Missão com Jovens



ID: 2751

Eduquem-se Mutuamente

19/01/2017

 

Lado PALAVRA

EDUQUEM-SE MUTUAMENTE

Henri Luiz Fuchs

A educação, a partir de Lutero, já foi, inúmeras vezes, objeto de estudos e reflexões no decorrer da história. Portanto, não é um tema do qual nada se sabe ou se ouviu falar no contexto luterano e até mesmo fora dele. Há, porém, fatos e perspectivas que tornam a temática atual e necessária para as pessoas que buscam viver uma fé a partir do Evangelho de Jesus Cristo e dos fundamentos confessionais da Igreja Luterana.

Conte-me a história

Martim Lutero, em 1517, ao lançar um manifesto em favor de uma igreja mais próxima do povo e com a intenção de tornar acessível a leitura da Bíblia, lançou também uma proposta de tornar acessível a leitura da Bíblia, lançou também uma proposta de tornar a sociedade mais crente e letrada. Sem a educação, o povo não conseguia ler a Bíblia e entender o seu significado para a vida diária. Lutero, certamente, não era pedagogo ou professor, mas teólogo preocupado em ensinar a Palavra de Deus para as pessoas. Foi uma tarefa desafiadora, pois ensinar a Palavra requer métodos, conhecimentos, humildade, fidelidade e dedicação. A intenção de Lutero foi a de tornar as pessoas educadoras, umas das outras, na fé. Cada pessoa é chamada a testemunhar e levar adiante a Boa Nova da fé vivida e refletida a partir da Bíblia. Algo tão simples que, aparentemente, nem sequer precisaria ser proposto! Afinal, ser cristão e cristã é viver diariamente a fé em Jesus Cristo. É viver na liberdade proporcionada pelo Evangelho do amor a Deus e ao próximo.

Na época de Lutero, na Alemanha, em especial, o povo vivia à mercê dos padres quanto à leitura e interpretação da Bíblia. A missa na língua latina tornava as celebrações em ritos a serem seguidos, mas, muitas vezes, sem muito sentido para as pessoas que buscavam uma experiência de fé mais significativa e concreta. Além disso, a Alemanha vivia um processo de pauperização, estando à margem dos centros econômicos da época. O sistema feudal, baseado no sistema de acumulação de terras, começava a mostrar suas contradições e limitações. A própria geografia política estava em transformação. Inúmeros pequenos povoados independentes buscavam aumentar o seu poder sobre outros povoados vizinhos, não havendo ainda uma organização política capaz de juntar os diferentes grupos e povoados.

Lutero, ao perceber as dificuldades e carências do seu povo, lendo a Bíblia, sente a necessidade de buscar um novo sentido de vida a partir de uma igreja capaz de ouvir, ensinar, cantar e viver uma esperança que se torna concreta na caminhada de fé da comunidade. Assim, ao encontrar em Romanos 1.17 que “o justo viverá pela fé”, abre-se uma nova perspectiva de interpretação da Bíblia e inicia-se um processo de anúncio da descoberta feita no Evangelho. Em decorrência, Lutero defende uma igreja descentralizada, onde cada participante tem um lugar, não necessariamente de liderança, mas um lugar que dê sentido para a vida e perspectivas de um amanhã construído na relação entre as pessoas que, no presente, vivem a história construída e o amanhã, gestado na fé entre irmãos e irmãs.

Não temos o interesse de enaltecer as descobertas de Lutero, mas reconhecer que, entre outros, ele foi um dos precursores de uma educação voltada para a formação e capacitação do ser humano para participar da vida no seu contexto e no seu tempo. É claro que a motivação de Lutero provém da fé que impulsiona uma ação educativa para possibilitar uma consciência das capacidades e dons que cada pessoa pode solidariamente doar para a vida em comunidade. É a partir da construção de relações de fé, amor e paz e de espaços que proporcionem o encontro com o diferente que se constitui um ser humano autônomo, capaz de ler, interpretar e testemunhar a Boa Nova de Deus. Por isso, ainda hoje, na igreja, são realizadas atividades educativas com crianças, jovens, casais, pessoas sozinhas, pessoas com mais experiência de vida. A partir de Lutero, a sociedade não é mais a mesma.

