Prédica: Êxodo 24.3-11
Leituras: 1 Coríntios 10.16-17(18-21) e Marcos 14.12-26
Autor: Elaine Gleci Neuenfeldt
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 20/04/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Quaresma
Êxodo? De novo ou... ainda esse tema?
Tanto o livro quanto o tema do êxodo foram, sem dúvida, muito trabalhados na teologia e na releitura bíblica na América Latina. O êxodo é lido como momento fundamental do povo de Deus, como acontecimento fundante. Deus se revela e escolhe o seu povo. Deus desce e caminha com seu povo no processo de libertação. Essa forma de ler o êxodo foi e segue sendo fonte de iluminação e animação nas comunidades e grupos eclesiais do Brasil e da América Latina2. Apesar de estarmos envolvidos (e muitas vezes até fascinados!) com a onda neoliberal de relativizar, de individualizar (leia-se: fragmentar) e com isso esvaziar a nossa luta por liberdade, ainda fica o desafio de lermos e relermos o êxodo diante desses novos paradigmas. Como continuar falando que Deus caminha com seu povo, liberta seu povo se o que experimentamos até agora é mais e mais jugo? Como falar em aliança de Deus com o seu povo se os sinais concretos dessa aliança que tanto esperávamos e pregávamos, quando chegaram, foram tão pequenos e a situação está cada vez pior? Enfim, como falar de Deus libertador, de processo de libertação e motivar a esperança quando estamos desesperança-dos/desesperados diante desse sistema que se insinua como livre, mas que nos prende nas velhas redes?
Esse tema não é novo...
O tema do êxodo foi trabalhado ao longo da história do povo de Israel e retomado em diferentes contextos sócio-políticos. Como acontecimento fundante o êxodo manteve-se vivo justamente porque com ele se retomava, diante de cada crise ou dificuldade que o povo enfrentava, a opção que Deus fez e o compromisso mútuo entre o povo e Deus (aliança). Essas retomadas do relato marcaram o texto final do livro e demonstram também como a cada situação nova o povo tem a liberdade de reler e interpretar a revelação de Deus na história.
Podemos destacar pelo menos quatro momento básicos onde o relato do êxodo foi tomado como fonte de inspiração e reflexão na história do povo de Israel1. Num primeiro momento, o acontecimento foi relatado pelo grupo que passou pela experiência. É a primeira tentativa de fixar na memória do grupo heterogêneo que viveu a experiência. Num segundo momento, o relato vem responder a uma necessidade de preservar a memória diante das diferentes experiências que vão surgindo com o povo que está se formando. É um momento de levantes camponeses contra o poderio das cidades-estado cananéias (tributo). O êxodo busca fixar a identidade de Deus e do povo e responder a pergunta pela relação de um com o outro. O grupo que veio do Egito traz à memória do povo que Deus é Aquele que nos tirou da terra do Egito. Deus não está do lado do rei/faraó opressor, mas com sua mão interfere na história promovendo a liberdade. O terceiro momento de reprodução do relato se dá com a monarquia em Israel. É nessa época que o êxodo vai ser usado como identidade nacional. A experiência do povo de Israel contra outra nação, o Egito, vai dar a pauta para resistir contra as nações vizinhas, que ameaçam o estado que está em processo de consolidação. (É neste período que devemos situar as fontes literária javista e eloísta.) O quarto momento deve ser buscado sob o exílio do povo de Israel. Então se retoma o êxodo para assinalar o caráter religioso da identidade do povo que vivia desarraigado no exílio. Deus é aquele que se manifesta no Sinai, e pertence ao seu povo quem reconhece sua divindade, se submete a seus preceitos e a ele presta culto.
E a história continua...
Como levantava no início, o tema do êxodo teve muito destaque na releitura bíblica e na teologia da libertação na América Latina2. A partir da redescoberta do êxodo como experiência de libertação de um grupo reduzido de trabalhadores/as forçados, sob o regime de escravidão do faraó, muitos grupos de trabalhadoras e trabalhadores se viram identificados e refletidos no relato bíblico. Com isso, o êxodo iluminou a luta contra o sistema de opressão. Animou comunidades a envolverem-se no compromisso de construir sinais concretos de solidariedade, de justiça em nosso meio.
Apesar de toda a luta e de tanta garra, o faraó seguia revivendo. Aquela experiência do grupo que saiu do Egito e enfrentou o faraó, onde este faz de conta que deixa sair, mas se arrepende, é conhecida também hoje. E logo o povo pensa: Ufa! Conseguimos! Então olha para trás e lá vêm os carros de guerra em perseguição. Aquela sensação de que a besta tem muitas vidas e ressurge, apesar dos golpes que leva, é uma imagem que me parece exemplificar a necessidade de retomar o êxodo como experiência fundamental na vida de fé do povo hoje.
