Carta do século XXI De: Martinus Eleutherius - Para: Martinus Torneirus
Martinus Torneirus
Meu amigo e tocaio! Desejo-lhe a graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Obrigado por sua carta que recebi no mês passado, encaminhada a mim pelo Jorev Luterano. É verdade que a distância entre nós é grande. Separam-nos quase cinco séculos. Vivi na Alemanha do século XVI e você vive no Brasil do século XXI. São mundos diferentes, mas, quando o assunto é o Evangelho, essa distância já não conta. Alegro-me pelo fato de haver cristãos luteranos também no Brasil, ‘selvagens’ seguindo a Cristo, como também eu o fui. Na verdade, não gosto que cristãos se chamem pelo meu nome, pois a Igreja é de Cristo. Ela não é minha, mas, se estão convictos de que o humilde servo Martim Lutero disse algumas verdades, então, com muito prazer, lhes empresto meu nome para designar seu modo de confessar e viver a fé.
A Confissão de Augsburgo esclarece que ‘a Igreja é a congregação dos santos na qual o Evangelho é pregado de maneira pura e os Sacramentos são administrados corretamente’. É a presença da Palavra de Deus que faz a Igreja. |
Aliás, é surpreendente receber uma carta do Brasil, país este que, durante longo tempo, me tem negado o visto de entrada. Suas fronteiras estavam fechadas para mim. A religião oficial, a católica, não permitia o exercício do ‘rito luterano’ e quando, por interesses estatais, chegaram os primeiros imigrantes luteranos, tiveram que enfrentar dura oposição. Você sabe isto melhor do que eu. Hoje, a situação é diferente, graças a Deus, mas demorou até que se concedesse a liberdade religiosa nessa parte do planeta. Você se surpreende com a minha ‘língua afiada’, com a maneira às vezes áspera de tratar meus oponentes. Bem, sofri muita injúria. Vivi como pessoa perseguida, condenada, excomungada durante quase toda a minha vida. Isto deixa marcas, mas não quero me desculpar. Também prefiro um estilo polido no trato mútuo. No que insisto é no direito de, em nome do Evangelho, discordar e protestar.
Foi isto o que se me negou. Tinha que discordar de muita coisa na Igreja de meu tempo. Ainda hoje sou acusado de ter fundado uma nova religião. Que bobagem! Não fundei Igreja nenhuma. Tentei reformar a Igreja de Jesus Cristo, fundada nem em Roma nem em Wittenberg, mas, sim, em Jerusalém, pela ação do Espírito Santo. Sou reformador, não fundador, mas as autoridades não queriam mudanças. Reforma é sempre algo doloroso. Ela costuma esbarrar em interesses e estruturas de poder que a impedem.
Você percebeu o meu amor pela Bíblia. Qual seria a outra instância normativa na Igreja além dela? É verdade que nem tudo o que escrevi é de fácil compreensão. Nem mesmo a leitura de meus comentários bíblicos costuma ser fácil. Acontece com os meus escritos o mesmo que observamos na Bíblia: também ela contém passagens difíceis. Mesmo assim, sustento que ela é muito clara quando se trata dos assuntos centrais da fé. Descubro em você um ótimo intérprete meu. Parabéns! De fato, apoiandome somente na Escritura, quero colocar Cristo no centro, através de quem Deus manifestou sua graça a ser acolhida pela fé. São estes os quatro pilares de minha Teologia.
Assim também o leio na Bíblia: somos justificados por graça somente. Deus nos aceita exclusivamente por amor, não por pagamento ou mérito de qualquer tipo. Tudo o que recebemos de Deus é gratuito. Parece ser este o grande escândalo do Evangelho. O ser humano quer substituir o amor de Deus pelo negócio. Que dizer de filhos que querem ‘comprar’ o amor de seus pais? Foi por isto que me revoltei contra a prática das indulgências. Infelizmente, o mercado religioso está de volta. Compartilho com você a preocupação com as tais das igrejas da prosperidade. Enganam as pessoas e transformam o Evangelho em mercadoria.
P. em. Dr. Gottfried Brakemeier | Publicação original no Jorev Luterano no 699 - setembro/2007