Igreja Luterana na Sibéria — uma visita
P. Renato L. Becker
Faz dez anos que minha esposa e eu estivemos na Sibéria. Lá, do outro lado do mundo — em Sminka, há quinhentos quilômetros da cidade de Vladivostock ajudamos a organizar um retiro para 48 mulheres e seis homens luteranos. Essas pessoas tinham experimentado vida dura. Elas vieram até ali participar do Encontro Anual de todas as Lideranças Comunitárias daquela Comunidade Luterana Russa que fora reinaugurada em 1992, depois da abertura política. Elas estavam ali para buscar forças para continuar nadando contra a correnteza, em meio às dificuldades do contexto.
E que contexto! Elas tinham vindo de vários lugares da Rússia. Algumas chegaram a viajar duas noites e três dias nos desconfortáveis trens da região. Agora
seriam mais 12 horas em ônibus de terceira classe. E daí? Não se ouviu ninguém reclamando de cansaço ou do espaço apertado entre os assentos. Tudo era festa!
Sim, as pessoas que para ali tinham concorrido representavam sete Comunidades Interioranas, todas atendidas pelo mesmo pastor que, para tal, chegava a viajar 300, 850, 3.000 quilômetros para celebrar Cultos, Santa Ceia, Batismos e Casamentos. E ele enviava suas prédicas por e-mail para serem lidas por pregadores leigos em todas as sete Comunidades da sua Paróquia. Sim, aquelas Comunidades oravam pelo seu pastor.
No nosso encontro quase todas as pessoas faziam os seus apontamentos. Quando não entendiam alguma coisa, perguntavam.
Ficamos encantados com o que vimos, ouvimos e sentimos. A metade daquelas pessoas falava e entendia a língua alemã. Sim, aquele povo se comunicava de uma forma alegre e espontânea. E era como se eu estivesse ouvindo a minha avó Romilda, lá pelos idos dos anos sessenta, em Tenente Portela (RS). Ouvia-se o mesmo timbre de voz; o mesmo sotaque centenário que, um dia, fora trazido junto com o corpo, quando da imigração.
Todos aqueles participantes ansiavam por comunhão. Queriam nos ouvir. Perguntavam-nos sobre a Igreja Luterana no Brasil. E assim fomos convivendo durante quinze dias. O ânimo que vimos no coração de toda aquela gente marcou nossa vida.
No diálogo descobrimos que a abertura política — a GLASNOST —, ocorrida em 1992, tornou a vida daquela gente mais difícil. Quisemos saber o porquê daquilo. Disseram-nos que durante o Comunismo até tinham o que comer, uma vez que a possibilidade de trabalho estava na rua. O problema era que, agora, dependiam de uma Máfia que se instalara em cada recanto da sua pátria. Se quisessem vender verdura numa esquina, por exemplo, teriam que pagar porcentagem para esses bandidos. Se dissessem não, essa Máfia acabaria com o seu negócio. Lamentavelmente o Governo não tinha a mínima força para acabar com aquele poder paralelo e corrosivo que, a cada dia que passava, crescia mais e mais na Rússia.
Estávamos curiosos e por isso continuamos perguntando: — Por que a presença de 48 mulheres e apenas seis homens naquele encontro? Disseram-nos que, com o advento do Regime Comunista, toda e qualquer expressão de fé tinha sido proibida. Que, na época, havia severo controle entre as famílias e que, por causa disso, hoje, muitas pessoas estavam atéias. Mas que, lá no recôndito de um e de outro lar, havia certo foco de resistência. Nossa curiosidade saltava dos olhos. Que tipo de resistência? — quisemos saber. A resposta parecia estar ponta: — À noite, muitas avós repassavam seus conceitos e suas vivências de fé para as netinhas, mas só para as netinhas. Hoje estas netinhas cresceram e já alcançaram 30, 40 ou 50 anos. São elas que estão assumindo as frentes de trabalho dentro da Igreja. Que palavra simples de ser dada e, por conseguinte, de ser entendida.
Eram justamente essas mulheres que articulavam o programa organizado pela Obra Gustavo Adolfo — Trabalho com Mulheres (Alemanha) lá naquele recôndito; assessoravam o seu pastor; percebiam os detalhes; enfim, assumiam o nosso Seminário nas mãos. Quase todas possuíam Curso Superior.
Dediquei-me a observar o papel que os homens desempenhavam. Quando tinham a oportunidade de fazer uso da palavra, insinuavam-se como imprescindíveis na conjuntura do momento. As mulheres simplesmente deixavam que o fizessem. Elas não precisavam disputar poder, pois elas o tinham em suas mãos. Suas expressões corporais pareciam querer transmitir que estavam dispostas a repartir dessa condição alcançada por causa de sobriedade.
Impressionei-me quando descobri que a grande maioria daquelas senhoras era descasada. Com abertura e pureza nos olhos deixaram-nos claro: — Nossos maridos tornaram-se beberrões. A convivência familiar torna-se impossível de ser mantida quando os nossos parceiros perdem a esperança. Foi por isso que a maioria de nós optou por caminhada solo. Assim, conseguimos educar melhor os nossos filhos e as nossas filhas. Causou-nos espanto ver nas ruas das cidades pelas quais passamos que, de cada dez homens, pelo menos seis andavam com uma garrafa de cerveja ou de vodka nas mãos.
Na oportunidade visitamos dois grandes templos da Igreja Luterana Russa. O primeiro, antes de o Regime Comunista acontecer, comportava espaço para 2.500 pessoas sentadas. Vimos trabalhadores da construção civil reformando-o. Perguntamos o motivo daquela reforma. Disseram-nos que nos anos cinzentos aquela Casa de Deus tinha sido transformada numa fábrica de armas. Que os membros da Comunidade Cristã tinham sido forçados a implantarem dois pisos de concreto a mais naquela linda obra arquitetônica. O objetivo do Governo de então era plantar no povo a ideia de que a religião era ópio. Lamentavelmente essa triste realidade foi sendo absorvida pela grande maioria das pessoas, enquanto as décadas foram se passando.
O outro templo luterano era menor. Esse, as Forças Militares ocuparam para ser um Museu de Armas Antigas. Vimos fotos de canhões, metralhadoras, armas de grosso e médio calibre expostas no seu interior. O pastor que nos acompanhava disse-nos que, há dez anos, começara a juntar os ex-membros luteranos e que, num certo domingo, passou a ousar celebrar Cultos diante da porta da antiga Igreja ainda ocupada. Um dia, cinco minutos antes de dar início à celebração, começou chover torrencialmente. As pessoas não arredaram o pé da porta. À medida que a chuva engrossava mais e mais louvavam a Deus. Para sua surpresa, soldados russos abriram o templo, convidado a Comunidade a entrar e a se proteger da chuva. O Povo de Deus explodiu de alegria e louvou a Deus como nunca tinha louvado. Estava dado o primeiro passo para conseguirem o seu querido templo de volta. Vimo-lo em reforma.
Dietrich Bonhoeffer escreveu que se deve resistir às barbaridades plantadas pelos homens e pelas mulheres, mas sempre debaixo do manto da submissão a Deus. É justamente essa postura que a Igreja Luterana adota na Rússia. Tenta plantar esperança a partir da Palavra de Deus entre os desesperançados.
O autor é Pastor da IECLB em Joinville/SC
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