Vivemos momentos de cansaço nas comunidades. As lideranças estão cansadas, muitas já desanimaram por completo, outras buscam outra fonte de água para superar essa sede terrível, nesse deserto que parece não ter mais fim. Compromisso, luta, transformação são palavras que secaram de tanto espremer, de tanto esfregar nessa realidade dura e áspera que vivemos. No entanto, são palavras tão necessárias no caminho que queremos percorrer, mas em que não sabemos mais ao certo por onde seguir. Algumas vezes, o culto, a celebração comunitária se transforma em momento de insistir com aquelas pessoas que ainda buscam água para matar essa sede de esperança que a passagem pelo deserto provoca. Mas a sede é maior e somente a água não chega para saciar. É sede de algo mais... de esperança, de motivação, de afeto, de carinho, de vida em comunidade mesmo... As prédicas carregadas de chamados ao compromisso com a luta, os imperativos, têm se mostrado cansativas e repetitivas. De forma alguma quero propor uma pregação tão solta e liberal, que o compromisso não esteja presente. O que quero destacar é a necessidade de resgatar a linguagem simbólica, os símbolos do texto e da vida, os gestos, a corporalidade que o texto evoca; perguntar pela experiência humana detrás do escrito, pêlos sentimentos expressados, pelas emoções. O que significa, no nosso caso, perguntar pela experiência de ver Deus, de festejar ou comer na Sua presença, de ouvir Sua voz. O relato deixa algumas pistas para resgatar essa perspectiva. Proponho algumas ideias. Com certeza, existem outras possibilidades que você pode desta¬car, de acordo com a sua experiência e realidade na comunidade ou grupo com o qual você trabalha.
A experiência com Deus...
Neste sentido, queria propor que celebrássemos esta Quinta-Feira da Paixão motivadas e motivados por essa busca de novos referenciais, novos modelos ou paradigmas, como se os tem chamado. Buscar a experiência com Deus na vida das pessoas, no cotidiano é o tema que queria destacar. Na Paixão se resgata a memória desse Deus que desce e sofre junto com o povo. Desse Deus tão solidário, que sente a dor das pessoas. Deus que, em Jesus Cristo, se manifesta, se faz presença real.
Proponho trabalhar a pregação a partir de três pontos ou temas que o texto de Êx 24.3-113 pode evocar:
* A experiência com Deus c comunitária: um grupo de pessoas caminha para a montanha na presença de Deus.
É um grupo de pessoas que se aproxima da montanha. Assim como em Êx 19.13b,17, mais pessoas têm contato com Deus. Outra versão está em 19.9,19, onde Moisés sozinho conversa com Deus. Segundo Pixley4, esta perspectiva que prioriza Moisés é a que domina em Israel, em período posterior, por influência dos que detêm o poder político. Ela dá às leis de Deus uma autoridade inques¬tionavelmente superior à dos anciãos, sacerdotes e reis. Mas cabe ressaltar que há tradições paralelas que informam sobre um grupo que tem contato com o sagrado. Não é a uma pessoa sozinha, não é a um ser superior, mas é a algumas pessoas que Deus se revela. Também não é a um grupo especial, mas a pessoas tiradas do meio do povo.
Sugiro que se resgate o aspecto comunitário no contato com o sagrado. Deus dá suas palavras e seus estatutos a um grupo de pessoas. Não permite a apropriação do saber e do sagrado por uma pessoa. A coletividade ou a comunidade é o espaço de vivenciar e experimentar o divino. Num mundo em que o individualismo é a palavra de ordem, onde a privatização é a norma, é fundamental o resgate da vivência comunitária. De acordo com o texto de Êx 24, para sentir a presença de Deus é necessário aproximar-se em grupo, em equipe. Não se descarta a liderança de Moisés. Ele atua como protagonista no ritual da leitura da lei, no entanto, não é um exercício de liderança tipo estrela, mas que divide suas funções com outras pessoas. É interessante notar que no ritual do sangue (que em Êx 29.19-21 é usado sob Aarão, institucionalizando a sua função de sacerdote), este é aspergido sobre todo o povo. Povo e sacerdotes, povo e líderes são consagrados. O povo e sua liderança participam da aliança, são comprometidos e ordenados como partícipes ativos do encontro com Deus e na preservação da vocação de pertencer a Deus5. Os jovens têm atuação destacada e participam da cena. Não são meros espectadores, mas se integram na realização do encontro com Deus. Outro detalhe que chama a atenção é a insistência de usar verbos que significam caminhar, subir, aproximar, enviar. Todos dão a ideia de caminhada, de processo. A experiência de encontrar-se com Deus é vivida como processo, com movimentos de ir ao encontro, de esperar, pois Deus também se movimenta em direção ao povo/grupo. Não é algo estático, parado. Como podemos guardar memória do êxodo como processo da libertação e não como a liberdade já conquistada? Que implicações tem essa experiência para a comunidade? Que significa aproximar-se de Deus hoje? Como podemos identificar essa presença real de Deus no nosso processo de ser comunidade? Estas são algumas perguntas que poderiam orientar esse passo.
