As pessoas continuam saindo da Somália, na África, aos milhares, fugindo da seca e da guerra civil. O destino é o país vizinho, Quênia, e seus campos de refugiados, dos quais Dadaab – que congrega os acampamentos de Dagahaley, Ifo e Hagadera – criado em 1991, é o maior.
Em grupos, os refugiados caminham até quatro semanas, sem água e pouquíssima comida. Na jornada, enfrentam mais violência, abusos e situações cruéis – como as mães que precisam escolher um dos filhos para ficar no caminho, pois não têm como carregar todos.
Ao chegar, encontram um número enorme de pessoas que já estão esperando e que também precisam ser acolhidos. É preciso entrar na fila. É preciso esperar ainda mais.
Nesse cenário difícil, o trabalho de organizações de ajuda humanitária, como o Departamento para o Serviço Mundial (DSM) da Federação Luterana Mundial (FLM), faz diferença. O correspondente da rede norte-americana ACB, Ben Knight, em uma de suas reportagens no local, disse que ser recebido pela coordenadora de Dagahaley, Regina Muchai, é uma benção. Ela, que trabalha com o DSM, atende com calma e compaixão a todos da fila.
O DSM da FLM tem equipes que trabalham há alguns anos nos principais complexos de refugiados do Quênia – Dadaab e Kakuma – . Atualmente, tem a tarefa de administrar os dois locais. Outras equipes trabalham na Etiópia e Djibuti, também com refugiados somalis.
O coordenador de Programa do DSM da FLM é o brasileiro Rudelmar Bueno de Faria. Ele conta sobre a situação em Dadaab e sobre o trabalho realizado.
Fundação Luterana de Diaconia/ACT – Qual o cenário que as equipes do Serviço Mundial da FLM, assim como as outras organizações de ajuda humanitária, encontram na região de Dadaab?
Rudelmar Bueno de Faria/Federação Luterana Mundial/ACT – É algo nunca visto, todos têm afirmado isso. Milhares de pessoas vindas da Somália, desesperadas, andando durante três ou quatro semanas, na esperança de encontrar comida no Quênia e escapar da guerra civil. A situação é caótica. O complexo de Dadaab, que congrega os acampamentos de Dagahaley, Ifo e Hagadera, foi construído para atender 90 mil refugiados. Agora, a população chega já a quase 400 mil pessoas. A cada dia, mais mil pessoas surgem dos arbustos, exaustas de semanas de caminhada e pouquíssima comida. Registramos, algumas vezes, a chegada de 1.500 pessoas num único dia.
Para aqueles que chegam, o melhor que podem esperar é receber uma pulseira que lhes dá direito à ração alimentar de emergência e a esperança de que em três ou quatro semanas possam encontrar um espaço em uma barraca ou tenda.
FLD – Qual a expectativa da continuidade da chegada de refugiados ao acampamento de refugiados?
Bueno de Faria – Mesmo que o afluxo de refugiados para Dadaab continue, percebe-se que os números têm sido menores nos últimos dias. Como ainda não sabemos as razões disso, não é possível dizer se é uma redução temporária ou uma tendência. Pode ser que mais ajuda foi entregue dentro da Somália, e pode ser também que a maioria daqueles que conseguiu passar pelos obstáculos ou que teve a força para fugir chegou ao campo de refugiados. No entanto, não é improvável que se contabilize 20 mil novos refugiados em Dadaab até o final de agosto.
FLD – E como resolver a questão da limitação de espaço?
Bueno de Faria – Estamos trabalhando de forma urgente no levantamento e demarcação de lotes na extensão do campo Ifo, chamada de Ifo 3, e em um novo campo, Kambi Ossi. O compromisso que temos como DSM/ FLM é aprontar um mínimo de 250 lotes (pontos de colocação de barracas), nos dois locais, diariamente. Até agora mais de 4 mil lotes foram pesquisados e demarcados em Ifo 3 e Ossi Kambi, onde serão assentados 20 mil refugiados.
FLD – Quais outras ações são urgentes?
