Na América Latina e no Caribe, nos últimos anos, os temas éticos, sociais, econômicos e teológicos estão em constante diálogo com o Bem Viver. Essa “espiritualidade” indígena está representada na cruz andina que ensina que tudo na vida é binário: o dia e a noite, tempos de saúde e tempos de doença, as forças do bem e as forças do mal. Esse mundo entra em crise com o desequilíbrio. Para voltar ao equilíbrio, é preciso buscar as raízes do desequilíbrio (VER e JULGAR) e realizar ações concretas (AGIR) para então encontrar o equilíbrio outra vez. Estas ações concretas de reparação devem valorizar 4 pilares:
O Ser, que está relacionado com os valores: princípio, identidade e espiritualidade;
O Saber, com a teoria, a prática e o conhecimento;
O Decidir, com a organização política e comunidade e
O Fazer, com a prática e a produção material e intelectual.
Embora nos últimos anos vivemos transformações políticas importantes em nosso continente, com governos chamados alternativos, vimos que esse panorama pode mudar de maneira inesperada. Alguns desses governos se desgastaram com a corrupção e por causa de enfrentamentos e divisões internas. Mesmo no século XXI, vemos governos democraticamente eleitos destituídos por golpes de estado ou militar, como aconteceu em Honduras e no Paraguai. Em outros países vimos tentativas de destituição, em muitos casos, dirigidos pelos meios de comunicação. A nossa frágil democracia sofre as consequências dessa turbulência política com o incremento da pobreza, violação dos direitos humanos, agressão ambiental, aumento da violência intrafamiliar, especialmente contra a mulher e a criança, o tráfico de meninas e adolescentes para fins de exploração sexual.
As igrejas e organismos membros do CLAI se sentem chamadas a reagir dentro deste contexto. Há os que se posicionam a favor dos governos alternativos e há os que estão contra. Essa prática já pode ser encontrada no Antigo Testamento, onde encontramos uma avaliação muito positiva e louvável do poder político e sua inserção no meio do povo (por exemplo: Davi, Salomão e outros governantes), e, ao mesmo tempo, também encontramos posições muito críticas e de oposição (Samuel, profetas, certos grupos sacerdotais).
Nos encontros do CLAI, afirmamos a necessidade de manifestarmos a nossa posição profética e, ao mesmo tempo, dizer que a melhor maneira de colaborar com as mudanças na América Latina é não lhes atribuir um caráter messiânico, mas mantermos a nossa perspectiva profética de vigilância e denúncia das situações onde se violam os direitos humanos e da natureza, e dedicarmos a nossa tarefa teológica e pastoral de formação de uma liderança com princípios proféticos e evangélicos que atuem dentro da igreja e da sociedade. Cremos que essa é a maneira de contribuirmos para o fortalecimento da sociedade civil, animando o trabalho em redes e promovendo alianças estratégicas que possibilitem a contribuição e a cooperação interdisciplinar.
Para manifestarmos a nossa posição, procuramos fundamentar-nos nos critérios bíblicos. No Antigo Testamento, o critério dos profetas para avaliar os governantes era: a prática da justiça e do direito. Governos nos quais não se podia ver essa prática da justiça e do direito eram governos abomináveis.
O Salmo 82 é exemplar neste sentido:
Deus toma o seu lugar na reunião dos deuses e no meio deles dá a sua sentença: “Vocês precisam parar de julgar injustamente e de estar do lado dos maus! Defendam os direitos dos pobres e dos órfãos; sejam justos com os aflitos e os necessitados. Socorram os humildes e os pobres e os salvem do poder dos maus”. (v. 1-4)
Poderia citar um grande número de outros textos que corroborariam este critério maior da justiça e do direito (1Sm 8,3; Sl 9,4; Sl 10,18; Sl 33,5; Is 10, 1-2; Os 10,12; Am 5,24; Mq 6,8; Mt 6,33; Rm 1,17; 2Pe 3,13; 1Jo 3,10).
Contudo, de acordo com a Bíblia, é importante destacar mais uma característica da prática da justiça. Ela não faz a defesa de um critério in abstracto. O Salmo 82 é muito claro a respeito. A justiça, na perspectiva bíblica, parte da defesa do mais fraco e necessitado, da viúva e do órfão, do estrangeiro e oprimido. Não é uma justiça neutra ou cega.
