Lutero - Reforma: 500 anos
Deus é cheio de graça, benevolência e amor, dons que está dispos-to a conceder a seus filhos e suas filhas. Música nasce desse amor e dessa graça, tendo como principal função o louvor e a proclamação doxológica — assim compreendia Lutero. A palavra pregada e proclamada pelos profetas, no Antigo Testamento, continua sendo pregada de várias maneiras, sendo a música uma delas.
A música possui em si um caráter comunicativo forte, justamente por ir além da palavra: tanto no potencial de expressão que oferece à Comunidade e a cada pessoa, como na capacidade de alcançar o ser humano onde as palavras não chegam. Constitui uma relevante forma de linguagem não verbal.
Falar e cantar são indistintos para Lutero. Nos hinos, potencializamos a ação da palavra, porque a aliamos à música. Dessa forma, ao cantarmos, como Comunidade reunida, estamos proclamando a Palavra de Deus que está no hino, ao mesmo tempo em que a ouvimos e recebemos. Para Lutero, a música é denominada de viva vox evangelii — a voz viva do Evangelho. Assim sendo, o texto é fundamental, mas a música a ele aliada o é da mesma forma.
A relação entre música e Teologia encontra-se justamente na Palavra, onde ambas se unem para proclamar os feitos de Deus a todo o mundo. O canto pode ser considerado a plenitude da Palavra. A música comunitária sempre se apresenta como canto (voz) e pressupõe a presença de um texto. O culto cristão tem na Palavra a sua centralidade: a própria revelação se apoia na Palavra de Deus e é a fonte de todas as ações de graças, louvor e súplicas. Todos os hinos são um eco da própria revelação de Deus.
A importância da palavra no âmbito da fé não é assunto novo. O legado visível de Deus para o seu povo é a Palavra escrita e a própria revelação de Deus conosco acontece pela palavra: o Verbo encarnado (logos).
Lidar com palavras no culto, na prédica, na liturgia ou na música, sempre envolve Palavra de Deus e palavra-resposta humana. Para o P. Dr. Mauro de Souza, Doutor em Homilética, 'o papel de quem prega a partir do texto bíblico é transformar tinta novamente em sangue', entendendo que na Bíblia há vida (sangue) transformada em tinta, por isso mesmo é que se reveste de especial importância o como se transmite essa mensagem, de forma a facilitar a comunicação.
A música no culto precisa estar livre de interpretações particulares, pois está fundada sobre o logos. Não há espaço para aquilo que edifica somente a um indivíduo, embora cada pessoa possa ser tocada de forma diferenciada. É por isso que o uso da música para conduzir a Palavra necessita de zelo, o que envolve conhecimento e coerência.
Quais os aspectos a observar para a escolha e composição do repertório, a partir da perspectiva aqui exposta?
Quando usamos o critério 'beleza', pensamos em subjetividade, como se não fosse possível objetividade na avaliação de uma obra musical. No entanto, é possível estabelecer parâmetros objetivos para a avaliação de uma obra artística. Uma boa composição faz convergirem texto, elementos musicais e Evangelho. O viver estético está ligado ao nosso cotidiano, mas também é um exercício de esperança, a qual, por sua vez, se traduz em imaginação que leva à ação, estando ligada à percepção do momento histórico e ao refazer da história.
Assim, a música precisa ser bela, porque contextualizada e porque portadora da esperança da transformação. (Cri)ativa, música de qualidade, bem escrita. De que forma a melodia 'carrega' o texto? As questões musicais ajudam a dizer e sublinham aquela palavra contida no texto ou dificultam a sua transmissão? Podemos pensar nos comuns erros de prosódia (deslocamento das sílabas tônicas das palavras, quando não condizem com o tempo forte da música), que tantas vezes atrapalham a compreensão do texto. Questões musicais podem dificultar muito a transmissão da mensagem, se a música não 'combina' com a temática ou se seguem as simples fórmulas composicionais do mercado. Meio e conteúdo estão entrelaçados na música, a coerência entre ambos acontece naturalmente. Conforme o P. Mauro de Souza, na música, 'o meio (o ritmo, a melodia) é o seu próprio conteúdo e a letra precisa estar de acordo com a melodia e demais elementos musicais. Boa música é naturalmente coerente. Como veículo de transmissão de uma mensagem, ela não se contradiz'.
