Publicações no âmbito da Igreja



ID: 2957

Onde está, ó Morte, a tua vitória?

Reflexões acerca da Confessionalidade Luterana em tempos de Corona-vírus

21/03/2020

 

Onde está, ó Morte, a tua vitória?

Reflexões acerca da Confessionalidade Luterana em tempos de Coronavírus

Sidnei Vilmar Noé

Faz parte da vida, a morte! Assim como também, a doença, o sofrimento, a dor, a angústia, o desespero; e, por outro lado, do aguilhão da morte, a vida, bem como, a convalescença, a superação, ou ao menos, a convivência, com maior ou menor qualidade de vida, com as agruras inerentes às vicissitudes da vida. E não por último, a vitória, a felicidade e o galardão, pela dádiva de Deus, àquelas(es) que persistem na fé, não obstante, as maiores provações.

E este é certamente um desses momentos em que a capacidade de resiliência da fé está sendo posta à prova até às últimas consequências. Isso porque, reiteradamente, o mundo inteiro, se depara com o imponderável, que confronta o ser humano com um cenário de possível extinção (se não agora, mas a qualquer momento).

Em tal circunstância, cabe-nos à reflexão, ponderar algumas questões inexoráveis: a) o que é a vida, respectivamente a morte? b) qual o caminho psico-sócio-cultural-histórico indicado por doutos e autoridades, especialmente, em relação ao combate da pandemia da COVID-19? c) como a base de fé cristã, luterano/reformada, pode auxiliar diante de tal causa real de angústia?

a) O que subjaz a tudo que vive? Ora, a vida! E vida é sobreviver, muitas vezes, em um ambiente hostil e marcado pela escassez, através da estratégia da multiplicação. Em outras palavras, é um a despeito de, um não obstante a, um resistir aos abalos, perseguições, contendas, para continuar vivendo e, se possível, assegurar a continuidade da espécie. Portanto, sobreviver significa à custa de; ou seja, implícita à própria sobrevivência, está a morte (na natureza chama-se isso de cadeia alimentar). E, inversamente, a morte significa vida àquela(e) que dela se beneficia. Neste sentido, por mais paradoxal que soe, também o corona-vírus é pura vida, ainda que implique morte (se bem que em uma proporção relativamente pequena em determinas faixas populacionais mais vulneráveis: pessoas idosas e com doenças crônicas, especialmente relacionadas ao diabetes, à hipertensão e a doenças pulmonares). Portanto, também essa cepa, não se distingue de tudo o mais que é vivo, nem mesmo, do ser humano: ela só quer sobreviver e sua estratégia para tal é disseminar-se e multiplicar-se. Nada indica, pois, que uma estratégia de combate, visando sua extinção, tenha qualquer chance de sucesso; assim como ocorre com tantos outros vírus, bactérias, micróbios... A única chance que temos é, assim como o vírus se adapta, também nós humanos nos adaptarmos a ele. Certamente isso exige um tempo para desenvolver vacinas e, especialmente, anticorpos...

Então, em última análise, o que está em jogo é que precisamos alterar nossa interpretação da vida e da morte: à vida, faz parte a morte; à morte, faz parte a vida! Não é pela via do banimento, da extinção, da segregação é que obteremos algum sucesso na lida com a vida. Ela se impõe por sua própria natureza, pois ela simplesmente significa sobreviver a qualquer custo. Isso também vale para a morte, não é pela segregação, extinção, banimento é que poderemos vencer a angústia em relação à mesma, pois, também ela, faz parte da vida (e isso se estende a tudo àquilo que se entende por mal, doença, alienação, deficiência). Qual, pois, seria o caminho adequado? Incluir a morte na vida e a vida na morte! Como fazê-lo? Seguindo o nosso instinto natural pela vida que, mesmo confrontada com a maior ameaça e o maior perigo – a morte –, simplesmente, não se rende; mas, procura vencê-la, ou ao menos, ganhar uma sobrevida, em seu próprio jogo (e aqui não tem como lembrar e deixar de indicar o clássico de Ingmar BERGMAN O sétimo selo). E vice-versa, lembrar que em meio à morte nasce a vida! Acaso não o fora assim no relato de Gênesis? Mas também, a própria ciência aponta para a possibilidade que, a partir de uma gênese ainda não recuperável pelos meios de pesquisa disponíveis, a vida começa com a mutação de uma nano matéria inorgânica, em orgânica. Logo, temos que aprender a conviver, também com este vírus, assim como temos que aprender a conviver com outros correlatos, o câncer, a doença, de modo geral, e, não por último, a morte. Da mesma forma, vice-versa, em meio à doença, à morte, é que há espaço à vida, à sobrevida, à ressurreição...