Prezado Sr.

As cartas aos príncipes e as prédicas para as comunidades elaboradas por Lutero começaram a gerar reações e transformações. Algumas reações foram para tentar impedir a sua divulgação. Outras foram para apoiar e aprofundar as discussões. Nestas cartas e prédicas, Lutero insistia no investimento de recursos para criar escolas, ao invés de investir em armas e guerras, e para que os pais e as mães enviassem seus filhos e suas filhas para aprenderem os
ensinamentos bíblicos necessários para serem pessoas cidadãs e líderes capazes de governar com ética e amor. Numa sociedade com mais de 95% de analfabetização, uma proposta para investir mais recursos na educação e educar para poder ter acesso à Bíblia, certamente, contrariava muitos interesses.

Não educar é diabólico

A proposta de Lutero está relacionada com a concepção de um ser humano capaz de, na liberdade, amar, comprometer-se com a outra pessoa, e, ao mesmo tempo, depender de Deus para praticar este amor. A educação é a maneira encontrada por Lutero para garantir a redescoberta do Evangelho e para formar cidadãos e cidadãs praticantes do amor que se manifesta na justiça e na fé. A oposição a esta proposta é considerada obra do diabo que quer continuar a dominar o mundo. Para vencê-lo, é imprescindível educar na fé para a cidadania.

Para tal, Lutero apresenta sua proposta de currículo que inclui estudar a Sagrada Escritura e, consequentemente, as línguas em que ela foi primeiramente redigida, que são hebraico e grego. Além das línguas, dever-se-ia acrescentar outras, como canto, história, música, matemática. O programa de estudos deveria constar de Sagradas Escrituras, latim, grego, hebraico, alemão e outras línguas; o estudo da gramática, pois estas também possibilitavam a compreensão das Escrituras; as Artes e as Ciências; a jurisprudência e a Medicina. Para fornecer material necessário para desenvolvimento das habilidades dos alunos e das alunas, as escolas deveriam estar muito bem organizadas e dotadas de boas bibliotecas.

Um currículo universal

O Estado foi chamado para criar e manter escolas para formar para a cidadania inicialmente evangélica. O sacerdócio geral de todas as pessoas crentes é essa cidadania que, através da fé, cria uma comunidade de irmãos e irmãs que transformam a realidade com base no amor. Para tal, a escola é necessária. Também é necessário o currículo. O currículo universitário da época consistia nas seguintes disciplinas: a retórica, a gramática, dialética, geometria, aritmética, astronomia e música. Este currículo, inicialmente, buscava formar os filhos e filhas das famílias detentoras de mais recursos e propriedades. Para quem descendia das famílias com menos recursos, a formação estava baseada num currículo voltado para o trabalho. Entre as disciplinas deste currículo, fazia parte o lanifício, as armas, a “defesa”, a navegação, a agricultura, a caça, a medicina e o teatro. Lutero, ao propor o seu currículo, busca universalizar o conhecimento para as filhas e filhos de todas as famílias, independentemente da situação e classe social. Para Lutero, é preciso ensinar as disciplinas e, paralelamente, aprender um ofício. Desta forma, todos os estudantes e todas as estudantes teriam uma formação completa.

O processo educativo no período da Reforma estava baseado na memorização e repetição. O conhecimento era assimilado através de exercícios. Na universidade, os debates, as discussões e preleções proporcionavam um confronto de conhecimentos gerando o avanço da ciência. Mas ainda não eram desenvolvidas dinâmicas e processos capazes de desafiar a construção mais autônoma do conhecimento.

Depois de passar algum tempo...

Após a Revolução Industrial, a economia começa a ser baseada, cada vez mais, na produção em série. As mães passam a fazer parte do processo produtivo. Surge então a creche, que “guarda” as crianças enquanto as mães estão na frente de uma máquina que faz sempre o mesmo processo.

A escola passa a receber uma influência mais forte da indústria, no sentido de educar as crianças para atuar no processo de produção industrial.