Bueno de Faria – A falta de água sempre foi um problema, e agora está muito pior. Próximo de Dadaab, projetos de água, como sistemas de água e perfuração de poços artesianos, ajudaram a aliviar o stress na maior parte das comunidades vizinhas e, em certa medida, ao longo de algumas das rotas de chegada dos refugiados. A FLM/DSM realizou a abertura de poços e reparos no sistema de água. O governo queniano também está trabalhando com projetos de água nessa área.
Outra questão é a degradação ambiental. As comunidades próximas aos campos de refugiados estão preocupadas, já que o corte contínuo de árvores para lenha e construção de abrigos está agravando a situação ambiental. Além disso, podem perder seus meios de vida, devido à seca e à necessidade de dividir o pasto dos seus animais com animais trazidos por refugiados.
Aliás, temos salientado, de forma veemente, a necessidade de incorporar o tema da reabilitação ambiental nos planos de resposta humanitária.
FLD – E sobre questões de segurança?
Bueno de Faria – É um outro ponto crítico. Temos ouvido relatos graves de deterioração da segurança entre a fronteira da Somália e o Quênia, no percurso até Dadaab. Isto é principalmente atribuído a desertores das forças do Governo Federal de Transição da Somália, e em menor grau, às milícias do antigo regime do al-Shabaab ou seus desertores.
Foram reportados muitos casos de violência contra mulheres, na Somália, entre a fronteira e Dadaab, nos arredores dos campos e alguns dentro dos campos, nessa ordem. A FLM tem grupos de segurança e equipes de patrulha que recebem as denúncias. Nossos assistentes sociais também identificam casos e relatos.
Na periferia dos campos de refugiados, a segurança também é um problema, especialmente no que se refere à proteção das mulheres. Estamos organizando e treinando pessoas entre os recém-chegados para integrarem o que chamamos de equipes de Segurança e Paz Comunitárias (ESPCs). Atualmente, dispomos de cerca de 320 ESPCs que fornecem segurança nos três campos.
FLD – Qual outra área a FLM considera estratégica para o atendimento aos refugiados?
Bueno de Faria – Sem dúvida, a Educação. Já era uma lacuna e essa lacuna está aumentando à medida que mais novos refugiados chegam – muitos deles crianças. No momento não há nenhum programa de educação para os recém-chegados.
FLD – Mas educação como ajuda humanitária?
Bueno de Faria – Sim. Historicamente, a educação era vista como parte do trabalho de desenvolvimento de longo prazo, em vez de uma intervenção necessária em situações de emergência. A ajuda humanitária normalmente envolvia o fornecimento de comida, abrigo, água e saneamento e saúde.
No entanto, foi claramente estabelecido que em situações de emergência, educação de qualidade fornece proteção física, psicossocial e cognitiva, que pode ser tanto para a sustentação de vida como para salvar vidas. Educação atenua o impacto psicossocial do conflito e dos desastres, dando uma sensação de normalidade, estabilidade, estrutura e esperança para o futuro. Quando uma criança está em um ambiente de aprendizagem seguro, ele ou ela também corre menor risco de ser sexualmente ou economicamente explorados ou ficar exposto a outros perigos. Além disso, todos nós temos direito à educação, as pessoas afetadas por situações de emergência não são exceção.
FLD – A FLM considera essa prioridade em Dadaab?
Bueno de Faria – Já estamos trabalhando com educação primária em Hagadera e já manifestamos interesse em trabalhar com educação em Kambi Ossi (um dos novos campos). A FLM solicitou recentemente ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para que possamos começar com as escolas de emergência em Kambi Ossi e está ainda aguardando resposta do ACNUR e da UNICEF sobre este assunto. Além disso, a FLM/DSM também trabalha com educação no campo de Kakuma, no Quênia, e em Ali Addeh, em Djibuti, onde a necessidade de reforçar educação pré-escolar é particularmente elevada no momento.
Fotos: Paul Jeffrey, Barb Summers e Laurie Macgregor. São fotógrafos e jornalistas que trabalham em organizações membro da Aliança ACT, com atuação mundial em ajuda humanitária e desenvolvimento. A Fundação Luterana de Diaconia e a Federação Luterana Mundial também fazem parte de ACT.
Texto: Suzana Buchweitz - FLD