li uma referência afetuosa da querida Ivone Gebara a ele. Muitas pessoas bebiam de sua fonte de sabedoria. Desde crianças, através de seus livros infantis (segundo ele, eram para todas as idades!), até pessoas jovens, adultas ou idosas.

Como psicanalista, se autodefinia como eclético. Ele dizia que o bom psicanalista precisa, acima de tudo, ter bom senso e sensibilidade para com a outra pessoa. É essa sensibilidade, que nos transmitia mesmo que a distância. Já morando em São Leopoldo, depois de passar um tempo em São Paulo para estudos de mestrado, recebi dele um livro, através de amiga em comum, com esta dedicatória: Lori: Você passou a fazer parte do mundo das minhas memórias. Andamos juntos por tantos caminhos de tristeza e de alegria! Penso sempre no Daniel e nos seus sentimentos de mãe... De longe, de alguma forma, continuamos próximos. O afeto do Rubem Alves.

Se Rubem Alves já vivia em nossa memória, agora permanecerá, pois como bem escreveu Martha Medeiros em Feliz por nada. Rimas da vida e da morte: [...] a gente vive até o dia em que morre a última pessoa que lembra de nós. Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um admirador, mas enquanto essa pessoa viver, mesmo a gente já tendo morrido, viveremos através da lembrança dela. [...] A única homenagem possível: mantê-la viva através do que recordo dela (p. 111-113).

Quero deixar alguns pensamentos de Rubem Alves que me impactaram:

Agora é tempo da felicidade. Cada novo dia é um milagre de graça; até o fim, sem deixar nada para amanhã! Tempus Fugit! Portanto, colha o dia que se inicia como quem colhe uma flor, que nunca mais se repetirá.

O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido. [...] É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. [...] E é preciso saber falar. (...) Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar: adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro (O retorno e terno – Crônicas. Campinas: Papirus, 1992: 25).

 
Roberto E. Zwetsch:

Estava no sábado em Belo Horizonte e depois de me comunicar com Lori por telefone soube do falecimento do Rubem Alves. No domingo, 20/7, os jornais do país anunciavam a morte do educador, psicanalista, escritor, filósofo da educação, teólogo, pastor Rubem Alves. Também me junto a vocês, amigas e amigos, na tristeza e na saudade desse homem extraordinário.

Eu era estudante da Faculdade de Teologia da IECLB em São Leopoldo, em 1972. A direção da Faculdade convidou certo dia Rubem Alves para nos visitar e nos ministrar uma aula. Ele nos encantou. Sabia como poucos falar sem ler aqueles papeis amarelados de aulas escritas há muito e por vezes nunca revisadas. Sua fala vinha embasada num amplo leque teórico, eclético como escreveu Lori, mas rigoroso, provocativo, e às vezes, até demolidor de falsas certezas, o que nos deslumbrava mais ainda, nós que estávamos buscando uma nova maneira, um novo jeito de fazer teologia. Rubem Alves, se bem me lembro, falou mais de duas horas e depois abriu para perguntas e o debate. Não lembro do que ele disse, mas depois li muitos dos seus livros, um dos quais até hoje utilizo nas aulas de Antropologia e Religião (O enigma da religião. 6ª ed. Campinas: Papirus, 2007). Mas lembro bem de sua performance, andando de um lado para o outro, escrevendo nomes e palavras chave no quadro verde, quase dançando o que dizia, sempre procurando a palavra certa, a ênfase adequada para nos fazer pensar. Fiquei literalmente impactado por aquele teólogo protestante, irreverente e alegre, e desde então li muito de sua literatura, tanto a teórica, quanto a dos ensaios (no qual ele era genial) e também a literatura infantil, que Lori e eu lemos seguidamente para nossa filha e filhos. Aliás, agora é a vez de continuarmos esta tradição doméstica feliz com as leituras para a neta Luiza e o neto Gabriel, que igualmente se encantam com aquelas histórias cheias de sabedoria e graça.