A escola começou, então, a sofrer a pressão e a influência de quem detém os meios de produção, que pretendiam uma formação voltada não para o exercício da cidadania, mas para a reprodução em série. Desta forma, a escola, em parte, deixa o ideal humanista herdado pela Reforma e passa a adotar uma educação voltada à economia.

Em decorrência da interferência da economia na educação, a escola começa ter um caráter menos público no que tange ao seu acesso. Surgem escolas para pessoas com condições de pagar e outras para aquelas que não possuem recursos para tal.

A escola luterana, trazida pelas famílias imigrantes, inicialmente, atendia as crianças da comunidade. Após um período de turbulência e perseguições, inclusive com troca de nomes das escolas ainda “alemãs” para nomes “brasileiros”, começa a buscar uma proposta de educação que viabilizasse a autossustentação financeira, pois as comunidades não conseguiam mais manter as escolas. Assim como muitas escolas de administração particular, algumas escolas evangélicas luteranas recentemente começaram a buscar uma educação baseada nos princípios da qualidade total. Esse princípio representa a proposta econômica vigente que possibilita a uma pequena parcela da sociedade, porque possui recursos financeiros, exigir um atendimento digno de clientes que entram nas lojas para comprar sapatos. Ou seja, a educação passou de processo de formação da personalidade e da construção do conhecimento voltado para uma participação cidadã na sociedade para ser uma mercadoria passível de compra.

No modelo econômico predominante atualmente, o Estado deve manter-se restrito ao controle das operações financeiras administradas pelos grandes grupos econômicos. Assim, toda a área da educação, saúde, moradia, emprego..., passa a ser de responsabilidade exclusiva de cada pessoa. A competência inclui quem é “bom” ou “boa” e exclui quem não é suficientemente “competente”. Ou seja, cabe a cada pessoa correr atrás da sua qualidade de vida que se manifesta na possibilidade de consumir.

No modelo vigente, toda a preocupação com o ser humano, suas necessidades e sonhos não são importantes. O “deus mercado” não tem coração que sente. Somente um insaciável desejo de consumir e sacrificar as vidas, sejam humanas, animais ou vegetais, enfim, todo ser existente. A destruição do meio ambiente é prova dessa fome. Assim, toda preocupação de Lutero, de encarregar o Estado a investir e manter escolas de qualidade, passa a segundo plano. O ser humano criado à imagem e semelhança de Deus não é tão importante. Toda a proposta de uma fé enraizada no contexto cultural fica relegada.

A caminho de uma conclusão desafiadora...

Após estudarmos, brevemente, a história e a contribuição de Lutero para a educação, percebemos que a sua proposta ainda se mantém na medida em que há pessoas que continuam defendendo o direito de viver, de ser e de conviver integrado a um meio ambiente. Os princípios luteranos continuam sendo testemunhados nas escolas que optam também por uma educação para as pessoas menos favorecidas e menos capazes de consumir as ideias transformadas em produtos adquiríveis em escolas-lojas administradas por pessoas técnicas e não por professores e professoras.

A resistência profética deve ser anunciada para que a liberdade oriunda da fé possa viabilizar um convívio capaz de gerar relações que provocam construções de identidade com autoestima, com desejos e sonhos que não se contentam em ver a realidade dos irmãos e irmãs em sofrimento, mas que, consciente e livremente, vão ao encontro para buscar a superação dos sinais de morte em sinais de vida. A fé oriunda de uma educação cristã gerará uma nova comunidade, onde se pode viver sem medo de ser feliz. Vamos, pois, buscá-la e vivê-la.

Quer saber mais?

AHLERT, Alvori. Modernidade: das sementes ao nascimento. Ijuí: UNIJUÍ, 1996.

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ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A universidade Medieval. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.


Este estudo teve a linguagem revista e atualizada. A proposta integra o volume 3 da Coleção Palavração denominado “Graça e Fé: temperos para a vida”, publicado em 2003 pelo Departamento Nacional para Assuntos da Juventude da IECLB – DNAJ, sob a coordenação de Cláudio Giovani Becker e impresso por Contexto Gráfica e Editora (ISBN 85-89000-14-1).


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