Jornal Evangélico Luterano

Ano 2012 | número 752

Terça-feira, 05 de Novembro de 2024

Porto Alegre / RS - 19:16

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

   Falo em justificação por graça e fé, a dádiva que jamais se repaga, pois é graça, é de graça. Trata-se de algo análogo a oferecer uma flor em um gesto livre, de uma liberdade sem troca, sem barganha, sem lucro, sem economia, ato de puro excesso ou, digamos, um sublime desperdício: uma dádiva que produz perdão, paz e comunhão, sem que de nós se espere uma migalha sequer em troca. Nisto está o segredo deste mistério que se chama dádiva. Sempre que pensamos ter que negociá-la, fazer com que a mereçamos, já a destruímos. É por isso mesmo que também não sabemos nos doar. Não porque não aprendemos. Não por falta de caráter. Não sabemos nos doar simplesmente porque não soubemos receber.
   Cada pessoa já é o que foi feita para ser, mas, como se fosse uma segunda natureza, a realidade é que não aceitamos este simples fato de que já somos o que fomos feitos para ser. Então, nos produzimos, reinventamos e construímos na busca de ser o que não somos e é aí que nos perdemos. É nesta constatação que se aninha o que parece ser um paradoxo, uma aparente contradição da Reforma, desencadeada pelo monge Martim Lutero. O paradoxo reside no seguinte: unir a total servidão da vontade à radical liberdade. Estes são polos de um mesmo magneto. São contrários, mas se complementam. A força de um está em direta proporção à força do seu oposto. Se não, vejamos.
   Dois tratados de Lutero, que datam dos primeiros anos da Reforma, são pedras angulares de um movimento de protesto cujo jubileu do seu quinto centenário estamos às vésperas de celebrar. O primeiro, datado de 1520, intitula-se ´A Liberdade do Cristão´. O segundo texto, de 1525, leva como título ´Servo Arbítrio´, que parece dizer o oposto, ao afirmar precisamente o que o título diz: a incapacidade humana de decidir entre o bem e o mal. Engana-se quem pensa que esta incapacidade seja um defeito de caráter. Trata-se, muito pelo contrário, do seu oposto. O pecado, a falha humana, é a desumanidade da criatura, o pensar que temos até mesmo a capacidade de distinguir entre o bem e o mal. Como na narrativa bíblica, o pecado consiste em querer saber e julgar entre o bem e o mal. Ora, não é isso que somos chamados a fazer a cada momento? Com toda certeza! É por isso que a isto se chama de pecado original, que toda e qualquer criatura humana tem como sina. Esta é a culpa de sermos seres humanos e inelutavelmente pecadores.
   O que isso tem a ver com a liberdade, esta doce palavra lavrada com água-forte nos lábaros de protesto do movimento da Reforma e em todo o ideário humano? Lutero até mesmo transliterou o seu nome para o grego, assinando como ´Eleutherius´, que quer dizer ´aquele que é livre´, liberto e libertador. Sem nuances ou qualificações, encontramos esta definição do que é ser cristão no texto já aludido de 1520: O cristão é um senhor libérrimo sobretudo, a ninguém sujeito. No entanto, no mesmo fôlego, continua: O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito. Em outras palavras, tudo é livre na medida em que tudo se deve. Eis aí o paradoxo: servidão completa no que trata do amor ao próximo, mas liberdade absoluta no que advém da fé. Como na Física, uma ação produz uma reação equivalente na direção contrária, assim é como Lutero concebia a relação entre liberdade e submissão. O quanto mais livre sou na relação com Deus pela fé, tanto mais servil hei de ser no amor às outras criaturas.
   Nesta equação, registra-se o índice de liberdade, que é apenas um diagnóstico da nossa condição. Nisto se revela a falta de liberdade na carência do amor e a carência do amor na falta da liberdade. Desta deficiência, cada pessoa é culpada e vítima. A carência de liberdade, cujo sintoma se manifesta na falha em se entregar em amor ao próximo, não é mais do que se entregar a si, se voltar a si mesmo. Adaptamo-nos a este egoísmo que nos cerceia a liberdade, rejeitando, assim, a dádiva da graça recebida pela fé. Cada um de nós é esta pessoa, que, na deficiência do amor, se sabe privada da liberdade e, na falta de liberdade, carente de amor.