Assim, o Antigo Testamento estabelece um critério muito importante para a igreja profética: Olhar as ações dos governos a partir da perspectiva da promoção do direito e da justiça. O salmista sabe que a justiça tem causa e causador: o ímpio. Contra este, ou estes, é preciso estar permanentemente atento e vigilante. E, para honrar o mandato divino, quando for necessário, é justo tirar das mãos dos ímpios para o pobre, oprimido e aflito. Ou seja, o salmista não justifica governos opressores, mas os deslegitima. O direito e a justiça não são acontecimento gratuito. Precisam de vigilância e, no caso de rompimento, precisam ser restituídos.
Em sua trajetória pelos caminhos da Palestina, Jesus deu origem a um movimento sui generis. Nem ortodoxo, nem revolucionário à maneira dos zelotes, sicários e macabeus. Sua predicação e prática apontavam para outro radicalismo. Ele dizia para as multidões que o seguiam, como ovelhas sem pastor: “Chegou a hora, e o Reino de Deus está perto. Arrependam-se dos seus pecados e creiam na mensagem de salvação” (Mc 1, 15). Esta mensagem era a que Deus vem para resgatar (go’el) o pobre, o que estava perdido e não tinha mais esperanças de salvação. Que Deus ama ao pecador e dá sua vida por ele. Assim, ao critério do direito e da justiça, Jesus agrega outro com a mesma centralidade: o critério do amor sobre todas as coisas. Conforme a proposta de Jesus, viver radicalmente do amor leva a sociedade a uma mudança completa nas relações humanas, hoje, marcada por interesses, contradições e violência.
Aplicando esses critérios no ecumenismo de gestos concretos:
Na América Latina e no Caribe temos refletido muito sobre o papel das igrejas nos momentos de catástrofes. Claro que a oração e a solidariedade são a principal atitude que sempre devemos praticar. Porém, em situações de catástrofes sempre há dois momentos muito importantes. O primeiro momento é de ajuda imediata, de mobilização urgente para resgatar vidas, de enviar recursos, alimentos, primeiros socorros. Mas, logo chega o momento em que todos esses recursos se vão. Começa então o segundo momento.
Esse segundo momento, é o momento da reconstrução. E reconstrução não significa somente levantar paredes. Também significa reconstruir vidas, reconstruir esperança. É o tempo de se perguntar: O que queremos reconstruir? Que tipo de sociedade queremos daqui em diante? Qualquer reconstrução é também a oportunidade de retificar, de fazer mudanças. Geralmente, as catástrofes produzem muitos questionamentos para o poder e o cuidado de Deus, que precisam ser expressados e trabalhados. Assim, esse é o momento das igrejas em que se exige acompanhar as pessoas em suas dificuldades e voltar a reconstruir suas vidas, suas esperanças e sua fé.
Jesus nos orienta por meio do evangelho de Marcos, capítulo 6, versículos 34-44. Muita gente acudia a escutar a Jesus. Vinham de longe e muitos, por causa da sua situação de pobreza extrema, não traziam nada para comer. Os discípulos estão preocupados e, por isso, recomendam a Jesus que despeça as pessoas para que possam comprar algo para comer. Jesus lhes contesta dizendo-lhes que deem eles mesmos de comer. Os discípulos dizem que nem mesmo o salário de 200 dias de trabalho seria suficiente para comprar pão e alimentar a toda essa gente. Jesus utiliza o verbo dar, enquanto que os discípulos insistem no verbo comprar. Para os discípulos, a solução dos problemas das pessoas está no mercado. Jesus pergunta sobre os recursos que dispõem: “Quantos pães vocês têm? Vaiam ver.” Logo André volta com a informação “por aí há um menino que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas isso não é nada para tanta gente?” A soma dos pães e peixes é sete, que em termos bíblicos significa infinito. Ou seja, a constatação dos discípulos parece ser: “Há uns quantos pães e peixes. Mas o que é isso para tanta gente?” Diante desta constatação, Jesus não faz nenhuma mágica, mas realiza um milagre. Mágica seria se Jesus tivesse colocado um lenço sobre os 5 pães e 2 peixes, pronunciado algumas palavras mágicas – tipo abra-cadabra –, e tirando o lenço de repente aparecem milhares de pães e peixes. Jesus não fez mágica, mas realizou um milagre.
O primeiro passo para o milagre é organizar as pessoas em pequenos grupos. Logo Jesus dá graças a Deus pelos dons da vida, pelos pães e pelos peixes, embora não sejam muitos, mas os reconhece como dádivas de Deus. E depois Jesus realiza o milagre no coração das pessoas, que passam a compartilhar os poucos recursos de que dispõem.
