Publicações no âmbito da Igreja



ID: 2957

Ponderações sobre o morrer - e o estar morto

30/06/2014

 
 
Ponderações sobre o morrer – e o estar morto
Prof. Dankwart Bernsmüller
 
          Refletir apenas superficialmente sobre a finitude de nossa vidas como se fosse algo que não nos dissesse respeito é tremendo auto-engano. A capacidade de pensar e de tomar decisões conscientes é justamente o que distingue o ser humano das demais criaturas. Não devemos simplesmente inibir a reflexão a respeito dessa relação entre o estar-vivo e o não-mais-estar a pretexto de que não é hora de pensar nisso ou, pior, ainda não quero morrer. O morrer faz parte do viver, como não há viver sem morrer. E morrer é um processo – estar morto é um estado. Embora indissociáveis, o processo leva ao estado. Morrer e morte formam um conjunto. Refletir a respeito da própria morte é preparar-se para ela e qualificar o viver.
Para cristãos, judeus, muçulmanos e crentes de outras religiões – no presente e até mesmo na antiguidade – havia e há a fé de que o ser humano não morre para um nada, ou seja, que a morte não é um fim total de nossa existência, mas o começo de um novo estado.
O cristão morre outra morte – a morte voltada para a vida. Para o cristão não é aceitável acreditar em almas errantes pelo universo nem em sua reencarnação. O cristão crê na comunhão com Deus. Essa comunhão é a vida eterna – Deus é a Vida, idêntica a Ele. Assim como Cristo não morreu para um nada mas para uma comunhão com o Pai, assim nós temos a confiança na Sua promessa de seguirmos o mesmo caminho. A vida terrena é uma dádiva de Deus que d’Ele provém e por isso mesmo não pode ser considerada propriedade humana. O que é dado também pode ser tirado. Ninguém conhece o que ocorre naquele decisivo momento, se a morte nos colhe em tranquilidade e paz ou em pânico, medo e dor. Mas a Fé nos deveria fazer morrer de maneira diferente do que se não a tivéssemos. Podemos ter a certeza na graça de Deus que nos redime através de seu filho Jesus Cristo. Mas, aprofundar-se sobre isso cabe aos teólogos.
          Minha intenção no presente texto é lançar ideias para uma discussão séria e consistente sobre o morrer, abordando prioritariamente o papel dos familiares / dos amigos e dos profissionais da medicina em casos de doença grave. Moribundos ainda são pessoas vivas e merecem ser acompanhadas. Tenho consciência de que a morte pode sobrevir de várias maneiras. Se súbita, durante cirurgia, por acidente ou imprevista interferência de agente externo, não há como prestar auxílio nem assistência - o morto já não necessita desses cuidados, diferentemente de seus sobreviventes próximos, os familiares e os amigos. Mas, também essa assistência no pós-morte de parente ou amigo próximo foge ao escopo destas ponderações. O que nos ocupa aqui são os familiares e o indivíduo quando assaltado por doença grave que o leva à internação hospitalar e evolui para o agonizar e para o morrer.
          Fundamento minha reflexão no que pessoa acometida de câncer em estágio avançado afirmou: “Não quero morrer se ainda posso viver, mas não quero precisar viver se minha mente estiver completamente desnorteada, meu corpo destruído e aquilo que me caracteriza como ser humano estiver irreparavelmente perdido. E então quero poder morrer em dignidade. No entanto, nesse estágio final, fico sem a possibilidade de tomar minhas próprias decisões.”
Vou pinçar alguns trechos dessa declaração, iniciando pelo que possamos entender como morrer em dignidade.
 
