Diversidade étnica



ID: 2907

Por acaso negro não pertence ao povo de Deus?

01/12/1991


No ano de 1992, muitos setores de nossa sociedade estarão refletindo acerca dos 500 anos de evangelização e conquista da América Latina. No Brasil os festejos dos 500 anos se darão no ano 2000. Mesmo assim, estamos todos juntos refletindo sobre o significado, para nós, dessa política de expansionismo europeu e norte-americano durante esses 500 anos.

Situação do negro

A IECLB, no biênio 1991-92, reflete o tema Comunidade de Jesus Cristo — a serviço da vida. Muitas são as comunidades que estabelecem uma relação entre os 500 anos e o compromisso de ser Igreja de Cristo a serviço da vida. Neste sentido quero refletir com você, leitor/a, a relação entre brancos e negros em nossa sociedade.

Estamos às portas do ano 2000 e vemos que a humanidade ainda não conseguiu resolver questões como: paz e guerra, diferenças étnicas, pobreza, alimentação, saúde, educação etc. Pensando no caso de nosso querido Brasil, vemos que os quase 500 anos foram marcados por violência, desrespeito, escravidão e morte. Ainda neste ano, mais precisamente em 13 de maio, lembraremos os 104 anos da abolição da escravatura e constatamos que a situação do negro em nossa sociedade ainda é marcada pela miséria, marginalização, sofrimento e morte.

Sei que o assunto é constrangedor, pois muitas pessoas não gostam de falar sobre ele. Em alguns casos, porque lembra sofrimento; em outros, por medo de deixarem transparecer o próprio sentimento do racismo (o medo de se expor) ou, ainda outros, por pura indiferença. A verdade é que todos nós sentimos dificuldades de reconhecer o racismo e não sabemos como comportar-nos quando somos discriminados ou quando vemos alguém discriminar. Outrossim, não sabemos com clareza como reconhecer uma atitude racista. A atual Constituição Brasileira assegura: Racismo é crime inafiançável..., ou seja, quem cometer algum delito neste sentido jamais poderá pagar fiança e responder à acusação em liberdade. Está na Lei! Não temos o que questionar. Mas por que então a situação do negro não muda?

Discriminação na sociedade

Mundialmente, o brasileiro é reconhecido como o que sabe dar um jeitinho em tudo. A prova disto está na própria relação entre negros e brancos. Assumir publicamente que não se aceitam negros ou mestiços em determinadas empresas ou departamentos não é coisa comum em jornais ou placas. Existe, no entanto, uma maneira de rejeitá-los, sem com isto assumir explicitamente que não se deseja a admissão de tais pessoas. Boa aparência, experiência comprovada no ramo, os psicotécnicos.., sempre se acaba arrumando um jeitinho para não admitir negros. Um outro exemplo está no namoro. Todos se dizem não-racistas até a hora em que seu filho ou filha começam a namorar uma pessoa de cor. Não é que sejamos racistas, mas esse rapaz não serve para você. Ele é diferente. Não tem profissão, tem costumes diferentes, sua religião... Não tem estudo, tem cheiro forte... Coisas desse tipo são sempre levantadas para não assumir o real sentimento quando se trata de casamento entre brancos e negros.

Na escola o racismo passa pela beleza física, asseio corporal, interesse pela aula e tudo mais. As(os) professoras(es) quase sempre têm a tendência de eleger os melhores da turma por esses fatores. Os queridinhos acabam sempre sendo loirinhos de olhos claros e todos os requisitos acima.

Em termos de saúde a maioria da população não tem acesso a um bom atendimento pelo fato de ter renda baixa. E por que tem renda baixa? Porque não tem emprego. Por que não tem emprego? Porque não tem educação. Por que não tem educação? Porque, ainda criança, o negro precisa ajudar em casa. Por que precisa ajudar em casa. Porque seus pais têm poucos recursos. E por quê...? Essas perguntas e respostas vão e voltam ao mesmo ponto, sem que se consiga fazer uma reflexão mais profunda sobre o porquê das coisas.

Nossa tendência é a de sempre querer viver num mundo mascarado, onde não se quer ver as coisas como elas realmente são. Buscar respostas para as questões pode nos levar a enxergar o quanto somos fracos de espírito, medíocres e totalmente contraditórios em nossa maneira de ser.

Indignação no seio da Igreja

Como funcionam as coisas no mundo das igrejas? Será que os problemas mundanos estão refletidos em nossa relação com os irmãos? Ou será que vivemos num mundo cor-de-rosa? Por razões diversas as pessoas desejam sempre que a Igreja seja um lugar celestial, por isso negam a existência de conflitos. Minha experiência como negra e mulher dentro da Igreja luterana é muito parecida com a de muitos negros em outras igrejas. No meu caso existe um elemento a mais, o fato de a IECLB ser majoritariamente branca e trazer em seu quadro de membros traços da cultura germânica.

Ser membro da IECLB é fácil? Não é!

Sempre quando preciso conhecer alguma comunidade ou fazer alguma visita a um membro desconhecido, a expectativa é muito grande. Nunca sei como vou ser recebida. Quase sempre há os que me vêem com simpatia e os que não entendem minha presença entre eles. Alguns se perguntam: o que estaria uma negra fazendo ali? Outros pensam que eu entrei em igreja errada. Quando me apresento ou sou apresentada, há pessoas que não conseguem esconder sua indignação. E para dizer que não sou bem-vinda àquele lugar, algumas pessoas começam a falar em alemão, mesmo sabendo falar muito bem o português.

