Lutero - Reforma: 500 anos
O culto é o coração da vida comunitária. É incontestável que a música é parte integrante do culto, especialmente em contexto e na tradição evangélico-luterana. Essa situação encontra entre nós simpatia e é muito bom ver o (re)florescimento da vida musical das Comunidades. Então, como e em que bases fazer uso da música no culto, de forma a manter a devida sintonia com o pensamento da Reforma e com a nossa boa e saudável Teologia? Esta pergunta resume muitas outras, igualmente complexas, que são feitas Brasil afora todos os dias.
As escolhas musicais que realizamos na preparação de um culto são sempre, também, escolhas teológicas. Essas escolhas se referem não só ao conteúdo verbal do repertório, mas ao conteúdo simbólico, como o espaço ocupado pelos instrumentistas durante o culto e o volume da amplificação sonora, entre outros. A música é um elemento importante, mas que não prescinde da reflexão teológica. Existem elementos e pilares teológicos e confessionais que oferecem subsídios importantes para a compreensão de um jeito evangélico-luterano de cantar a liturgia e que auxiliam a resolver as questões complexas referentes ao uso e às funções da música no culto.
Sendo o culto o coração da vida comunitária, a música feita em âmbito comunitário para ele converge. O culto é o lugar e o tempo por excelência da música. Quanto ao culto, como podemos defini-lo? A definição mais comum e breve o caracteriza como o encontro das pessoas da Comunidade entre si e com Deus, encontro este possibilitado pela ação e a convite do próprio Deus. Se tomarmos tal premissa básica, então muitas questões relacionadas à música se resolvem com mais facilidade, pois tal encontro passa a ser o parâmetro para a utilização da música no culto.
Toda a música do culto está a serviço e é serva do Evangelho, aponta para além de si mesma, na medida em que não se autojustifica nem se basta,aponta para Cristo. Glorificar a Deus: essa é a primeira e primordial função da música no culto.
Por outro lado, a música não é um acessório na liturgia. Ela é a própria liturgia-não tem a finalidade de embelezar ou preencher tempo, tem uma função orgânica no culto. A Comunidade canta a liturgia. A música, cosso Criação de Desse dádiva concedida por Ele (conforme Lutero percebeu), é uma possibilidade de expressão humana da fé em termos racionais, emocionais e corporais, ou seja, o ser humano integral é quem faz a música.
A música, como criação de Deus e dádiva concedida por Ele, é uma possibilidade de expressão humana da fé em termos racionais, emocionais e corporais, ou seja, o ser humano integral é quem faz a música. |
A música nasce da presença do próprio Cristo na vida da Comunidade, mas é também uma possibilidade de levar adiante essa Boa Noticia! Seja em forma de súplica, louvor ou anúncio, a música (e, especialmente, o canto) refere-se a Deus e dele fala, enquanto perscruta e traz à tona o recôndito do ser humano. Além disso, assume outras funções diversas no culto, decorrentes da primeira e essencial, glorificar a Deus: convoca e congrega a Comunidade para oculto, ajuda a criar o clima apropriado para a celebração, reforça o que as palavras sozinhas não podem expressar.
A música carrega a Palavra. Aliás, para Lutero, não havia diferença entre Palavra cantada ou falada - proclamar a Palavra pode acontecer das duas formas, indistintamente. Assim como as outras partes da liturgia, a música é moldada e planejada, embora a sua execução não seja previsível ou plenamente controlável (assim como todo o culto não o é). Não precisa de sofisticação, mas de dignidade.
Nesse sentido, quanto rnais coerentes forem o texto e a música entre si, mais eficiente e apropriado será o uso da música no culto. Bom gosto, sensibilidade, singeleza, coerência teológica, riqueza e correção poética também ajudam a Comunidade e favorecem a comunicação. Se culto é um encontro, então a comunicação é imprescindível, por isso, na escolha de repertório adequado para o culto, deveríamos levar em conta as perguntas: por que e para que a comunidade deveria aprender tal música/canção/hino/ cântico? Isso ainda não diz nada sobre gêneros musicais ou estilos, que, em si mesmos, não podem ser classificados como apropriados ou não.
Um dos pilares da ,Teologia luterana é o sacerdócio geral de todas as pessoas que creem. Tratá-se desse parâmetro importantíssimo também para a música no culto Comunitário. Não foi à toa que a Reforma imprimiu sigo ao canto comunitário: Lutero o via como a voz do povo na liturgia. É a possibilidade ímpar departicipação ativa de todas as pessoas no culto. Quando a Comunidade canta, a incrível sonoridade das vozes reunidas possibilita a unidade na diversidade. Cada voz é única e imprescindível para o canto comunitário e, quando todas estão juntas, é que o sentido de Comunidade, em música, se completa, ou seja, o canto é da Comunidade. O acompanhamento instrumental, os arranjos e tudo mais o que se planeja fazer convergem para o sentido comunitário do canto, no qual todas as pessoas possam livremente participar e se sentir motivadas a fazê-lo. A cantabilidade comunitária é um interessante e imprescindível parâmetro para as escolhas musicais.