A mesma perícope se repete em Marcos 8, onde termina com uma interrogação: ainda não o compreenderam? O exegeta Ched Myers diz que Marcos fala para a sua comunidade e deseja orientá-la num contexto muito difícil. Provavelmente, este texto aparece próximo a 65 d.C., nos tempos da Guerra Judaica. A pequena comunidade cristã não pode ser confundida com judeus que estão com o Império Romano, nem com os partidários da reação violenta contra os romanos. Ela é primeiramente desafiada a seguir os passos de Jesus que torna radical a vivência do amor e da solidariedade que vai além da comunidade étnica-religiosa. Assim diz Ched: “Os discípulos somente podem imaginar a falta de mercado na economia dominante. Contra esta posição, Jesus continua orientando-os para que tenham seus próprios recursos, estimula-os a criarem uma economia alternativa. A ‘abundância’ que aparece na visão que Marcos tem do Reino, pode se realizar quando os discípulos aprendam a se organizarem e a compartilhar os recursos válidos. Este é o ‘milagre’ narrado nas distribuições de alimento no deserto; por meio dele ninguém precisa ‘desfalecer-se no caminho’ (8.3)”.
Este milagre de Jesus se reproduziu em muitos líderes das igrejas na América Latina. Usando a mesma metodologia de Jesus, muitos agentes de pastoral das igrejas ensinaram as comunidades a fazer sopa de pedras. Vocês sabem fazer sopa de pedra? É assim:
Certo dia, um homem chegou a um povoado e passou nas casas pedindo algo para comer, mas as pessoas lhe diziam que não tinham nada para lhe dar. Ao ver que não alcançava o seu objetivo, mudou de estratégia. Bateu na casa de uma mulher para que lhe desse algo de comer.
- “Boa tarde, Senhora! Dá-me algo para comer, por favor?”
- “Sinto muito, mas neste momento não tenho nada em casa”, disse ela.
- “Não se preocupe – disse amavelmente o estranho –, tenho aqui na minha mochila duas pedras, com as quais poderia fazer uma sopa. Se você me permitisse pô-las numa panela de água fervente, eu faria a melhor sopa do mundo”.
- Você vai fazer uma sopa com pedras? Você está brincando comigo!
- Em absoluto, Senhora, prometo-lhe. Por favor, dê-me um pote bem grande e eu lhe demonstrarei”.
A mulher buscou a maior panela e a colocou no meio da praça. O estranho preparou o fogo e colocaram a panela com água. Quando a água começou a ferver já estava toda a vizinhança ao redor daquele estranho que, depois de deixar cair as duas pedras na água, provou uma colherada exclamando:
- Deliciosa! A única coisa que precisa são umas batatas”.
Uma mulher se ofereceu imediatamente para trazê-las de sua casa. O homem provou de novo a sopa, que já tinha um sabor muito melhor, mas achou que faltava um pouco de carne.
Outra mulher voluntária correu para sua casa buscá-la. E com o mesmo entusiasmo e curiosidade se repetiu a cena ao pedir umas verduras e sal. Finalmente pediu: “Pratos para todos!”
As pessoas foram para suas buscá-los e até trouxeram pão e frutas. Depois todos se sentaram a saborear a esplêndida comida, sentindo-se estranhamente felizes em compartilhar, por primeira vez, sua comida.
O estranho se despediu, não sem antes deixar-lhes uma das milagrosas pedras, que poderiam usar sempre que quisessem fazer a sopa mais deliciosa do mundo.
Nossa riqueza e nossa pobreza:
Na América Latina reside a maior e mais diversa unidade vital do planeta. É aqui onde temos água e oxigênio em abundância. Aqui continuam sendo geradas espécies genômicas ou variantes das conhecidas. O Chile tem as maiores minas de cobre, Brasil e Paraguai têm as maiores reservas de água, há gás e lítio na Bolívia, petróleo na Venezuela, no México, no Equador, no Brasil, na Argentina, ferro no Brasil, níquel em Cuba e muitos outros elementos que, junto com a variedade da nossa cultura e a maior biodiversidade do mundo, oferecem condições econômicas e geopolíticas que não existem em nenhum outro lugar do mundo, dessa maneira tão concentrada. No entanto, ao mesmo tempo, a América Latina é o Continente mais desigual do planeta. A desigualdade entre ricos e pobres aumentou na América Latina nos últimos anos. Atualmente, 20% mais rico, retém 56,9% dos recursos, enquanto que 20% mais pobre recebe apenas 3,5%, o que faz do Continente a região mais desigual do mundo.