* A experiência com Deus implica compromissos mútuos: o povo todo responde a uma só voz: Tudo o que falou (palavra), faremos (ação).6
O povo é sujeito no encontro com Deus e como tal responde a uma só voz: Tudo o que falou o Senhor, faremos. Essa declaração solene de compromisso ocorre duas vezes, denotando a importância de tais palavras. O povo tem uma só voz no que se refere a assumir o compromisso. Esse compromisso é mútuo, entre Deus e povo, de acordo com o texto imediatamente anterior: Êx 23.21-22, onde Deus coloca a sua responsabilidade: Eu serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários. Ou seja, Deus tem responsabilidade para com o povo. E o povo, conhecedor desta responsabilidade de Deus, se propõe a praticar. Numa perspectiva de atualização poderíamos destacar a tensão constru¬tiva entre teoria e prática que evoca esse escutar e fazer — central no compromisso. O escutar tem a ver com saber, conhecer; tem a ver com a teoria. O fazer é claramente a prática desse saber. Esse é o resumo do compromisso. E esse é o maior desafio! A coerência entre teoria e prática, entre fé e vida segue sendo desafio para líderes, pastoras, pastores e comunidades. Como viver no dia-a-dia essa experiência de sentir a presença real de Deus em nosso meio? Como sentir Deus e atuar de acordo com as suas palavras na casa, na cozinha, com as crianças, com o esposo, com a esposa, no lugar de trabalho? Como resistir a esse modelo de sociedade que nos fragmenta como pessoas, que divide o nosso corpo, nossos desejos e nossas necessidades? Como viver integralmente, desde a nossa corporalidade, essa experiência com Deus? Como estabelecer critérios para discernir se o que estamos ouvindo é realmente o que Deus está falando?
* A experiência com Deus é... ver Deus!
Há uma tradição, em Êx 33.20, que fala da impossibilidade de qualquer ser humano ver Deus: ao ver a face de Deus o ser humano morrerá. No entanto, aqui no nosso texto, em Êx 24.3-11, esse grupo de pessoas vê a Deus e Sua mão não se estendeu sobre eles. O grupo vê Deus, sob cujos pés havia um chão como de safira. Em Ez l e Is 6 também temos descrições cheias de símbolos, de imagens maravilhosas para falar do contato com Deus. O verbo usado no hebraico para ver no v. 10 significa ver qualquer coisa, e no v. 11 significa a visão do profeta ou do vidente. Reflete os sentimentos dessa experiência: ver como ato de pôr a vista sobre algo, mas também como a experiência extática do profeta. A experiência de ver Deus, de ter contato com ele, comer e beber em sua presença é grande e maravilhosa demais para que possa ser expressa só com palavras. É necessário recorrer aos símbolos, às imagens, às forças e manifestações da natureza para explicar o que se viu, o que se viveu. É um Deus que é próximo demais... junto demais! Deixa-se ver, festeja, mas ao mesmo tempo existe algo tão fascinante, tão extraordinário que o chão que pisa é como safira, que brilha, que se parece com o céu! A experiência com Deus provoca isso: falta de palavras para expressar os sentimentos. As palavras reduzem os significados, os sentimentos sempre são maiores, mais intensos. Por que não resgatar esses sentimentos que o texto preserva em palavras, em símbolos e em imagens? Temos necessidade de ter que explicar racionalmente tudo: de ter que dizer em palavras o que não é possível verbalizar. Movidos pela preocupação de que as pessoas possam interpretar de forma mágica os textos e prestar mais atenção nesse detalhe da teofania, buscamos racionalizar a experiência com explicações como: é fenômeno vulcânico, é manifestação da natureza (raio, tormenta, etc.). Talvez o chamado ao compromisso, que já está tão ressecado e desbotado, pois se restringe a alguns chavões, pudesse ser renovado ao incorporar (colocar dentro do corpo) novos modelos ou paradigmas como os propostos a partir dessa passagem. Sugiro que deixemos nossas emoções fluir com o texto, que a narra¬tiva colorida pela safira, pelo brilho, pelo céu esteja presente na nossa pregação. Que as cores, os sabores da comida e da bebida, as imagens, os símbolos possam ressignificar o processo de luta, de transformação, de compromisso que o êxodo ainda motiva nas nossas comunidades.
Bibliografia:
CHOURAQUI, André. Nomes (Êxodo). Rio de Janeiro : Imago, 1996.
FRETHEIM, Terence. Exodus. Louisville : John Knox, 1991.
PIXLEY, Jorge. Êxodo : una lectura evangélica y popular. México : Casa Unida de
Publicaciones, 1983.
Notas
1 Para todo esse ponto das releituras do êxodo cf. o comentário de Jorge PIXLEY, Êxodo, São Paulo : Paulinas, 1987, p. 10-12.
2 Estou consciente de que é uma análise parcial. Não ignoro que existem outras ênfases e estudos do êxodo; sem embargo, falo a partir de minha experiência e opção teológica.
3 Este texto já foi trabalhado em Proclamar Libertação, vol. XVI, p. 224-227. Sugiro conferir para buscar subsídios exegéticos.
4 Jorge PIXLEY, op. cit, p. 200.
5 T. FRETHEIM, Exodus, p. 257.
6 André CHOURAQUI, Nomes, p. 291.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia