Saúdo a todas e todos conciliares nas pessoas do Pastor Presidente, Dr. Walter Altmann, do presidente do Conselho da Igreja, Prof. Otávio Schüller, e da presidente deste Concílio, Dona Iris Pedrotti. Agradeço o honroso convite feito para proferir palestra neste evento maior da IECLB. O convite me honra, me alegra e, claro, se coloca como desafio.
Alguns termos do tema proposto para a palestra, bem como para o tema da IECLB de 2011, nos remetem para o horizonte das utopias. Isso se dá especialmente com os termos “paz” e “esperança” e com o próprio nome “Deus”. Estes termos carregam em si dimensões utópicas. O escritor Eduardo Galeano marcou a palavra ‘utopia’ no contexto latino-americano, dizendo: “A utopia está no horizonte. Se damos um passo ela se afasta um passo. Para que serve, então, a utopia? A utopia serve para que caminhemos.”
Desde os tempos antigos, as esperanças projetadas em diversas formas animam pessoas em sua caminhada; orientam com suas coordenadas de sentido outorgando sentido à caminhada. Para pessoas cristãs, especialmente as esperanças amalgamadas em textos das Sagradas Escrituras indicando o horizonte do Reino de Deus são animadoras da caminhada; norteiam o caminho e fazem (podem fazer) sair da letargia, do comodismo, buscando compromissos, sempre na esperança do Reino vindouro, seja messiânico seja apocalíptico. Este reino, porém, não se realiza plenamente por meio de ações humanas, mas se consuma somente como dádiva do Deus criador e salvador. O Reino de Deus como esperança por paz duradoura permanece utopia, continua sendo esperança; neste sentido, inspira para o movimento.
Contudo, a fé que brota da Palavra busca dar respostas na caminhada e na existência histórica da pessoa que crê. Assim, os termos-chave “criação” e “compromisso” remetem para o contexto de outro conceito muito utilizado em discussões recentes no contexto latino-americano, especialmente nas edições do Forum Social Mundial. Trata-se do termo “heterotopias”. Diferente do que na palavra utopia, na qual o prefixo de origem grega “u” nega a historicidade do lugar e a possibilidade de sua realização histórica, no termo heterotopia o prefixo grego “hétero” indica para “outro”, remetendo, pois, a outro lugar além do lugar no qual a esperança é enunciada. Parece ser típico das projeções de esperança que o lugar em que as pessoas enunciam suas esperanças é, em geral, um lugar de sofrimento, de crises, de angústias e de expectativas por outra realidade melhor. A esperança impele, assim, para a busca por concretizar situações, em que o compromisso das pessoas que crêem e das pessoas de boa vontade é fundamental para colocar sinais da esperança que move a caminhada, assumir compromissos para outra realidade melhor, sempre na expectativa de que Deus venha completar a obras das nossas mãos.
Em nosso tema, o foco da esperança e do compromisso é a “Paz na criação de Deus”. A direção do olhar é para a questão ecológica. Outras dimensões são igualmente importantes, tais como a busca por paz em situações de conflitos ou a busca por paz em situações existenciais conflituosas. As dimensões não se excluem, mas o foco aqui é a questão ambiental.
Na linguagem bíblica, tanto a criação como espaço de vida e cultura quanto o lugar dos humanos neste espaço da criação é articulado em termos de fé. “No princípio criou Deus os céus e a terra”, diz em Gênesis 1.1. É a creatio prima, a “criação primeira” de Deus, nas origens. Neste espaço criado em meio ao caos existente das “águas do abismo” (Gn 1.2), criação é uma realidade que o próprio Deus estabelece e precisa constantemente manter sob controle e cuidado. O testemunho de fé bíblico situa o ser humano neste espaço que não é um jardim paradisíaco, mas é uma “roça de cultivo”. Aí o ser humano criado por Deus recebe atribuições específicas Destaque merece a atribuição de imagem e semelhança com o Criador (Gn 1.26-28), recebendo tarefas que oscilam entre o domínio e o cuidado (Gn 1.28; 2,15). Com a ação do humano e a presença continuada de Deus na sua criação podemos falar de “criação continuada”, a ser mantida por Deus e pelos humanos contra as forças do caos.
O credo criacionista perpassa toda a Bíblia. Eco especial tem o Salmo 104, quando enfatiza que o Espírito de Deus é que vivifica toda a criação. O salmista expressa seu louvor dizendo: “Que variedade, Senhor, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste [...] Envias o teu Espírito, eles são criados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104.24,30).
A confissão de fé do povo de Israel, condensada num credo monoteísta típico daquela expressão religiosa, passa por releitura e ampliação de sentido no seio do cristianismo das origens. O Deus criador monoteísta dos hebreus, além de sua presença no mundo na forma da ruah, é reconhecido na vida, cruz e ressurreição de Jesus de Nazaré. Na Carta aos Colossenses se lê: “Ele [Cristo] é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois nele foram criadas todas as cousas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis [...] Tudo foi criado por meio dele e para ele” (1.15-16). Com isso, o Deus criador é simultaneamente o redentor e o sustentador, três formas de ação do mesmo Deus.
A tradição da igreja dos primeiros séculos amalgamou esta diversidade na unidade das palavras do Credo Apostólico. Por isso: “Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador dos céus e da terra.” Estas formulações sabidamente receberam as significativas explicações de Martim Lutero, que até hoje ecoam em nós.
Falar da ‘criação de Deus’ nos remete, portanto, a um ponto nevrálgico da teologia cristã. Entende-se, reconhece-se, crê-se o mundo existente como obra criadora de Deus. ‘Criação’ remete à experiência da dádiva e da gratuidade divinas. Dizer ‘criação’ pressupõe a consciência da relação primordial entre Criador e criatura. A própria existência é vista como dádiva. E sendo Cristo o primogênito da criação, a própria criação é substancialmente dignificada por meio da encarnação de Deus em Cristo. A criação, o conjunto do mundo criado, portanto, é entendido como transparência para Deus. Especialmente por meio do Cristo encarnado, mas também pela ação do Espírito, Deus está presente na criação à espera do reconhecimento por parte dos filhos e filhas, suas criaturas, como bem o expressa o apóstolo Paulo no capítulo 8º de sua carta aos Romanos.
Dizer também que Cristo é o Alfa e o Ômega significa afirmar que toda a criação e, portanto, toda a história [humana e natural] é vista em perspectiva teleológica, isto é, ela se encaminha para uma destinação última, que, em fé, entendemos como o tornar-se pleno do Reino de Deus, consumador e redentor.
Convém salientar que falar de ‘criação’ é falar em linguagem da fé, discurso teológico, fala confessional. Em um mundo “emancipado” de Deus, como já o propunha o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, e tantos outros teólogos depois dele, a exemplo de Jürgen Moltmann ou Hans Küng, que trabalham sob influência do paradigma da secularização, falar de ‘criação’ significa assumir o risco do conflito. Significa assumir uma posição de resistência em face do chamado ‘mundo moderno’, no qual Deus perdeu o seu lugar como referência e como presença. Esta resistência, porém, não deveria se expressar em mero conservadorismo como acontece em algumas posições teológicas do chamado ‘fundamentalismo’, mas deveria buscar estabelecer pontes, exercitar diálogos entre dois campos distintos, a fé e a razão.
A simples contraposição conflitual na arena política entre religião e ciência não é de fato satisfatória para quem busca dar respostas à “razão da esperança que há em vós” como se lê na Primeira Carta de Pedro (3.15). Uma estória pode ilustrar o desencontro das perspectivas entre fé e ciência quando não se busca dar efetivamente resposta a questões de fundo:
“Um astrônomo convidou um pastor, amigo seu, para jantar em sua casa. Antes do jantar, o astrônomo levou o pastor para o pequeno observatório que ele havia montado na parte superior de sua casa. Pelo telescópio observaram toda a variedade das constelações celestes. Após algum tempo, o pastor fez a pergunta: “quem criou tudo isso?”. Sem hesitar, o astrônomo respondeu: “Isso surgiu por acaso...”.
Algum tempo depois, o pastor convidou o cientista para jantar em sua casa. Antes da refeição, o pastor levou o astrônomo para uma conversa em seu escritório. Surpreso, o cientista observou que ali havia um móbile que reproduzia com fidelidade, em proporções menores, o sistema solar. Admirando o objeto, o cientista perguntou: “quem fez isso?”. Sem hesitar, o pastor respondeu: “Isto foi criado por acaso...”.
A fé e a ciência formulam, cada qual a seu modo, as “certezas” de seu convencimento sobre um problema concreto. A questão da origem do cosmos e da vida está entre os temas comuns a ambos. Também o problema de como entender o mundo que habitamos e que, nos últimos tempos, vem sendo atingido por número crescente de calamidades e catástrofes naturais, ocupa tanto a teólogos e quanto a cientistas.
No tempo cronológico conhecido como Modernidade duas visões diferentes de mundo estão constantemente presentes: a ‘visão de fé’ e a ‘visão científica’. Os dois são como verso e reverso da Modernidade. Na esteira de pensadores como Descartes, Spinoza e tantos outros nos diversos campos da ciência, o “mundo real”, o cosmo, o universo passa a ser visto gradativamente de forma desnudada da linguagem da fé. Alguns autores ou pesquisadores do campo científico, embora em reação ao paradigma criacionista, ainda mantêm certa vinculação com um “princípio inteligente” ou com a idéia de um “relojoeiro do universo” ou mesmo com a metáfora da “mente de Deus”, como no caso de Stephen Hawking. Mas visão e linguagem científica contemporânea predomina a idéia de que a natureza ou a criação é uma grande “teia da vida”, totalmente perpassada pelo princípio da complexidade, sem uma causa inteligente na sua origem, sem leis universais, caos, e sem um fim teleológico (pré-)determinado.
Nesta teia da complexidade não se pode operar somente pela lógica do reducionismo, por mais importante que seja este procedimento da ciência experimental. Os sistemas complexos, tais como o clima e o cérebro humano, não podem ser compreendidos somente a partir de suas partes. As partes podem engendrar reações e combinações novas, que fogem às projeções das supostas leis naturais ou matemáticas da criação (Gleiser). Por isso impõe-se uma visão de conjunto, impõe-se buscar sentir e perceber como funciona o sistema.
O desafio está marcado pela necessidade de pessoas crentes que vivem em um mundo “moderno” buscarem pontes de diálogo entre linguagens diferentes: a linguagem da fé e a linguagem da ciência.