No meio ecumênico é muito comum virem fazer piadas sobre o fato de uma negra pertencer à Igreja luterana. Há quem diga que a Igreja me usa para dar mostras de sua abertura ao povo brasileiro.

Não são poucas as vezes em que penso acerca de nossas comunidades localizadas em um contexto multi-racial. Em particular faço referência aos grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e outros. Ser Igreja neste contexto significa abrir-se radicalmente. Majoritariamente a população nestes lugares é composta de negros e mestiços, e o contingente de brancos (alemães) é pequeno. (Diferente de algumas cidades no interior do Rio Grande do Sul ou Santa Catarina.) Ainda assim, percebemos pessoas preocupadas com missão somente junto aos luteranos de berço, perdidos na diáspora. Tenho um grande amigo, pastor, que sempre diz: Nós não precisamos roubar membros de nenhuma Igreja. O importante é estarmos abertos para receber toda e qualquer pessoa que esteja procurando uma Igreja para participar. Agora, se essa pessoa for negra, ela terá que romper muitas barreiras para ser acolhida.

Racismo na IECLB?

Será que somente o fator cultural e a língua atrapalham? Não estaria presente em nossas comunidades algum tipo de racismo?

Quando, em 1988, a abolição da escravatura completou 100 anos, nosso Pastor presidente mandou uma carta às comunidades pronunciando-se oficialmente sobre a data. Em muitos lugares a carta não foi lida (como sugeria a presidência). Muitos chegaram à conclusão de que na comunidade não havia pessoas de cor para ouvi-la. E onde foi ouvido o clamor do povo de Deus? Por acaso negro não pertence ao povo eleito por Deus?

Neste mesmo ano um pastor se recusou a aceitar um cartaz com a figura de Zumbi dos Palmares que dizia Cem anos de mentira. Esse pastor argumentou que em sua Igreja não existia preconceito contra negros. Essa postura isolacionista partia de sua pequena comunidade em que supunha que o racismo estava superado, desconsiderando todo o sofrimento dos negros fora de seu círculo de relações pessoais.

Tratar sobre questões indígenas é mais fácil para alguns. Já ouvi e vi cartas e cartazes dirigidos às comunidades denunciando todo tipo de exploração em que vivem esses povos. Quer-se levar informação de sua situação fazendo com que as pessoas conheçam a realidade e não venham a se omitir.
Por que será que a questão racial em relação ao negro é sempre tão difícil de ser abordada? Por que tanto medo?

Queremos ser tratados com respeito

Negros querem ter os mesmos direitos das pessoas brancas. Direito a educação com boa qualidade de ensino. Direito de ir e vir sem ser olhada como bandido ou prostituta. Direito a emprego decente, sem que o item boa aparência o elimine de imediato. Direito a um bom sistema de saúde. Direito a dirigir seu carro sem ser confundido com bandido ou assaltante. Direito a sua identidade e individualidade em que as crianças possam se sentir bonitas. Quem foi que disse que negro é feio? Somente quem elegeu o padrão branco de beleza, unilateralmente, pode afirmar isso.

Nós, mulheres negras, queremos ser tratadas com respeito e não sermos consideradas símbolo sexual para satisfação de uma maioria machista.
Igualdade de direitos ameaça? Sim!

Numa sociedade capitalista como a nossa a exigência de igualdade pode trazer muitos problemas para uma minoria rica e branca. Ao se apelar para a questão da cor, atribuindo às pessoas negras falta de competência, indolência, falta de estudo, cultura etc... isso significa eliminar de imediato cerca de 50% da população.

Direito de conhecer a própria história

Na questão de igualdade de direitos gostaria de destacar o direito de conhecermos nossa história. Os livros didáticos adotados em escolas da rede pública ou particular dão pouco ou quase nenhum destaque à vida do povo negro em terras brasileiras. Poucos falam da escravidão na época do Brasil Colônia. Trazem a abolição como um ato heróico da Princesa Isabel. Quase nunca falam da resistência desse povo nos quase 300 anos de cativeiro. Nunca trazem a real situação dos negros nos dias de hoje. Dificilmente ouvimos falar que os negros foram mandados embora de mãos vazias quando se iniciou a política de imigração e embranquecimento do povo brasileiro.

Sempre que não conseguimos entender a problemática racial, apelamos para sentimentos de origem desconhecida. Ignoramos que a discriminação racial está a serviço de um determinado modelo sócio-econômico e político, e é dentro deste contexto que precisamos analisá-lo.

Não se calar

Como comunidade de Jesus Cristo a serviço da vida não podemos nos calar diante dessa situação. Nossa omissão só reforça a maneira de pensar discriminadora de quem desconhece a mensagem do evangelho que diz: Dessarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus (G1 3.28).

Silvia Schuenemann, é coordenadora de uma creche em Santo André, SP, e membra da Junta Diretiva do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI).

Fonte: Anuário Evangélico, 1992, p. 82-85
 


Autor(a): Silvia Schuenemann
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Multiculturalidade
Natureza do Texto: Artigo
ID: 65192

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