Publicações no âmbito da Igreja



ID: 2957

O medo de sair perdendo

Artigo

23/04/2004


Em Santa Catarina, um dos grandes desafios a exigir solução rápida e justa é a demarcação das áreas que envolvem, em nosso Estado, os povos indígenas remanescentes, e os agricultores que cultivam as terras, há décadas, tirando delas o sustento merecido..

A Carta Magna brasileira motivou as autoridades competentes a decretar, fazendo valer a lei, para execução ágil, a ampliação das áreas consideradas como reservas de direito à posse dos índios, terras essas que viessem a contemplar os povos primitivos no Brasil com melhores meios de vida, dando-lhes condições essenciais à sobrevivência considerando sua história e cultura.

Diante da medida governamental, instalou-se enorme apreensão, tanto entre os índios quanto entre os agricultores. Está presente o medo de que alguém sairá perdendo. São fortes os anseios de todas as partes envolvidas, que aguardam o desfecho dessa questão agrária não resolvida.

A mídia tem nos servido, a cada dia, em pratos variados, informações que apontam para ações organizadas administradas pelos movimentos de contestação e de pressão. São manifestações reivindicatórias de segmentos da sociedade, trabalhadores e funcionários, que se julgam não atendidos em seus direitos, grupos injustiçados, face a compromissos assumidos, porém, não respeitados. Vale o alerta: presente está o medo de que alguém sairá perdendo.

Por outro lado, manifesta-se a concordância e se observam com simpatia aquelas pessoas que se consideram prejudicadas e, de fato o são, diante dos servidores paralisados e por causa dos serviços suspensos.

A revolta, assim como a frustração, muitas vezes beirando o desespero, são sinais da ira e expressam a impotência de todos os que sofrem os prejuízos e se vêem destituídos de seus direitos cidadãos.

O cotidiano revela que a sociedade produz pessoas e contingentes sociais que se encontram na situação de perdedores. Com muitos outros exemplos, até banais, é que se tornam transparentes os atos de injustiça e de menosprezo cometidos contra cidadãos prejudicados por causa de sua fragilidade e de seus limites. Uma experiência social e existencial que provoca feridas e traz em si a sensação do engano e da falta de tratamento sério. O medo de sair perdendo, fruto da desconsideração a compromissos assumidos, atrai a ira, fomenta o descrédito em relação a quem cabe zelar pela cidadania.

A experiência amarga de que pessoas usurpem dos direitos alheios desencadeia sentimentos de angústia. É angústia que se manifesta como carga pesada; fortalece o sentimento de que as energias vitais vão sendo estranguladas e corroídas aos poucos. O medo de sair perdendo se transforma em experiência humilhante. O medo sempre é meu medo. Todas formas de medo se manifestam como realidade existencial. A escalada do medo multiplica a angústia, fomenta a sensação da impotência e da sobrecarga.

A fé em Jesus Cristo não nos garante o paraíso terrestre e também não promete condições ideais para a sobrevivência em ilhas fantásticas. A realidade da confiança cristã não povoa o mundo com pessoas alienadas, isentas do medo de sair perdendo, gente livre da experiência da injustiça e do desprezo que humilham.

A fragilidade da existência humana e, justamente por sua causa, fez com que a misericórdia e a bondade de Deus interferissem em favor da humanidade e para que fosse erguida a cruz, fora dos muros da cidade santa, Jerusalém, aquele instrumento brutal para o sacrifício vicário de Jesus Cristo, homem justo e verdadeiro.

Deus mesmo acena com solidariedade e semeia o espírito da fraternidade. Quem vive a dimensão do vazio da vida, correndo o risco de sair perdendo, aos olhos da fé, na realidade, não está abandonado. O plano de Deus, assim narra a parábola dos trabalhadores, naquela vinha, conforme Mateus 2, 1-16, é que também os diaristas contratados só no final do dia teriam direito a receber o que lhes tinha sido prometido.

O Evangelho, a boa notícia de Jesus Cristo, nos convida à observância de uma nova orientação: a medida para a vida em abundância não é dada pela produtividade individual, de acordo com as capacidades e competências. O novo critério torna-se a diária estipulada por Deus; na realidade, a oferta gratuita da presença companheira de Deus. A caminheiros errantes, com seus medos e cientes dos riscos, ele aplana e baliza os caminhos. Pessoas libertas da enorme pressão de que possam sempre sair perdendo estão mais aptas a contribuírem para a construção de uma nova sociedade, onde se aplicam o direito e a justiça.

Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC

Jornal ANotícia - 23/04/2004


Autor(a): Manfredo Siegle
Âmbito: IECLB / Sinodo: Norte Catarinense
Área: Publicações / Nível: Publicações - Artigoteca
Natureza do Texto: Artigo
ID: 8062

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