No que se segue procurarei esboçar duas visões diferentes do problema da paz na criação de Deus. Não usarei o modelo da dialética tese, antítese, síntese, porque da conjugação dos dois campos de saber (teologia e ciência) ainda não há uma síntese acabada. Começarei com algumas pinceladas da questão a partir de alguns pontos de vistas das ciências. Depois indicarei algumas perspectivas bíblico-teológicas, já formuladas com indicativas de passos possíveis, alimentado com a esperança de que na confluência dos saberes, ciência e fé, juntos, podem, pela interrelacionalidade, levantar questionamentos, oferecer respostas, propor passos, contribuindo para a emergência e sedimentação de um novo paradigma, o chamado paradigma ambiental.
A VISÃO A PARTIR DAS CIÊNCIAS
Com Darwin e os cientistas na esteira dele, o mundo ficou mais velho do que supõe o cálculo da s gerações da Bíblia que resulta na “idade diluviana”, que prevaleceu até o século XVIII. Hoje já nos habituamos a falar de milhões ou até de bilhões de anos da história natural do planeta terra. Nesta história, o ser humano é uma aparição recente. Os humanos apareceram tardiamente como um fenômeno nos últimos minutos antes da meia noite. Com relação ao à história do gênero humano somos, pois, remetidos a uma trajetória evolutiva e de desenvolvimento de longa duração. Cronologicamente, a ciência localiza o antecessor mais nobre dos humanos, o homo sapiens, entre 150 a 120 mil anos atrás, em solo africano.
Em analogia às navegações do século XVI que, depois de muito tempo de afastamento e isolamento, colocaram novamente em contato os povos euro-asiáticos com os autóctones “americanos”, há historiadores que utilizam a expressão “colombo negro” em relação àqueles ancestrais que saíram do solo africano e gradativamente foram povoando cada vez mais espaços na Terra. Este “colombo negro”, impulsionado por curiosidade ou pela necessidade de adaptação e busca de novas fontes de alimentação e de sobrevivência, foi se espalhando pelos diversos recantos do mundo habitado. Por vezes, uma estação de parada pode ter levado centenas ou até milhares de anos. Por isso, certos espaços só muito recentemente, isto é, há 2.000 ou 1.500 anos atrás, receberam pela primeira vez a impressão de uma pegada humana em seu solo. Algumas ilhas do Pacífico figuram entre tais espaços de povoamento humano recente.
Em outros tempos, eras glaciais permitiram contatos possíveis, como, por exemplo, pelo estreito de Berihng. O fim da última era glacial há 10 mil anos atrás com elevação do nível dos oceanos moldou basicamente os contornos do globo terrestre nos termos geográficos atuais, gerando separações e fomentando desenvolvidos diferenciados nos diferentes lugares. A ‘revolução verde’ da agricultura nas antigas civilizações dos vales possibilitou a sedentarização e a criação das cidades e das culturas urbanas nos grandes vales fluviais como na Mesopotâmia, no Egito, na China e no continente indiano. Nestas culturas, o ser humano já se revelou em sua capacidade de homo faber, isto é, um ser humano que intervém na natureza, transformando-a em espaço cultural. Em alguns destes lugares, revelou-se também a necessária dimensão cuidadora dos humanos para com o seu ambiente natural. Exemplo disso são as normas no Código de Hamurábi, de 1800 a.C., que recomendavam especial cuidado para com os canais de irrigação, os quais possibilitariam a riqueza e o bem estar e a preservação daquela civilização mesopotâmica por tempos incalculáveis.
As civilizações que se estabeleceram em torno do Mar Mediterrâneo puderam experimentar saltos enormes no seu desenvolvimento, em especial por conta das condições naturais e geográficas favoráveis, mas também como resultado do incremento do saber e conhecimento em decorrência da confluência das grandes rotas comerciais no mundo antigo e medieval. A partir da concentração de conhecimento e de interesses no espaço europeu, o próprio homem humano europeu se entendeu cada vez mais a si mesmo como senhor e dominador do ambiente, dando origem à clássica matriz eurocêntrica do conhecimento e da ciência, que ainda molda o jeito moderno de pensar e agir. Neste chamado paradigma moderno, o mundo ou a natureza é visto como um grande reservatório de recursos à disposição do ser humano para satisfação de suas necessidades e de seus desejos (Kuhn). As relações capitalistas funcionaram como propulsoras de enormes avanços tecnológicos, gerando novas necessidades e buscando superar limitações impostas pela própria natureza.
A voracidade das necessidades e dos desejos aumentou incrivelmente quando no século XVIII a humanidade atingiu numericamente o primeiro bilhão. Este primeiro bilhão humano coincide temporalmente com a revolução industrial capitaneada pela Inglaterra. A partir daí a demarcação geopolítica do mundo se tornou ainda mais crassa. O novo mundo, com exceção da América do Norte, deveria corresponder ainda mais à sua função de fornecedor de recursos naturais para a indústria européia, não importando os custos humanos e ambientais destes processos de exploração. Com isso, o capitalismo proporcionou uma acumulação de riquezas nunca dantes vista na história humana, deixando lamentáveis rastros de destruição ambiental e humana.