O amor se revela como a outra face de encontrar um Deus que nos acolhe, apesar de nós mesmos, apesar de buscarmos ser o que não somos: criaturas de Deus e não autoconstrução de nós mesmos.



   
   A milenar sabedoria dos ancestrais que nos deixaram a narrativa bíblica, garimpada com esmero e perícia pela Reforma protestante, nos diz que a falha original ou o pecado da criatura foi uma barganha, a de trocar o paradisíaco ócio pelo negócio: tomar a fruta que não se carece para ser como Deus e saber escolher entre o bem e o mal. Por que esta negociação? Qual o ganho? Encontramos vários nomes para nomear este proveito. São palavras que guardamos em alta estima. Prosperidade, progresso, evolução, desenvolvimento, melhora e enriquecimento são algumas das quais com que embelezamos o lucro que obtemos na troca que Adão e Eva fizeram e, assim, continuamos nós, dia a dia, a fazer.
   Estas palavras são exatamente as que definem o que não é justificação. A justificação é o verbo que interrompe a nossa gramática, confunde a economia. Tomemos ´progresso´, por exemplo. Trata-se de um valor inscrito na bandeira do Brasil, mas o que está a dizer nada mais é de que estamos em uma marcha sem fim. Sempre avançando. Sempre! Vivemos como se não houvesse um fim, como se não houvesse morte. É só por isso, porque adornamos o pecado com valores, que prezamos que a morte se torna algo tão terrível. Trata-se do grande inconveniente, um estorvo que deve ser tratado como um infortunado efeito colateral, semelhante ao entulho que o progresso produz e que se tornou a medida pela qual avaliamos o seu avanço. Entretanto, o progresso continua e segue a acumulação de lixo. Assim, em nome do lucro e da verba, fazemos ouvidos moucos à graça e ao verbo.
   O apóstolo Paulo chamou a morte de ´salário do pecado´ (Romanos 6.23). De fato, assim o é, pois representa o fim das nossas tentativas de nos igualarmos a Deus. É o acerto de contas em que recebemos o que nos é devido. Este desejo intenso por sermos o que não somos é o que descrevemos com as palavras que tanto prezamos e em alto valor as mantemos na ilusão de que esta porfia chamada progresso se estenderá perenemente – e por isso evadimos a morte. No entanto, este é, de fato, o último inimigo a ser vencido. O salário do pecado não é exatamente uma pena a ser cumprida, um castigo a ser sofrido. É, antes, o umbral pelo qual, e somente pelo qual, passamos à vida, vida eterna e vida agora! É precisamente por isso que quando Paulo diz que o salário do pecado é a morte, imediatamente continua dizendo que neste nasce a dádiva que é a vida. Nenhuma dádiva nos vem sem que a morte, de alguma forma, se torne presente.
   Nisto se encontra toda a questão sobre a justificação. Isto significa dizer que dádiva divina, integridade na relação com Deus, não há se não passarmos pela morte e pela destruição das nossas pretensões. Tal é a vida que nos vem somente, que nos presenteia apenas pelo corredor da morte. Exatamente a isto chamamos de graça.
   Se isso parece um pouco complicado, é, na verdade, o mais simples que há. Dificuldade temos em admitir que a dádiva não emana por acumulação, mas por aniquilação. Não por um lucro, mas por um passivo, como se diz na linguagem da Contabilidade. Desde a infância, quando esperamos ´presentes´ como resultado de bom comportamento, já fomos instruídos a confundir lucro com dádiva. Dádiva é o que nos é dado e não fizemos por merecer. Lucro é o ganho barganhado acima do investido, é a chave que abre a fechadura do portão pelo qual saímos do paraíso e adentramos a avenida chamada progresso. Enquanto o lucro é o monumento erigido em nome do progresso, dádiva é um sepulcro selado que se abre sem chave e sem negócio. Não é lucro. É perda. É um se dar que se transfigura em vida cujos anos já não se calculam. As suas dimensões já não se medem e o seu lugar é todo lugar e qualquer lugar.