Mesmo que tenhamos essa diversidade de riquezas culturais, a nossa pobreza está em falta de unidade e integração para pensar num modelo de desenvolvimento de acordo com as nossas culturas, a nossa diversidade e a nossa espiritualidade. As forças contrárias ao nosso desenvolvimento querem que tenhamos medo dos nossos vizinhos, que tratemos de comprar armas para defender a nossa soberania, que instalemos megaprojetos em territórios indígenas para assegurar a exploração e exportação energética e, ao mesmo tempo, facilitemos a penetração e o saque a partir do próprio coração do Continente. Em nome de um duvidoso conceito de desenvolvimento – os 80 km do Canal do Panamá terão como alternativa os 20 mil km da rota amazônica, que passa por fontes de água, minerais, gás, petróleo, por corredores industriais, por refúgios indígenas e por tudo aquilo que é valioso e apropriado. Para desviar os nossos povos desses recursos, vivemos em constantes disputas regionais e processos eleitorais, e políticos polarizam os nossos povos e nossas famílias.
O papel profético das igrejas neste contexto:
Segundo Paulo, o evangelho decididamente se encarrega da vida das pessoas que não têm valor na saciedade. 1 Co diz: “poucos de vocês eram sábios ou poderosos ou da alta sociedade. Para envergonhar os sábios, Deus escolheu aquilo que o mundo acha que é loucura; e, para envergonhar os poderosos, ele escolheu o que o mundo acha fraco. Deus escolheu aquilo que o mundo despreza, acha humilde e diz que não tem importância para destruir o que o mundo pensa que é importante” (1.26-28).
É com estas pessoas, motivadas pela fé, que a comunidade cristã anuncia uma nova forma de viver no mundo. A koinonia cristã não é um modelo para toda a sociedade, mas ela quer ser luz, levedura, experiência de outra forma de viver no mundo. O desafio, sempre renovado com cada conjuntura histórica nova, é reinterpretar este evangelho, conforme as necessidades das pessoas e os sinais do Reino que o Espírito suscita.
Na carta aos Filipenses, Paulo escreve como, no seu modo e ver, uma pessoa cristã participa na luta pela cidadania. Diz assim: “Somente procurem organizar sua vida (politeúesthe!) de acordo com a Boa Nova de Cristo”. Paulo, em primeiro lugar, reafirma a sua convicção: o povo cristão participa da cidade como cidadão. Não está fora ou além da vida na sociedade. Está envolvido nela e em suas tarefas. Participa da gestão da sociedade civil, da cidade e do governo. Este reconhecimento do valor da cidadania como vocação cristã é de vital importância para a encarnação da fé na atualidade. Isto quer dizer, por exemplo, que se os cristãos participam das organizações que lutam contra a fome e a miséria ou dos conselhos municipais que tratam do tema da infância e da adolescência ou que tratam da saúde, fazem o que corresponde à vivência concreta da fé no mundo. Não é algo opcional. É compromisso de acordo com a fé. Além disso, Tiago tem toda a razão ao condenar a fé que não é materializada em atos (Tg 2.17).
Assim, em segundo lugar, a pessoa cristã deverá exercer sua cidadania coerente com o evangelho, de tal forma que sua participação nos destinos da sociedade civil seja um testemunho do amor de Cristo. Ser digno do evangelho implica assumir posturas éticas de respeito pelo outro, da verdade e da humildade. A pessoa cristã saberá ouvir e contribuir, estará sempre pronta para se levantar e sujar seus pés no barro das lutas históricas, ainda que isso possa significar, em alguns casos, perda de prestígio, ataque à honra pessoal, ou em casos limite, ameaça à vida (perseguição e morte). Este exercício da cidadania não é algo apenas individual, como se ficasse ao critério de cada um, o que fazer; é, antes de qualquer coisa, um esforço comunitário. Neste sentido é que a comunidade está qualificada e procura permanentemente qualificar-se para participar, de forma organizada, da gestão e da transformação da vida em sociedade.
Por isso, para finalizar esta apresentação, quero convidá-los a orar pela próxima Assembleia do CLAI que se realizará aqui em Havana/Cuba, de 19-24 de fevereiro de 2013. Durante este ano preparatório de 2012, queremos promover um movimento continental com o tema: Afirmando um ecumenismo de gestos concretos. Este tema está fundamentado na oração de Jesus no Evangelho de João 17.21: “Que todos eles sejam completamente unidos... para que o mundo creia que tu me enviaste” e na concepção reformatória do século XVI que diz que a “vera theologia practica est”. Por meio das Mesas Nacionais do CLAI, estamos trabalhando com o propósito de fortalecer os organismos ecumênicos nacionais para que analisem a sua realidade nacional e, por consenso, encontrar desafios comuns e condições de impactar na sociedade para uma mudança, que individualmente não temos condições de alcançar.
Rev. Nilton Giese
Secretário Geral do CLAI
giese1959@gmail.com
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