A tecnociência possibilitou ainda mais a explosão demográfica, com diminuição da taxa de mortandade infantil, do aumento das possibilidades reprodutivas e com o prolongamento da média de idade da população. Com a industrialização crescente e a mecanização de processos produtivos, houve fluxos migratórios do campo para a cidade. Os grandes conglomerados urbanos passaram a sinalizar esta marcha do progresso e, gradativamente, também certo descompasso.
Os impactos ambientais do crescimento humano se fazem perceber nitidamente. Ainda que a ciência e a técnica já estivessem em condições de frear as nefastas intervenções no ambiente, a taxa de degradação do ambiente natural tem aumentado acima da taxa de crescimento populacional. O homem retira da natureza matérias primas acima da capacidade de regeneração sistêmica da natureza. Estima-se que a taxa de extinção de espécies naturais cresce na mesma proporção do crescimento da população. Os descendentes daquele ‘colombo negro’ acabaram se metamorfoseando na cor da pele. Os descendentes embranquecidos, por várias razões, engendraram mais fortemente uma lógica ecocida. Salvo algumas exceções honráveis, por onde passam, os humanos na sua ânsia por vida, por pressões econômicas e fatores históricos, por satisfação de desejos limitados e de desejos ilimitados, interferem, destroem e poluem o ambiente. Desmatamento, desertificação do solo poluição dos mananciais são facetas da crise uma ambiental de proporções globais. Estes desajustes do ambiente vão gerando perceptíveis mudanças climáticas. As crises exigem cada vez mais sacrifícios e adaptações dos humanos às respostas ou ao comportamento do ambiente. Tsunami, enchentes, calor excessivo, deslizamentos como em Santa Catarina, cheias no Pernambuco são indicativos para isso.
Hoje se discute se as facetas da crise ambiental, tais como a chuva ácida, o aquecimento do planeta e os câmbios climáticos têm causas antrópicas ou não. Isto é, discute-se se o homem e sua forma de organização e de produção são responsáveis por tais fenômenos catastróficos ou se a própria natureza se organiza ciclicamente com efeitos nefastos sobre parte dos seres que ocupam o planeta. Nos grandes encontros internacionais tem prevalecido a tese da causa antrópica das crises ambientais. Embora contestada por alguns cientistas, esta tese situa as discussões atuais como conseqüência de um longo processo evolutivo e de expansão do ser humano sobre a terra. A evolução humana coloca em risco a própria humanidade e o ambiente como um todo, gerando incertezas quanto ao destino especialmente das gerações futuras.
Somente na década de 1970, com a crise do petróleo, os alertas científicos começaram a ganhar algum eco na opinião pública. O documento “Nosso futuro comum”, da Comissão Brundtland, talvez pela primeira vez na história, deu expressão à percepção de que os recursos naturais são finitos e que o desenvolvimento humano não pode se dar indefinidamente como um ininterrupto processo de assalto aos recursos do meio ambiente. A partir daí o conceito de “desenvolvimento sustentável” passou a ganhar espaço como forma de indicar um tipo de desenvolvimento, no qual o modo de organização da humanidade deveria estar ajustada às condições do ambiente, possibilitando a regeneração sistêmica do próprio ambiente.
Com isso estavam lançadas as bases dos movimentos ambientais e do pensamento ecológico contemporâneos. A questão do ambiente foi assumida como tema em grandes conferências da ONU como confluência de dois movimentos com interesses distintos: a) os países capitalistas buscando assegurar sua perpetuação com a proteção de reservas naturais; b) grupos com crescente consciência ecológica buscando regulamentações em nível mundial. A Eco 92, no Rio de Janeiro, foi um marco neste sentido, com a deliberação da Agenda 21 e a Convenção sobre biodiversidade. O Protocolo de Kyoto proporcionou avanços com a projeção e a negociação de taxas menores de emissão de CO2 pelos países, com a possibilidade de realocação do ônus entre os países do globo por meio negócio com créditos de carbono. A Conferência de Copenhagen sabidamente não avançou nestes acordos e estima-se que a próxima Cop 10 em Cancun também não trará avanços significativos.
Os povos antigos ou tradicionais já haviam intuído ou reconhecido o que os contemporâneos agora insistem em dizer: a terra é um grande sistema vivo, é uma grande casa para todos os elementos da criação. Trata-se da ‘hipótese gaia’ que em época recente foi formulada por James Havelock. Segundo esta ‘hipótese gaia’, as interferências exacerbadas numa parte deste grande sistema vivo repercutem sobre o todo. Impõe-se, pois, a perspectiva da interdependência entre as diferentes partes do todo. Por exemplo: a chamada corrente do Golfo, que é um corredor marítimo e submarítimo circular que incessantemente cruza o Atlântico, levando águas quentes do Caribe para o hemisfério norte e gerando um fluxo incessante de energia a fim de manter a constância do clima em ambos os hemisférios. Com o derretimento de enormes quantidades de gelo nas calotas polares introduz-se grande quantidade de água doce nesta corrente do golfo, interferindo negativamente na sua função de manutenção da constância do clima global. É um fenômeno natural, sobre o qual incidem fatores ligados ao aquecimento global, sendo este decorrente da matriz produtiva da humanidade como um todo.
Os seres humanos, hoje na casa dos 7 bilhões, e em projeções médias na casa dos 12 bilhões de pessoas em 2050, constituem uma interferência ininterrupta no ambiente. E isso não só pelo quantitativo numérico, mas pelo modo predador de sua forma de produção e consumo. No caso brasileiro, a população em breve chegará à casa dos 200 milhões de habitantes espalhados sobre um território ricamente abençoado com recursos naturais. Como brasileiros temos muito espaço para nos expandirmos. Contudo, estamos inseridos num sistema de produção e consumo mundial. As necessidades e os desejos mundiais projetam-se para dentro do nosso desenvolvimento. Assim, se dá, por exemplo, com a produção da carne, mas também com a produção do etanol, sinal de mudança na matriz energética. A um contingente de quase 200 milhões de habitantes soma-se quase igual número de cabeças de gado bovino, com uma taxa de crescimento de 5,5% ao ano desde 2002, um número e uma taxa situados acima da média mundial. Este número gera riquezas, dividendos e divisas; com o resultado do processo produtivo se mata muita fome mundo afora, mas também se acelera a ciranda da depredação do ambiente. Pois há conjugação de intervenções: no avanço da cana para a produção do etanol, o boi cede lugar e ocupa novos espaços em áreas de cobertura florestal especialmente na Amazônia, acelerando o desmatamento da floresta amazônica. Além disto, essa “população bovina” é responsável por significativa emissão de gás metano na atmosfera. No Brasil, as emissões de CO2 não são tanto decorrência da matriz industrial e de transporte, como em muitos outros países, mas do modo de intervenção exacerbada nestas fartas riquezas que a criação alocou em solo brasileiro. Desmatamento, queimadas, erosões, produção intensiva de animais lançam elementos poluentes no ambiente.
As interferências mundiais dos humanos sobre o ambiente natural chegaram a níveis críticos. O acúmulo de emissões poluentes já criou uma “sobrecarga negativa”, a qual, segundo alguns cientistas, continuará a ter sua “vida própria” por mais algumas gerações ainda que hoje cessassem por completo as emissões de poluentes, o que obviamente é algo de fato absolutamente utópico. O Relatório Planeta Vivo 2010, editado por WWF Internacioal, aponta que as emissões atualmente estão em torno de 50% acima das capacidades regenerativas do ambiente sistêmico da terra. Para atender às necessidades da população mundial num padrão de consumo similar ao de alguns países de primeiro mundo precisaríamos hoje de 5 planetas Terra.
Também a água, este elemento vital, se torna um problema. Hoje, mais de 70 países apresentam significativo déficit de recursos hídricos capaz de comprometer a saúde de seus ecossistemas. A lógica da poluição e da contaminação aliada à corrida pela privatização da água acelera cada vez mais a ‘luta’ pelo acesso a este elemento efetivamente vital. Pela proximidade com nossa religião, o rio Jordão, em Israel, é um exemplo lamentável. Em algumas partes deste rio, João Batista já não mais teria água para o batismo de Jesus. Chegamos a um ponto sem retorno?
O quadro delineado coloca um dilema seríssimo. Levantam-se muitas perguntas, tais como: haveria possibilidades efetivas de desenvolvimento e prosperidade sem crescimento econômico? Seria possível um managing sem crescimento? É possível crescer “mais devagar com planejamento para evitar o desastre”? É possível aidna frear a ciranda da destruição ambiental? Será que a proposta de um “crescimento verde” é capaz de atender às demandas crescentes de uma população crescentemente maior em face de recursos cada vez mais escassos? Será que ações concretas de slow down, de diminuição da velocidade do crescimento ou do consumo, poderão efetivamente reeducar hábitos e gerar novas atitudes nos mais diferentes âmbitos? Estas são perguntas angustiantes, a partir das quais se enunciam esperanças e se busca firmar compromissos para a construção de heterotopias, buscando estabelecer espaços de um mundo melhor.
Ao invés de paz com a criação, o modo dominante de organização dos humanos antes aponta para um cenário de ininterrupta guerra predatória, que vai dizimando as chances das gerações presentes e muito mais das gerações futuras, numa marcha do triunfo do egoísmo, do interesse próprio e da acumulação privatista. Aparentemente, as chances de paz na criação são remotas, ou, então, experimentáveis somente em algumas ‘ilhas’ dentro do todo. No seu conjunto, porém, a visão não é muito alentadora.
Neste diagnóstico inquietante da nossa casa global, o ser humano é peça chave de muitos desajustes. Parafraseando um topos da teologia luterana que fala do homem como simul justus et pecator, aqui se poderia dizer que o ser humano é simul sapiens et demens; ele é simultaneamente sábio e louco. “O mundo moderno trouxe muita tecnologia, mas pouca sabedoria”, afirma Hans Küng. A tecnologia acelera a loucura da devastação. É preciso redescobrir formas de vida com mais sabedoria. A escuta atenta à formas culturais dos povos pode ser fonte de inspiração no sentido de fazer prevalecer na contraditoriedade humana o lado sábio e cuidador dos humanos. É o homem pecador chamado à nova forma de vida.
Face à esta engenhosidade e esta loucura do empreendimento humano sobre a face da terra pode-se aplicar uma palavra de Martin Luther King, que disse: “Creio que as pessoas que vivem para os outros chegarão um dia a reconstruir o que os egoístas destruíram”. Com isso voltamos a tema da esperança, ao terreno da utopia, marca característica da fé cristã, embora também compartilhada por outros segmentos religiosos ou filosóficos.