b) Em relação ao segundo ponto, conforme K. BARTH outrora já recomendara, “devemos segurar a Bíblia em uma das mãos e o jornal na outra”. Destarte, a melhor maneira de nos prepararmos conscientemente ante qualquer angústia, real ou difusa, é verbalizar a emoção inconsciente, em palavra e reflexão. A dinâmica vertiginosa com a qual a COVID-19 se espalha mundo à fora (inclusive já se tem o medo real de que a mesma possa chegar à estação espacial internacional), faz com que tenhamos que nos atualizar consequentemente a respeito das mais recentes informações a respeito e dos cuidados necessários. Basicamente, conforme posso depreender do jornal (evidentemente, hoje em dia, obtemos as informações ainda mais por outras mídias!), em uma de minhas mãos, essas se resumem ao seguinte quadro: – apesar do vírus se disseminar rápida- e exponencialmente, sua letalidade é baixa, se comparada à de outros (por exemplo, do sarampo); – afeta especialmente determinados grupos de risco (doentes crônicos e idosos); – não há, por enquanto, vacina, nem tratamento eficaz contra o mesmo; – a melhor medida de controle é a prevenção: higiene, isolamento, proteção. E este último ponto, precisamente, é que talvez atinja mais diretamente a vida na Igreja: ela é, essencialmente, comunhão! Mas como viver em comunhão, se temos que nos manter na solidão? E é exatamente sob este aspecto que a outra mão, a Bíblia, pode lavar àquela contaminada. Acaso não é tempo de Quaresma? É tempo de interioridade, de meditação, de concentração, de reflexão, de contrição... E, neste sentido, apesar de todo o sacrifício que ora a vida nos impõe, é também tempo de graça, de busca pela via contemplação interior, do perdão de Deus pela falta de norte em nossas vidas pessoais e no convívio social. Qual espelho, a Palavra nos interpela a nos perguntarmos se o caminho que trilhamos na sociedade de risco e que nos leva a esta dança na corda bamba ante a iminência do abismo pode ainda ser corrigido? Outrora, era o papel dos profetas fazer este tipo de pergunta! E a resposta sempre é a de que ainda há tempo... E, por outro lado, temos tempo agora, por força das circunstâncias, de refazer a experiência de D. BONHOEFFER: só sabe viver na comunhão, quem aprendeu a viver na solidão (talvez melhor, solitude); bem como, só sabe viver na solidão, quem aprendeu a viver na comunhão. Em relação à solidão, temos muito a aprender, haja vista que, muitas vezes, vivemos como “zumbis”, com os nossos celulares, games, computadores, internet... A metanoia (conversão) da solidão em solitude, somente é possível mediante a circun- e introspecção, como bem a chamaram os gregos, pelo conhece-te a ti mesmo. É a partir desta que se abrem as portas à verdadeira convivência em comunhão; e dialeticamente, a comunhão que degradou a um lado a lado, sem qualquer interação, interesse, atenção, cuidado, somente poderá reassentar sobre sua verdadeira pedra angular, lá onde aquelas(es) que viveram sua solitude aprenderam a amar e a desejar a graça da comunhão, não obstante seu pecado, mas também, de sua justificação em Cristo.

c) E, não por último, cabe-nos perguntar pelo esteio da confissão cristã, luterano-reformada, em meio a este tempo de tribulações e crise, não só relacionadas à mazela da saúde pública e individual, e chegaremos à conclusão de que este só pode se alicerçar sobre o triunfo da vida. Esta é, pois, a quintessência do Evangelho: não é a morte que tem a última palavra e sim a vida! Ou quem melhor o poderia dizer, senão o Apóstolo Paulo:

E, agora, digo isto, irmãos: que carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herda a incorrupção. Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade e que isto que é mortal se revista da imortalidade. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então, cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor.1

Neste sentido, à Igreja de Cristo cabe, em meio a esta tribulação, não se desviar um momento sequer do seu fundamento, porquanto isso redundaria em desespero. Não se trata de nada singular, que a morte faça parte da vida e a vida da morte! Isso, todavia, não pode significar uma atitude passiva de resignação... Pois, em Cristo, já vencemos a morte, à vida eterna. Mediante esta fé, desperta pela sua Palavra, é que usaremos de todas as nossas faculdades, para, bem-informados, lutarmos solicitamente pela vida que não só seja, sobrevida, e sim, vida com dignidade e respeito. E neste quesito há muito a corrigirmos em nossas atitudes pessoais e coletivas. Que o Altíssimo misericordioso seja nosso amparo, fortaleza e norte!

Fraternalmente,
Sidnei Vilmar Noé

Nota: 1 BÍBLIA, trad. Almeida, rev. e cor., 2009.


Autor(a): Sidnei Vilmar Noé
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste
Área: Missão / Nível: Missão - Coronavírus
Área: Publicações / Nível: Publicações - Artigoteca
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 15 / Versículo Inicial: 50 / Versículo Final: 58
Natureza do Texto: Artigo
ID: 55566

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