Dignidade humana
O conceito de dignidade humana evoluiu no decorrer da História. Para os romanos, era a posição ocupada pelo indivíduo dentro da sociedade. Para os cristãos durante a Idade Média vinculava-se à consciência e à espiritualidade de que o ser humano é criatura à semelhança de Deus. Filósofos como Kant destacam que a autonomia de decisão confere ao ser humano dignidade caracterizada pela moralidade auto-regradora, enquanto o socialista Proudhon buscava a dignidade através de programas políticos de justiça social. Nossa Constituição Federal, em seu artigo quinto, inciso III, destaca que ninguém será submetido a tortura nem tratamento desumano ou degradante.  
Sem desmerecer filósofos, teólogos e juristas que produziram e produzem tratados sobre o assunto, vou reduzir a compreensão de dignidade humana à noção de que ela suplanta o período em que vivemos com plena consciência. Ela é inerente também ao ser humano no momento do desamparo e da dependência, mesmo no momento da aflição, na agonia e no morrer. O conhecido teólogo católico Hans Küng afirma que justamente porque o ser humano continua plenamente humano, mesmo quando em estado terminal ou estando moribundo, ele tem o direito não só a viver em dignidade, mas tem o direito de despedir-se e de morrer em dignidade. Já Tomás, de Aquino, – o universalmente conhecido filósofo escolástico católico – afirmava que o direito à vida não significa a obrigatoriedade de viver, pois o ser humano como ser criado à imagem de Deus é senhor de sua vontade e é senhor de seu fazer.
 
O papel da família, dos amigos
O que é um morrer em dignidade? Cada ser humano enfrenta sua morte individual e ninguém pode fugir dela, mas seres humanos podem colaborar para que o doente em estado terminal possa ter um morrer amenizado. Relevante papel cabe a parentes ou amigos próximos no preparo espiritual, tanto no que diz respeito ao despedir-se como no que diz respeito ao amparar o agonizante, eventualmente incluindo a atuação de um clérigo ou de uma pessoa treinada e habilitada para esses momentos, como é o caso dos acompanhantes de moribundos na Alemanha.
O preparo para o morrer de um paciente com limitada expectativa de vida deve ser o final de um processo autônomo, amadurecido com tempo. Morrer necessita e toma tempo: tempo para assimilar, tempo para encontrar-se a si mesmo, tempo para se despedir, tempo para desfazer desavenças, tempo para regularizar assuntos patrimoniais ou econômicos pendentes.
Mas esse processo de preparo é também o último momento para eventualmente elaborar um testamento vital ou uma declaração de última vontade. O ideal é providenciá-lo bem antes, quando a qualidade de vida estiver no auge e todos os envolvidos estiverem habilitados a agir com imparcialidade e de forma descomprometida. Esse documento – devidamente registrado em tabelionato – deve dispor a vontade do indivíduo no caso de incapacitação mental por consequência de doença ou acidente. Por exemplo, ele tem o direito de previamente decidir sobre ser ou não alimentado por sonda nasogástrica ou por via parental, ou, ainda, de receber transfusão de sangue, medicamentos antibióticos, quimioterapia e transplante e de ser reanimado em caso de parada respiratória e/ou cardíaca. Além disso, o testamento ou a declaração deve conter o nome e a qualificação de pessoas que entreguem ao médico e/ou ao hospital esse documento para que se respeite essa última vontade. Em caso de prognóstico de que o paciente é realmente terminal e a morte sobrevier, o médico não terá violado a lei nem o código de ética médica ao agir de acordo com o documento. O paciente terminal tem o direito de decidir sobre o encerramento, a limitação ou a exclusão de medidas paliativas que prolonguem sua vida.
 
O papel do médico
Mas, absolutamente fundamental é a atuação dos profissionais da medicina, em especial do médico responsável pelo paciente. Aqui a melhor palavra é transparência: desde o momento em que define o diagnóstico de doença grave, o médico deve prestar toda a informação necessária (não só a solicitada!) tanto aos acompanhantes como ao próprio paciente. Seu papel vai além: deve instar a que todos os envolvidos falem sobre a doença e, no caso de evolução progressiva, sobre a última fase de vida. A consideração do médico pelo paciente impõe-lhe a obrigação de a tempo e honestamente falar sobre a incurabilidade de uma doença.
O paciente tem o direito de receber respostas corretas. O esclarecimento e a conscientização também é um processo que pode estender-se por dias ou semanas. Algumas pessoas não conseguem preparar-se para o morrer porque há falhas na comunicação entre ela e o médico. Vários são os motivos que vão desde a falta de coragem do profissional até a negativa do paciente e seus familiares em aceitar a realidade, passando por aspectos logísticos. Isso são explicações, não desculpas. O respeito pela autonomia do paciente impõe ao médico a obrigação de informar sobre o diagnóstico e sobre o prognóstico.
 