Do repertório que se vai utilizar no culto, também se requer exatidão e clareza teológica. No tempo da Reforma, a memoriza-ção da música foi importante para a assimilação do conteúdo teológico, por isso era necessária a clareza no texto, de forma que o povo pudesse entender e apreender. Citando novamente o P. Mauro de Souza: 'ao lado da prédica, estava a música no movimento da Reforma. Há hinos que contam toda a história da salvação em Jesus Cristo, compostos em um tempo em que as pessoas não tinham os textos bíblicos para ler e não guardavam tudo o que ouviam na pregação. A música foi usada na transmissão de conteúdos teológicos importantes para o movi-mento reformatório. Lutero pregou com todos os meios que esta-vam à sua disposição'. A tendência contemporânea é uma unilate-ralidade das temáticas de louvor e adoração e uma tendência à teologia da experiência, particular, privada.
Ao cantarmos como Comunidade reunida, estamos proclamando a Palavra de Deus que está no hino, ao mesmo tempo em que a ouvimos e recebemos: trata-se da viva voz do Evangelho.
Sendo a música linguagem e viva voz do Evangelho, reflita-mos também sobre as consequências, para uma Comunidade de fé, da alteração radical da linguagem musical. As consequências para a comunicação do Evangelho seriam as mesmas de uma pregação em idioma estrangeiro. À semelhança dos símbolos, que precisam ser compreendidos por toda a Comunidade a fim de justificar o seu uso, também a linguagem musical o deve ser, pois, do contrário, a comunicação não se estabelece e a função deixa de existir.
Não é qualquer repertório que é adequado para o uso no culto, já que a música sacra evangélica emerge de uma mescla de tendências teológicas em que nem sempre é possível perceber, em um primeiro momento, quais são as Teologias escondidas, por isso não podemos abrir mão da possibilidade de análise e diálogo teológico dos textos, por meio dos quais a Comunidade aprende e apreende uma determinada Teologia, um determinado jeito de ser Igreja.
A linguagem usada é extremamente importante. Os nossos hinos tão queridos e, geralmente, de uma riqueza teológica imen-sa, são um dos grandes tesouros evangélico-luteranos. Entretan-to, toda a música acontece dentro de um contexto social e, na nossa época, torna-se mais complexa a tarefa de fazer-se entendi-do na nossa forma de culto. O P. Dr. Dr. h.c. Gottfried Brakemeier salienta que o luteranismo exige grande conhecimento teológico das pessoas e não somente dos Ministros, mas da Comunidade também. O que fazer? Correr o risco de perder a identidade musical, importando modelos de outras tradições, por vezes mais simplórios? O que há na nossa identidade que possa servir para a contemporaneidade? Há uma estética — ligada à palavra — que privilegia a audição. O P. Brakemeier, ao se referir à Igreja da Palavra, diz: 'Também a estética luterana passa tradicionalmente pelos ouvidos. O luteranismo destacou-se na música sacra e no canto comunitário, que são, muito à sua maneira, portadores do Evangelho'. Portanto, na música sacra, tem alg
o para ser ouvido: o Evangelho. Há uma Teologia que pode se fazer audível. Precisamos é buscar caminhos para dizer e cantar esta mesma Teologia em uma linguagem compreensível e adequada para a contempo-raneidade.
Música precisa conduzir para a liberdade e não para a manipulação. Não é ético usar a música como meio de manipulação, humilhação e domínio sobre outras pessoas. Como voz do Evangelho, tanto a prédica quanto a música precisam ajudar as pessoas a caminhar e a refletir a caminho da liberdade e da autonomia codependente. Nesse sentido, para que a música seja a proclamação da Palavra, há que ser profética para ser coerente. Ação e reflexão andam juntas no caminho para a liberdade, que é liberdade da ação massiva, mas também da ação individualista, daquela que nos torna indistintos dos outros, mas também daquela que nos enclausura em nós mesmos e é liberdade para conhecer, compreender e decidir.
Para manter a coerência com os passos do Reformador, a música da Igreja precisa conhecer e dar a conhecer o seu passado e fazer-se entender no contexto atual. De tudo que há disponível, deve extrair o que ajuda na transmissão da Teologia que prezamos, porque a música precisa apontar para além de si, para além dos Musicistas, para além da cultura: ela aponta para a glória de Deus. É ambicioso como fato, mas necessário como visão!
O culto cristão tem na Palavra a sua centralidade: a própria revelação se apoia na Palavra de Deus e é a fonte de todas as ações de graças, louvor e súplicas. Todos os hinos são um eco da própria revelação de Deus. |
Mus. Dra. Soraya Heinrich Eberle, Bacharel em Regência Coral pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, é Professora na Faculdades EST e no Colégio Pastor Dohms, em Porto Alegre/RS, e Coordenadora de Música da IECLB