Publicações no âmbito da Igreja



ID: 2957

Em busca de flexibilidade e autocrítica

Artigo

15/04/2005


Existe consenso na afirmativa de que todas as pessoas terão de morrer. Diante da possibilidade de que a morte ocorra sob a interferência do médico ou da ciência médica, surgiram dilemas e se criaram dúvidas de consciência. Toda a pessoa, que em razão de sua postura ética calcada na fé cristã, aposta na confissão de que o direito sobre a vida e a morte é dado ao Criador, a Deus, terá sérias dificuldades com a prática da eutanásia..

Nesse contexto, ocorreu recentemente toda uma discussão na mídia e em outros setores envolvidos em que se reflete sobre os valores éticos. Já passa algum tempo em que fui entrevistado sobre o assunto eutanásia. A partir de quando e por que a Igreja, no mundo, especificamente no Brasil, tem se preocupado com o tema da eutanásia? Primeiramente, uma referência ao termo: a palavra eutanásia procede da língua grega e significa boa morte.

O desejo da boa morte, da morte digna, é tão velho como a história do ser humano. Na sociedade brasileira, entre outras tantas, a reflexão e o debate sobre o assunto decorrem do advento da tecnologia da medicina e dos seus avanços. A ciência médica, de forma sempre mais competente e sofisticada, abraça a possibilidade, tanto para prolongar a vida, quanto para gerar a boa morte. A questão da eutanásia, antes de qualquer posicionamento ético unânime, articulado na área da ciência teológica, deveria ser também um assunto pertinente à avaliação crítica da medicina e da jurisprudência! Com certeza, a teologia e a Igreja que anda nos passos de Jesus Cristo sendo uma ouvidora crítica serão forças motivadoras para esse tipo de debate e de avaliação conjunta!

No caso específico do Brasil, tratando-se de um país em que a tradição religiosa é muito forte e determinante, se evidenciaram críticas maciças relativas ao fenômeno ou no tocante à possibilidade da boa morte. Dada a realidade de que a possibilidade da boa morte seja um subproduto do desenvolvimento tecnológico da medicina, como avaliar de modo objetivo e ao mesmo tempo criterioso esse fruto diante de tantas outras ofertas e procedimentos da medicina contemporânea? A possibilidade de religar aparelhos ou de mantê-los desligados do paciente, fato esse que significa prolongamento da vida ou morte respectivamente, remete para o avanço da tecnologia médica e transformou-se em desafio à bioética.

Todos os sofrimentos e todas as dores que se experimentam no mundo concentram-se mais cedo ou mais tarde na realidade da morte. Observamos nos dias da atualidade uma forma superficial de trabalhar a realidade do fim da vida, e não passa desapercebido o medo diante da morte. Atestam esse fato muitas mensagens, pouco responsáveis e nada evangélicas, nas capelas mortuárias e nos cemitérios, em nossas cidades. Textos construídos e idéias veiculadas que bagatelizam a realidade pesada e feia da morte. O vocabulário aplicado é superficial, ora reflete a morte na dimensão do fatalismo, ora enfeita a morte como se fosse a melhor redenção dos sofrimentos. Paralelamente a esse jeito de fazer a dureza da morte tolerável, o avanço das tendências espiritualistas e das doutrinas acerca da imortalidade do ser humano frutificam em chão fértil. A tecnologia médica é acusada de negar às pessoas o direito da morte digna. Motivados pela boa notícia de Jesus Cristo, nos é lícito afirmar que a fé cristã parte do princípio de que a vida é presente, não propriedade nas mãos de pessoas humanas. Faz parte do fundamento da fé a convicção de que Deus dá a vida e só a Ele cabe tirá-la. Tanto os princípios da fé cristã assim como os fundamentos do judaísmo, no Antigo Testamento, interpretam a vida como mandato de Deus. É Ele quem preserva a vida humana.

Aliás, o mesmo vale para a ciência médica. Sua razão de pesquisa e de trabalho é sempre a defesa da vida até o fim. Não cabe a promoção da morte. Por isso, a eutanásia como instrumento para acelerar o processo da morte, não deixa de ter característica de homicídio. Na qualidade de vida doada, esta torna-se indisponível à manipulação de seres humanos. O doente terminal deve ter preservada a vida com dignidade até o fim. É verdade, ao mencionarmos a morte digna, deveríamos, por uma questão de coerência, apontar também a vida digna.

Em largos segmentos latino-americanos, se evidencia o contrário. A eutanásia pode ser, de fato, um instrumento a indicar que o ser humano detém o controle sobre a sua e a vida alheia. Aliás, uma realidade problemática observada nas políticas das nações poderosas que arrogam a si o direito de determinar e controlar a vida de pessoas e de povos inteiros.

A vivência de fé das pessoas cristãs se torna realidade, enquanto se busca coerência, assim como se busca sua flexibilidade e também se permite liberdade à autocrítica. Associamo-nos a Juergen Moltmann, teólogo europeu, quando alerta que, nem a razão humana nem os mecanismos tecnológicos poderão destruir o sentimento direcionado à poesia da vida.

Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC

Jornal A Notícia - 15/04/2005


Autor(a): Manfredo Siegle
Âmbito: IECLB / Sinodo: Norte Catarinense
Área: Publicações / Nível: Publicações - Artigoteca
Natureza do Texto: Artigo
ID: 7874

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