Apoio ao doente
Na declaração do paciente com câncer citada acima, “não quero precisar viver se minha mente estiver completamente desnorteada, meu corpo destruído e aquilo que me caracteriza como ser humano estiver irreparavelmente perdido” transparece o medo que sobrevém muitas pessoas de que tenham de viver sem consciência, talvez com dor ou somente porque estejam ligadas a aparelhos médicos – uma vida vegetativa, portanto. A bênção da moderna medicina torna-se uma maldição. Mas há opções!
Cada cidadão tem assegurado na Constituição Federal o direito à preservação da dignidade e à autodeterminação. A instituição hospitalar e/ou o médico pode até ter conflito de consciência ao decidir interromper ou não um tratamento ou de implementar ou não medidas paliativas que visem à prorrogação da vida de um paciente terminal. No entanto, esse conflito torna-se inexistente quando um parente próximo do paciente apresentar a declaração de última vontade, autorizando atos médicos que lhe preservem a dignidade. Lembrando o paciente citado acima: “nesse estágio final, fico sem a possibilidade de tomar minhas próprias decisões”, mas ele tem a certeza de que sua vontade registrada em tabelionato seja cumprida.
 
Do ponto de vista da ética cristã, o sofrimento decorrente de doença terminal, e que não mais possa ser revertida, é motivo que justifica a intervenção médica para abreviar esse sofrimento. Dizendo inversamente: tal sofrimento não justifica um viver sem qualidade. É justificável até mesmo ministrar dose de analgésico ou de calmante correndo o consciente risco de que essa dose pode acarretar a morte do paciente. O mandamento Não matarás tem uma interpretação mais precisa no Não assassinarás. Ao médico é obviamente vedado o matar proposital, não o auxílio no morrer com dignidade. As possibilidades da moderna medicina em mitigar o sofrimento, mesmo correndo o risco de acelerar o morrer são aceitáveis desde que não haja intenção de causar a morte do paciente.
O teólogo Küng defende a observância da livre vontade de pessoas que tenham tomado a decisão de devolver sua vida a Deus mediante um piedoso ato médico quando estiverem em situação de doença irreversível. A motivação última não é a eliminação de insuportável dor, mas o desejo humano de poder viver até o final com autodeterminação.
Nos casos de demência – decorrentes da doença de Alzheimer, por exemplo – a controvérsia é intensa. Geralmente o doente não padece dor, mas também não tem mais plena consciência da vida, ou seja, perde a qualidade de vida. A responsabilidade perante Deus proíbe decidir sobre vida e morte. Mas há um limite além do qual entram em conflito aquilo que é eticamente correto e aquilo que representa uma desumanidade. Essa situação limítrofe é excepcional e não revoga a regra da ética, mas a confirma.
Na Holanda, na Bélgica e na Suíça até mesmo o suicídio assistido está legalizado. Nesses países, outra pessoa – um médico – é instrumentalizada a executar um ato responsável por finalizar a vida. A controvérsia atinge seu auge.
 