O OLHAR A PARTIR DA FÉ
O jeito evangélico-luterano de ser igreja no Brasil tem sido um jeito antes acanhado do que arrojado. Se quem conhece afirma tal coisa em relação a outros âmbitos como o da missão, por exemplo, o mesmo se poderá dizer em relação às demandas ecológicas. Reina certa apatia ou letargia. É claro que no conjunto da IECLB há louváveis iniciativas de passos “ecologicamente corretos”, que caminham no sentido das lições de sabedoria do preservacionismo ambientalista. Várias iniciativas podem ser nomeadas, a exemplo do trabalho do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA) ou o projeto Terra sem males, na Rondônia. Nestas iniciativas, vai se ensaiando que “o mundo começa na casa da gente e se estende para outros âmbitos”.
Como igreja, nós estamos sintonizados há pelo menos duas décadas com vários programas e iniciativas com foco na questão ambiental. O programa “Justiça, Paz e Integridade da criação”, do Conselho Mundial de Igrejas, ajudou a disseminar algumas perspectivas preservacionistas. A participação em outras iniciativas como o Forum Global deu impulsos e promoveu experiências. A proposta do projeto “Um tempo para a Criação”, também do Conselho Mundial de Igrejas, mereceu adesão, em especial em face da iniciativa 10:10:10, que previu para o dia 10 de outubro deste ano uma multiplicidade de ações individuais ou coletivas em prol do ambiente. Ação e reflexão são necessárias; as duas coisas devem andar juntas. Tanto faz por onde se começa. Numa tentativa de manter conectadas a esperança e o compromisso, alguns passos ou momentos podem ser sugeridos para se fazer um “caminho mental” (F. Capra) em termos ecológicos e teológicos.
Reconhecer os sinais - Um dos primeiros passos é o reconhecimento dos sinais da crise ambiental, especificamente aqueles derivados da ação humana sobre o ambiente. Aí se trata de um exercício de sensibilidade, que depende do nível de consciência de cada pessoa. Mas é o jeito da fé: fazer como Abraão, estar aberto para a novidade e o chamado. Em termos teológicos, a constatação do apóstolo Paulo em sua Carta aos Romanos pode servir de alerta: “Toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (8.23). Deve-se interpretar os sinais dos tempos. A dimensão de “toda a criação” precisa estar mais presente na educação teológica continuada. O hábito tem grande efeito pedagógico! O velho dualismo corpo-alma, com a negativa da corporeidade, e esta ainda associado ao feminino, precisa ser superado em prol de uma visão holística, integral do ser humano em sintonia e convivência com toda a criação.
Perceber-se como integrante de um todo - Em segundo lugar, trata-se de perceber-se a si mesmo como integrante de uma rede maior de relações de produção e consumo. Trata-se de perceber em que medida eu, como indivíduo integrante de um todo maior, contribuo, ou nós como comunidade contribuimos para aumentar ou diminuir tais crises. Nós humanos somos seres de combustão. Nós nos alimentamos de outras formas de vida para nossa própria manutenção. As intervenções, contudo, podem ser diferentemente moduladas. A “pegada humana” sobre o ambiente pode ser mais pesada ou mais leve. Depende do modo como se pisa. Há formas mais predatórias de organizar a vida em sociedade e há formas menos predatórias. No fundo depende do exercício de sabedoria. Pode começar com um simples ato de reciclagem, podendo culminar em ações mais efetivas na mudança de hábitos de consumo. Se o capitalismo, o agronegócio, etc. são o “satã do ambiente”, nós consumidores são clientes deste satã, acelerando a depredação.
Fazer prevalecer o cuidado sobre o domínio - Como membros da comunidade da comunidade evangélico-luterana em sentido amplo nós comungamos do ponto fundamental do credo cristão de que o mundo que nós habitamos resulta da ação criadora e amorosa de Deus (ver a interpretação de Martim Lutero ao Primeiro Artigo do Credo Apostólico). Trata-se, pois, em terceiro lugar, de falar mais concretamente desta dimensão da fé, isto é, que Deus é criador e cuidador da criação. Em consonância com este destino das origens, nós humanos também comungamos, em termos teológicos, do destino soteriológico de toda a criação. Com boa leitura do relato da criação em Gênesis podemos perceber que os seres humanos são criaturas juntamente com os demais elementos da criação. Todos os elos da criação têm dignidade própria. Segundo o relato bíblico, ao homem Deus conferiu dignidade especial de “imagem e semelhança”. Imitar a Deus na misericórdia e no cuidado. Deus também atribuiu também responsabilidades aos humanos. Até algum tempo atrás era absolutamente comum dizer-se ou ouvir-se, também na igreja, que o homem como centro e sentido de toda a criação, tem a função de “dominar e sujeitar” o mundo criado (Gênesis 1.26-28). Esse ideário antropocêntrico vem caindo em desuso, reforçando-se mais e mais a noção também profundamente bíblica de que o ser humano deve ser “mordomo da criação”. Sua tarefa fundamental deve consistir em “cultivar e guardar” (Gênesis 2.15). O “cultivar” implica necessariamente em intervenção sobre o ambiente natural, produzindo ou retirando dele os elementos para suprir as necessidades e os desejos dos homens. Em habraico, o verbo traduzido por “cultivar” (abad) expressa a dimensão de “trabalho árduo”, portanto, de necessária intervenção no ambiente. O “guardar” (hebraico: shamar) é um exercício de responsabilidade e cuidado. Trata-se de um mandato que exige por parte da pessoa a sabedoria de perceber-se integrante do todo da criação com a tarefa de zelar para que a natureza, e com isso também a humanidade, se mantenha, para além do tempo presente, em suas próprias bases ecossistêmicas, estendendo-se como dádiva continuada do criador em favor das futuras gerações. Pode-se aqui falar do “princípio responsabilidade” como elemento fundamental da ética, como foi proposto pelo filósofo judeu-alemão Hans Jonas, o qual bebe das águas da tradição bíblica. O cuidado do homem com o ambiente, além de ser uma demanda atual, deve, hoje, incluir também as gerações futuras. Em termos de ética de responsabilidade, o prognóstico ruim deve ter preferência ao prognóstico otimista.