Rubem Alves foi um dos primeiros teólogos da libertação. Enveredou por um caminho próprio, sendo por isso mantido a distância do grupo pioneiro dos anos de 1970, o que é de lamentar. Não se deixou prender ou cair na armadilha do poder político. Mas manteve sempre sua independência e semeou a luta pela liberdade e por libertação desde o lugar e com as qualidades que o caracterizaram a vida toda. Por isto, creio eu, será lembrado sempre. E quando se escrever a história da Teologia da Libertação ele terá, certamente, seu lugar de honra, que não buscou, mas conquistou com o árduo serviço da hermenêutica libertadora das amarras de qualquer dogmatismo vão e da reflexão crítica. O último livro dele, que li com muito proveito aprendizado, foi Variações sobre o prazer. Santo Agostinho, Nietzche, Marx e Babette (São Paulo: Planeta, 2011), sugestão oportuna de minha colega Iára Mueller. Fiz muitas anotações nesse livro e vou relê-lo tantas vezes quanto puder como um de seus legados. Abaixo vou registrar um trecho genial sobre Lênin, algo da biografia do grande revolucionário russo que pode desconsertar os menos avisados, principalmente de uma esquerda dogmática insensível à vida.

Certa vez – por acaso – viajamos juntos para Campinas, no ônibus da Viação Cometa, como ele costumava fazer. Aliás, Rubem preferia andar de ônibus a dirigir um carro (outra de suas qualidades, a meu ver). Conversamos sobre amigos, família, leituras, assuntos diversos, sem exageros. Depois descansamos. Mas ele fez questão de me contar uma que passo a vocês. Disse ele que às vezes viajava com um daqueles sujeitos chatos que não param de falar e o incomodavam a viagem inteira. Então ele descobriu um método infalível para calar o sujeito intrometido. Quando o dito perguntava quem ele era, Rubem respondia: “Sou um cara esquizofrênico, meio louco, me separei da mulher, vivo muito sozinho, tenho um caminhão de problemas na minha vida, não sei mais o que fazer”. Pronto, o outro virava de lado e Rubem, com aquele seu sorriso característico e irônico, se via livre do incômodo e podia pensar e descansar tranquilamente.

Como prometido, termino com um trecho de Variações sobre o prazer:

Lênin confessava ter muito medo da sonata Appassionata de Beethoven. Felizmente (ou infelizmente, tudo depende do ponto de vista), no tempo dele ainda não havia CDs. Para que a música fosse ouvida era preciso que alguém a tocasse. Eu já ouvi Beethoven muito mais vezes que ele mesmo. Não tenho informações históricas sobre se Lênin tinha uma ‘victrola’ (palavra que, aprendi faz poucos dias, se deriva de RCA Victor ...) para ouvir a música. O fato é que ele declarou que poderia ouvir a Appasionata o dia inteiro, ele ficava transtornado, entrava num estado parecido ao frenesi de que falou Zaratustra, e era dominado por um desejo de sair pelas ruas abraçando todo mundo, com o perigo, inclusive, de que abraçasse algum banqueiro ou oficial do exército do tsar (p. 89).

Assim escrevia nosso querido amigo e agora ancestral Rubem Alves, que foi presbiteriano e que - apesar das instituições e seus burocratas - elevou o presbiterianismo no Brasil a um patamar que causa orgulho aos seus irmãos e irmãs de fé que foram fieis a sua amizade.

Vamos sentir muito a sua falta, mas ele nos deixou tanta literatura que podemos conviver com ele por muito tempo. Que o Deus da paz (shalom) e da música de Beethoven o tenha em seu regaço.

Pelotas/São Leopoldo, 23 de julho de 2014.
Notas:

1. Universidade Federal de Pelotas, Brasil
2. Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, Brasill.


Fonte: Iluminuras, Porto Alegre, v. 15, n. 35, p. 473-479, jan./jul. 2014


Autor(a): Lori Altmann e Roberto Zwetsch
Âmbito: IECLB
Área: Ecumene
ID: 29515

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