Aqui vale um apontamento sobre um aspecto importante da música no culto, embora não o primordial, mas, de qualquer forma, a ser considerado com seriedade, pois é inevitável. A música e o canto comunitário funcionam como educação cristã continua da Comunidade. Quando cantam determinado texto, as pessoas aprendem sobre o jeito como aquela Comunidade crê e celebra, a respeito de Deus e da sua ação no mundo, sobre a esperança no futuro, no que tange a uma ética inerente ao ser cristão e todos os outros temas que possam ser abordados e que são relevantes para a fé (por isso a importância de variar as temáticas), mas também aprendem música.
Muitas pessoas que não estão habituadas à prática do canto e/ou estão vocalmente desafinadas até se entendem como não tão dignas e, muitas vezes, se calam no culto. É importart que a condução do canto comunitário se dê de tal forma que incentive e favoreça o canto dessas pessoas, pois, geralmente, a sua dificuldade se deve à falta de prática. Dar a essas pessoas a possibilidade de expressar a sua fé também as dignifica e encoraja como parte ativa da Comunidade.
Entretanto, o canto simplório, quase sempre o mínimo ou o mais fácil, não ajuda a Comunidade. Há que se valorizar a capacidade expressiva e de aprender das pessoas. A competência está na forma de ensinar, de ajudar as pessoas a buscar e querer o melhor — mesmo que seja simples. Uma sugestão é fazer breves en-saios com a Comunidade alguns minutos antes do inicio do culto sempre que houver repertório mais complexo ou desconhecido.
Ainda levando em conta este caráter formativo, convém lembrar que, no culto, há elementos ordinários (aqueles que permanecem os mesmos) e próprios (que mudam diária ou semanalmente). Vários elementos da liturgia, entre próprios e ordinários, convêm e se prestam ao canto — tanto de cantos litúrgicos breves, como de hinos estróficos, com máor conteúdo textual. A música bem planejada está em sintonia com estes elementos, não se descola deles. Tanto a constância dos ordinários como a variedade e o interesse renovado dos próprios. Assim como as leituras bíblicas e a pregação mudam a cada culto, as músicas cantadas variam de acordo com o tema do dia e, consequentemente, com o calendário litúrgico. Por outro lado, é importante que alguns elementos musicais se repitam, de forma a criar na Comunidade um sentido firme de pertença e identidade. Então: fazer uso da variedade, mas também manter alguma constância são sinais de um bom planejamento musical.
Ainda é necessária uma palavra referente à continuidade da tradição e inserção na contemporaneidade, bem como a contextualização regional do repertório, diante de um cenário tão variado como o brasileiro. Há que se dizer que a separação entre tradição e contemporanei-dade é um elemento do qual podemos abrir mão, baseando-nos na Reforma. O uso do canto comunitário representou uma mudança sem precedentes, uma rup-tura com um jeito de compreender a música — uma libertação. Ao mesmo tempo, houve uma continuidade, pois Lutero preocupou-se em manter o que recebeu — e que conhecia! A música, nessa perspectiva, é um elo entre o legado histórico e a contemporaneidade, mas também com a Igreja universal, em sua continuidade e solidariedade. Lutero prezava muito essa continuidade: considerava toda a tradição da Igreja e a utilizava, ao mesmo tempo em que observava a música do povo e dos compositores contemporâneos.
Esta visão de unidade é uma antítese às tendências individualistas e à autossuficiência local/individual. Sobre isso, poderíamos dizer, inclusive, que a variedade musical e a possibilidade de fazer uso de tão variado repertório (partilhado conosco por pessoas que expressaram a sua fé em todos os tem-pos e lugares) são a nossa grande riqueza, tesouro precioso e inestimável da Igreja. Que dela façamos muito uso, com alegria, para a glória de Deus!
Como e em que bases fazer uso da música no culto, de forma a manter a devida sintonia com o pensamento da Reforma e com a nossa boa e saudável teologia? |
Mus. Dra. Soraya Heinrich Eberle, Bacharel em Regência Coral pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdades ES'T, em Silo Leopoldo/RS, é Professora na Faculdades EST e no Colégio Pastor Dohms, em Porto Alegre/RS, e Coordenadora de Música da IECLB