Ler a Bíblia em perspectiva ecológica - Em consonância com nosso princípio luterano do sola scriptura, a Bíblia precisa ser redescoberta como outorgadora também de elementos de sabedoria. Se para Lutero foi importante o princípio da justificação por graça e fé, tornando-se este quase um princípio hermenêutico “universal”, hoje há a necessidade de fomentar uma ‘leitura ecológica da Bíblia’ com perguntas que brotam a partir das angústias humanas de nosso tempo. É verdade que, na visão bíblica, nós como descendentes de Noé, como o novo patriarca da humanidade, estamos numa senda da ‘lógica sacrificial’. Ao sair da arca, o primeiro gesto de Noé é um gesto cultual de respeito. Mas o seu gesto inaugura uma lógica de sacrifício: algum ser vivente da criação precisa ser sacrificado para agradar a Deus. O sacrifício de elementos da criação acabou se tornando quase um traço típico do paradigma da modernidade. A essa sina sacrificial há que se contrapor elementos bíblicos positivos. Na Bíblia há várias passagens na Bíblia em que a dimensão do cuidado dos humanos pela integridade da criação é destacada. Tais passagens devem ser garimpadas em meio a todo da Escrituras que ainda não é lido de forma ecológica. Indico para alguns poucos exemplos nesta “garimpagem de sabedoria ambiental na Bíblia”.
• Já indiquei acima a necessidade de sobrepor o binômio do “cultivar e guardar” (Gn 2) ao binômio do “sujeitar e dominar” (Gn 1.28).
• Em Êxodo 23,10-11 é proposto que ao homem é legitimamente concedido cultivar a terra e recolher os seus frutos, constituindo nisto sua atividade de produção e intervenção no ambiente. O ritmo produtivo e explorador, no entanto, deve ser temporalmente limitado a seis anos, devendo o sétimo ano ser um tempo “descanso sabático”. O texto indica três finalidades desta norma: a) primeiramente é dito que a própria terra deve poder descansar. Isso é estranho ao nosso modo de pensar, pois estamos acostumados com a idéia de que a terra deve somente servir para satisfação de nossas necessidades (e desejos). b) em segundo lugar, os pobres devem poder colher o que nascer por conta própria no sétimo ano, tendo uma provisão extra além de sua limitada alimentação usual. c) em terceiro, indica-se que os animais do campo devem poder comer do que sobrar. Explicitamente inclui-se aí os animais do campo dentro de um ciclo ecológico. Três seres ameaçados em sua existência devem ser contemplados no modo de se organizar a vida em sociedade: a terra, os pobres e os animais. Isso é o que se pode chamar de uma “visão ecológica” da vida. Os interesses são limitados pela integridade da vida e da criação.
• Num trecho do livro de Deuteronômio (20.19-20) se recomenda que, apesar de ter que recorrer a estratégias de guerra para solucionar conflitos e negociar a paz, a lógica destrutiva não deveria ser transformar em desmatamento desmedido. Essa prescrição reage contra os procedimentos usuais do imperialismo assírio da época. Estes, diante da resistência de algum rei em se submeter como vassalo e pagar tributos, colocavam em prática a lógica da “terra devastada”, cortando os vinhais e os olivais no entorno da cidade, gerando atrasos ou retrocessos econômicos de gerações. O povo na escuta da Palavra de Deus deveria ter um procedimento mais sábio, mesmo não conseguindo ser por completo uma pessoa de paz.
• Dt 23.13-15 é um texto lindo, riquíssimo em espiritualidade, embora trate da merda humana. Recomenda o texto primeiramente que as necessidades, na época, devem ser feitas fora do acampamento. Depois, recomenda cavar um buraco e, tendo feito o ‘serviço’, recomenda explicitamente “e te virarás e verás o que saiu de ti”. O verbo hebraico usado é shub, um termo que usado alhures no Antigo Testamento para expressar o ato de negação da idolatria e da conversão para Deus. Na língua grega tem seu equivalente na expressão metanoia, outra expressão importante para o ato de conversão. Ver os resultados de suas ações, especialmente os nefastos, é, hoje, um passo absolutamente necessário para a formação de organização coletiva da humanidade
• Acima já indiquei para o Salmo 104, que fala da criação perpassada pelo espírito divino. A beleza da criação convida para o louvor. Mas, além do louvor, que brota da consciência criatural e do sentimento de pertença ao todo, também se deve fazer a ‘leitura cristológica’ e reconhecer (novamente) o elemento divino presente na criação, como decorrência do dado da encarnação. A criação deve ser vista como transparência de Deus, percebendo-se nela como divinos não somente os traços de perfeição e harmonia, mas especialmente também a dimensão da realidade da crucificação da própria criação. Isso é extensão necessária da tradicional theologia crucis luterana.