   Isso tudo tem a ver com o amor que é carisma ainda maior que a fé e a esperança (1Coríntios 13.13). Por que Paulo diria isso? O amor maior que a fé? Exatamente! É bastante simples de explicar: a fé e a esperança não podem ser medidas. Há fé ou não há! Há esperança ou não há! Estas nos encontram quando aparentemente não existem. A fé surge quando a incredulidade nos toma cativos e a esperança, quando o desalento desespera a própria esperança. No amor, é diferente. É na dádiva da fé que o amor é eficaz. É na esperança ainda ´contra toda a esperança´ (Romanos 4.18) que o amor mostra a gratidão que não pode ser paga nem compensada. No amor, a fé tem o seu ninho e, na esperança, toma asas.
   É o amor que decifra a equação entre fé e incredulidade, entre esperança e desfalecimento. Martim Lutero, na busca pelo entender a fé como feição da justiça, nos deixa uma lição que não foi nova, mas era e ainda é negligenciada. O amor se revela como a outra face de encontrar um Deus que nos acolhe, apesar de nós mesmos, apesar de buscarmos ser o que não somos: criaturas de Deus e não autoconstrução de nós mesmos.
   Quando falamos em morte como portal para a vida, não se trata apenas da morte física de um indivíduo, mas das pequenas mortes pelas quais passamos, em que nos desatrelamos de algo que julgávamos caro à nossa vida. São momentos de dor e de luto do qual algo nasce, mas cuja graça ainda é muito tenra e cujas marcas da cruz e do martírio ainda se fazem presentes como no corpo do ressurreto. É isso que o apóstolo testemunhava quando escrevia: na sua morte fomos batizados para que vivamos vida nova (Romanos 6.3-4). Esta vida surge e emerge do amor que se dá sem medida, do suor e do sangue derramados pelos mártires de então e agora. Aí há vida e vida em abundância que o progresso não registra, mas a comunhão celebra e inclui no seu festival, até mesmo os que por nós se deram em amor e cujas vidas esperam pela plenitude das nossas.
   Já agora vivemos, ainda que só em parte, a alegria dessa antecipação. Isto é graça, pois não é negociável, é justificação, pois não é pretensão. É, sobretudo, a recapitulação de toda a Criação, quando o Criador viu que tudo era muito bom (Gênesis 1.31). Assim começou o sétimo dia, o dia da plenitude, a festa do paraíso para a qual estamos sempre convidados, como criatura da terra, bela e amada. Este convite nos vem, como a Adão, no primeiro dia da nossa existência, antes de fazermos qualquer coisa, antes de qualquer labuta, antes de negociar, pois é o dia da graça em que tudo está certo, feito justo, justificado. O primeiro dia da Criação ainda espera por nós. A isto chamamos justificação.
   
P. Dr. Vítor Westhelle exerceu o Ministério Pastoral na Paróquia de Matelândia/PR de 1985 a 1989, quando também foi Coordenador da CPT/PR, iniciou a carreira acadêmica em 1982, como Professor no Luther Seminary, nos Estados Unidos, foi Professor de Teologia Sistemática na Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, no período 1989-1992 e, desde o último ano, atua como titular da Cátedra de Pesquisa em Lutero na Faculdades EST, além de seguir como Professor Titular de Teologia Sistemática da pós-graduação na Lutheran School of Theology at Chicago, nos Estados Unidos, onde tem sido catedrádico pelos últimos 20 anos. Professor Honorário da Aarhus University, na Dinamarca, possui mais de uma centena de publicações acadêmicas em seu currículo, sendo o seu último livro publicado no Brasil ´O Deus Escandaloso´ (Sinodal/EST, 2009)

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