Apoio ao morrer e auxílio no morrer
          É necessário diferenciar entre apoio ao morrer e auxílio no morrer.
O apoio ao morrer é um acompanhamento humanitário. Para muitas pessoas, pensar em morrer vem combinado com medo: medo do desconhecido, medo da dor, da solidão, do encerramento prematuro da vida, do talvez enorme sofrimento. É necessário estar ao lado do moribundo em sua última fase, fazê-lo sentir a presença física e espiritual através de manifestações verbais e não-verbais. Mesmo a pessoa inconsciente sente o toque físico e o sentido da audição ainda tem plena funcionalidade por muito tempo. Cabe a familiares e/ou amigos próximos exercer esse apoio e fazer valer a última vontade do paciente.
O auxílio no morrer caracteriza-se por:
a) passividade médica em deixar o paciente morrer, abrindo mão da aplicação de medidas que visem à prorrogação da vida. Como já repetido, essa inação deve ser autorizada por escrito.
b) eventual apressamento do morrer mediante aplicação de medicamentos que visem a mitigar a dor ou acalmar o paciente terminal. Trata-se do auxílio indireto para o morrer. Essa aplicação por vezes é considerada um matar por compaixão ou um liberar do sofrimento. Como tal, justifica-se moral e juridicamente. Não ocorre uma interrupção do tratamento, mas sim uma alteração no foco, passando-se a combater sintomas, não mais a doença propriamente dita.
A ninguém é dado julgar sobre o valor ou o desvalor de uma vida humana – sequer sobre a própria. Necessário se faz alertar aqui, que por vezes é muito aflitivo para um familiar ou amigo próximo ter de assistir ao sofrimento com que uma pessoa falece. Mas ele deve proceder a uma auto-avaliação para definir se não é seu cansaço e a percepção de sua impotência frente ao estado do ente querido ou amigo que o impelem a instar a equipe médica a desligar aparelhos e/ou interromper um tratamento com a justificativa de poupar o doente de sofrimento, quando, na realidade, quem não está mais aguentando é o acompanhante. Tanto na passividade médica (a) como no apressamento (b) cabe ao médico constatar a irreversibilidade do prognóstico e, então sim, agir conforme a expressa vontade de seu paciente.
O auxílio no morrer pode, ainda, caracterizar o suicídio assistido. Trata-se do auxílio direto para o morrer e é considerado um delito no Brasil, mesmo com a autorização e por vontade do paciente. Falta ao legislador brasileiro compreender que, exauridos todos os recursos médicos e – repito - mediante clara anuência e levando ainda em consideração condições psicológicas, jurídicas e religiosas, o sofrimento extremo de um ser humano poderia ser motivo justificado para o médico auxiliar o paciente a suicidar-se. Em tal situação de sofrimento não deve ser vista obrigação em viver! Ainda segundo o teólogo Küng, “ao ser humano é dada a responsabilidade por sua vida bem como sobre seu morrer e, quem crê que o morrer é um entrar em comunhão com Deus, não precisa prolongar sua vida a qualquer preço.” E como dizia o teólogo reformado (zwingliniano) Karl Barth: “Nem todo o matar-se é um auto-assassinato – o matar-se não é necessariamente um puro e simples tirar sua própria vida. Em casos extremos, o motivo poderia ser entendido como a determinação pela oferta de sua própria vida”. A graça e a misericórdia de Deus e a liberdade e a autodeterminação humanas não são excludentes. Justamente porque o cristão tem a convicção de que a morte não representa um fim total, ele não precisa ater-se a um prolongamento de sua vida e ser “submetido (...) a tratamento desumano ou degradante”, conforme nossa Constituição.
Também a aplicação de métodos de reanimação pode ser questionada eticamente. Embora muitas pessoas devam longos anos de vida com qualidade a esses métodos, inúmeras outras sofrem as sequelas do sucesso apenas parcial da sua aplicação decorrente da demora ou da insuficiência na oxigenação do cérebro.
 
          Estimada leitora! Estimado leitor! Como afirmei no início, meu desejo é lançar ideias para uma discussão sobre o morrer. Aceita o desafio e troca opiniões, interage com teus familiares, avalia a elaboração de uma última vontade – e vive uma vida feliz com a Graça de Deus!
 
Bibliografia:
Weber, Friedrich. Beim Sterben helfen? Hannover: Lutherisches Verlagshaus, 2006.


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Há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas ações a fazer e, sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar.
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