Prédica: Salmo 22.1-19
Leituras: Mateus 27.33-50 e 2 Coríntios 5.19-21
Autora: Mara Sandra Parlow
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 22/04/2011
Proclamar Libertação - Volume: XXXV
1. Introdução
(...) Ó mistério, mistério, suspenso no madeiro o corpo humano de Deus. (...) 1
Silêncio e perplexidade são atitudes que adotamos diante de situações de extremo sofrimento.
Pois... Que emoção poderá conter o coração da pessoa crente no dia em que se notabiliza a morte de Jesus Cristo, nosso Mestre, Senhor e Salvador? Que arrepios percorrerão nosso corpo falível ao percebermos a realidade do pecado que festeja seu triunfo ao pendurar criminosamente o corpo humano de Deus à cruz?
Ao mesmo tempo, que calor acende nosso ser nessa ocasião em que o significado da cruz aponta para a oferta ao mundo da chance definitiva e contínua de reinícios? Que esperança experimentamos diante do misterioso novo pacto de reconciliação no madeiro da Sexta-feira Santa?
A morte de Jesus foi crime humano, ação de oposição a Deus. Foi obra do pecado. E pior: na crucificação, o pecado é jogado em cima de Jesus e o faz vítima. Simultaneamente, porém, nesse ato fundante para a fé, efetiva-se o amor de Deus na reconciliação radical, para a qual a mesma cruz aponta.
Assim, a reunião comunitária na Sexta-feira Santa primará por atitudes celebrativas de introspecção e contrição. Quem sabe, sejam oferecidas experiências meditativas mais sinestésicas do que convencionalmente discursivas, vivenciadas através da corporeidade colocada em ação no evento cúltico.
A Sexta-feira da Paixão é situação de muito mais silêncio do que falas... Momento de constatação sincera de nossa fraqueza humana e da opção de Deus pela força sub contrario na fragilidade. É momento de referir o desvelamento do amor incondicional de Deus, por nós, no corpo sofredor. Aquele corpo que grita “... por que me desamparaste?”, mas que não desiste de nossos corpos, que não nos renega, mesmo diante da tentação do sistema que o engana, suborna, questiona e ridiculariza para fazê-lo deixar de ser humilde, deixar de estar “lá embaixo”, deixar de estar aí para os outros, deixar de estar aí para nós.
2. Observações exegéticas
Os textos a serem tramados para a construção da reflexão, no evento Sexta-feira Santa, sugerem o Salmo 22 como aquele que completa e absorve a circularidade hermenêutica.
Esse Salmo é um brado de dor e de tormento de quem se encontra debaixo de provação e sofrimento. Todos/as nós, quando estamos em angústia e aflição, podemos nos identificar com o conteúdo dessa oração.
O Salmo 22, cujo autor é o rei Davi, é uma das expressões mais profundas do sofrimento nas orações bíblicas. É composto de duas partes: (1) lamentação individual (v. 1- 22) e (2) cântico de ação de graças (v. 23-31).
Na delimitação a que nos propomos (v. 1-19), o salmista, abandonado e solitário em sua dor e privado da presença divina, apela ao Eterno, lembrando-lhe as promessas relativas aos justos. Depois de relatar seus sofrimentos morais e espirituais, alude, em sucessão trágica, às dores físicas, aos tormentos corporais e ao terror da morte.
No extremo da dor – que não deverá ser reduzida, tampouco enaltecida em “subjetivismos”, pois que, no salmo, está impressa na corporeidade (ossos desconjuntados, coração feito cera, vigor extinto, língua seca, vestes sacadas e repartidas) –, destaca-se a força das imagens “materiais” do sofrimento no corpo, bem conhecido de Deus. Corpo por Deus cuidado desde a sua geração no ventre materno (v. 9-10), contudo suplicantemente orante.
O Salmo 22 refere-se ao próprio rei Davi, que lamenta a sua sorte, não sendo, portanto, uma profecia, mas originário de um fato histórico.
Por seu turno, o evangelista Mateus registra, no relato da crucificação, a atitude orante de Jesus ao proferir as palavras do Salmo 22. Em extrema agonia, Jesus brada o que sabe de cor (= aquilo que está gravado no mais íntimo de si e que “sabe” no coração). É certo que o conjunto de preces que compõem o Salmo 22 fazia parte do repertório educativo-catequético judaico, trazido à tona exatamente nesse momento-limite na mente do homem de Nazaré.
No grito que faz parte da cena da crucificação, após rejeitar a bebida que possivelmente lhe traria alívio, mas que também materializava a tentação de ter abrandado seu sofrimento pelos métodos de quem causava a dor, há um encontro, uma fusão da dor do mundo e da resistência divina. O grito desamparado de Jesus sai de sua boca, mas para além de sua concreta humanidade (“o corpo humano de Deus”) é igualmente a expressão do gemido da humanidade já carente de Deus.
Vicariamente, Jesus Cristo traduz com as palavras do salmista o sentimento de frustração e de confusão predominante em torno do evento de sua crucificação.
Com esse aspecto, dentre outros, tramada está a perícope de 2 Coríntios, também prevista para esta Sexta-feira da Paixão, na qual Paulo sustenta seu testemunho e serviço no fato de que Deus está absolutamente implicado com nossa humanidade – bem concreta, bem corporal, imperfeita e finita –, em Cristo, na cruz. Deus subsistia em Cristo na fraqueza – totalmente identificado com a obra redentora fundamental.