• Jó 38-42 – o livro de Jó apresenta um homem abastado que passa pelo processo de perda de todos os seus referenciais de bem-estar. Passa a viver na absoluta “periferia da vida”. Nesta condição de marginalidade tem uma nova e profunda experiência com o Deus que ser revela a ele em meio à natureza (tempestade). Nesta nova visão de Deus, Jó não mais vê Deus como um ser obrigado a uma lógica retributiva. A partir do modo como Deus se mostra a ele, Jó se entende como parte integrante de uma complexa criação, na qual ele deve conviver com animais e espaços hostis e inclusive com monstros abissais, os quais também são entendidos como criaturas do Deus criador. Jó, contudo, perdeu o referencial de segurança e proteção absoluta; sabe que seu criador vive e salva, mas se entende a si mesmo como elemento dentro de uma teia complexa de luta pela vida.
• Jesus e a gratuidade dos lírios do campo sem a pressão da produção e intervenção no ambiente.
Observar tempos de pausa – Na Bíblia há muitas recomendações para observância de tempos de pausa que se articulam na lógica do ritmo 6/7. Este ritmo 6/7 marca a estrutura do tempo semanal de sete dias, sintonizado com o ciclo da lua. Ajustado para o ritmo de trabalho e pausa para os humanos e para a criação, estes textos que falam do descanso sabático (Ex 20.8-11) ou também do ano sabático (Ex 21.2-11; 23.10-11) remetem a necessária observância de tempos de pausa, de shabbat, em meio às atividades produtivas. Isso é reconhecido como necessário para que humanos, animais e a terra possam tomar alento e regenera-se para a constância e saúde do ciclo de vida. Nestas recomendações de observar tempos de pausa pode-se ate tentar ver uma antecipação do reconhecimento daquilo que se conhece sob o conceito de “ressonância de Schumann”. Isto é, a terra tem o biorritmo normal com freqüência das ondas eletromagnéticas em torno de 8 herz. Hoje este ritmo estaria alterado para algo em torno de 11 herz, gerando um ritmo mais acelerado, equivalente a um dia de 16 horas. No ritmo de vida do mundo contemporâneo há certamente exigências que nos obrigam a trabalhar mais, acelerando o ritmo da vida. A medicina, porém, já reconheceu que a pessoa que não observa tempos de descanso em meio às jornadas de trabalho adoece mais, gerando um ônus social maior, e, em geral, morre mais cedo, o que, sarcasticamente, pode significar um ônus ambiental menor. Observar tempos de pausa pode ser uma boa fonte de investimento em sua própria vida, economizando dinheiro que seria gasto com médicos e remédios! Algumas pregações dominicais poderiam também privilegiar o ócio dominical ao invés de somente incentivarem o ‘serviço’ ou o culto religioso, que biblicamente são formas de trabalho. Nisso até palavras de Lutero podem ser resgatadas.
Pensar toda a criação para dentro do projeto salvífico de Deus - Além da tarefa de zelador, cuidador ou mordomo da criação, o ser humano é constantemente chamado ao exercício da misericórdia. Há muitas narrativas da prática e do ensino de Jesus Cristo que podem ser aqui lembradas. Mas é a parábola do bom samaritano (Lucas 10.25-37) que se presta muito bem a essa indicação, obviamente com uma interpretação expansiva. A história é conhecida: um homem maltratado está deitado à beira do caminho. Duas pessoas passam e desviam do caminho. Um terceiro passante, “vendo-o, compadeceu-se dele” (v.33). A interpretação extensiva, quase alegórica consiste em substituir no texto o “homem ferido” por “natureza maltratada”, ou, então, entender o homem ferido como extensão de ‘criação’. Esta geme, em dores, em correntes de exploração humana, aguardando a redenção e a manifestação plena dos filhos de Deus. Assim, natureza e humanidade estão incluídas no plano redentor de Deus para toda a sua criação.
Cuidar como forma de amar e ser amado - Saber que toda a criação faz parte da obra criadora e redentora de Deus remete os humanos ao seu lugar legítimo como elos ou elementos de uma rede cósmica maior. Isso pode abrir possibilidades para a admiração e o louvor a Deus, conduzindo a viver a vida entendida como dádiva para ser vivida, em gratuidade, em confiança na presença e no amor gratuito de Deus. O cuidado com o ambiente pode e deve ser hoje uma resposta ao amor redentor de Deus. Com o criador podemos ser cuidadores e mantenedores, ajudando a salvaguardar a dignidade de vida das gerações futuras, mantendo, assim, a esperança pelo destino redentor prefigurado na ressurreição de Cristo e firmando, como pessoas e como igreja, passos e ações de compromisso.
Muito obrigado.
Foz do Iguaçu, 21 de outubro de 2010.