A sugestão que se faz, portanto, para a reflexão no encontro comunitário nesta Sexta-feira Santa é que a ênfase interpretativa se coloque no sofrimento de Jesus Cristo, provocado pelo pecado humano de desprezo ao projeto de reino de Deus e expresso no corpo falível. Solicita-se que não seja aliviada (metaforicamente, como que com uma “esponja com vinagre”) a consternação do corpo de Cristo na subjetivação apressada da agonia de Jesus.
3. Meditação
(...) E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu,
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo, amor. 2
Foi só depois da ressurreição que os discípulos e as discípulas principiaram a atinar sobre o sentido da morte de Jesus. Isso sabemos. Anteriormente, essa morte não lhes parecia senão um escândalo e um absurdo. O tipo de morte por que Jesus passara manifestava não ser ele o Messias. Ninguém esperava um Messias sofredor. E que qualidade de sofrimento!
É perceptível nos escritos bíblicos que discípulas e discípulos levaram tempo para compreender na morte de Jesus o seu caráter de acontecimento salvífico. Mesmo depois da Páscoa, teriam considerado simplesmente um fracasso, martírio do justo, rejeição (e aí muito aplicada ao próprio discipulado). A princípio, a cruz foi o assassinato do Salvador e de seu projeto de salvação.
Na Sexta-feira Santa, essa sensação vem à tona. Compartilhamos o desamparo das primeiras testemunhas cristãs na suposta “ausência” de Deus.
Também sentimos no corpo uma tristeza grande, uma dor no peito, um sentimento de perda dos mais profundos.
Custa-nos, assim como aos primeiros seguidores e seguidoras, crer que a morte de Jesus é libertação. Admitamos isso e coloquemo-nos, na Sexta-feira da Paixão, em atitude penitencial e contrita.
É essa aceitação – da dor do corpo de Jesus, ressoando em nossos próprios corpos – que abrirá nosso ser humano à realidade pascal, ao evento salvífico por completo.
Nos dias de hoje, vários atalhos para os sofrimentos do corpo3 são oferecidos pelo sistema, assim como foi oferecido a Jesus, na agonia da cruz, um “refresco estupefaciente” (= anestésico).
Na “corpolatria” imperante, recorre-se demasiadamente à idealização do corpo e à negação da dor. Falamos aqui, inclusive, das dores “d’alma” (= centro de/do ser). Na “loucura da felicidade” a qualquer preço, poucas são as pessoas que olham com coragem para o sofrimento. Há uma busca intensa à alegria imediata e consumida em “cápsulas”. Recorrência à negação da cruz, ainda em nossos dias e entre nós?
No Salmo 22, Davi enfrenta o que realmente sente quando escreve: “Meu Deus! Eu clamo de dia, mas não respondes (…) Mas eu sou verme, e não um ser humano (…) Como leão voraz rugindo, escancaram a boca contra mim (…) e todos os meus ossos estão desconjuntados (…) e a minha língua gruda no céu da boca; deixaste-me no pó, à beira da morte” (…)
Esse escrito de sincero pedido de alento em Deus modela a fidelidade, um tipo de fé mais profundo e misterioso, em que, ao contrário dos momentos de proximidade, quando as orações são atendidas de forma inequívoca e Deus parece íntimo e atencioso, experimentamos dias sofridos, em que Deus se cala, em que nada funciona de acordo com as fórmulas e promessas, inclusive as bíblicas, e essas nos parecem descaradamente falsas (= realidade de/da CRUZ = “suspenso no madeiro o corpo humano de Deus” = abandono, sofrimento, angústia).
Assim, exatamente olhando para a cruz e para o Crucificado (evidências de morte e do aparente abandono), um dos aspectos da fé é aprender a confiar que, além dos limites do desamparo e da escuridão, Deus reina e não nos abandonou.
Inspirando-nos em Davi, creio que devemos cultivar um relacionamento com Deus que tenha a mesma abertura. Não devemos esconder nem a nossa falta de fé, confessando o nosso temor mais íntimo de que suas promessas não se cumpram em nossas vidas e, ao mesmo tempo, sendo capazes de transcender o sofrimento, reconhecendo o seu mando sobre toda forma de vida e seu amor para conosco (“Expondo-te como um fruto nesta árvore de execração o que dizes é amor, amor do corpo, amor”).
Deus nos conhece por inteiro e aproximou-se de nós radicalmente na circunstância de “corpo humano”, experimentado até a “última gota” na morte de cruz.
Portanto, mesmo que em atitude penitente por ainda não nos entregarmos à realidade salvífica da cruz indo depressa demais ao domingo da Páscoa, podemos expor em oração e atitudes, como fez o salmista, o que vai em nosso corpo: ser inteiro e inteiramente nas mãos de Deus.
4. Imagens para o ato celebrativo/prédica
Tanto o Salmo 22 como o relato do suplício e da crucificação de Jesus no Evangelho de Mateus contêm fortes imagens do corpo4 em aflição e de aspectos ligados à corporeidade desorganizada pela situação de sofrimento.
Sugere-se que essas figuras sejam exploradas e trazidas à reflexão ao longo da ocasião celebrativa na Sexta-feira Santa:
*Mãos lavadas: a atitude de Pilatos pode ser referida celebrativamente no momento da confissão: participamos do pecado da negação do projeto divino para o mundo quando “lavamos nossas mãos” diante de situações em que deveríamos tomar posição.
* Gostos e desgostos: ao refletirmos sobre nossos pesares e sofrimentos cotidianos, na mirada à cruz, pode-se ofertar à comunidade algo amargo para degustar (cravos-da-índia, por exemplo).
Também se pode sugerir que as pessoas experimentem suco de uva bem ácido (azedo), simbolizando as “anestesias” que o sistema oferece para “aliviar nossas dores e sofrimentos” ou para nos desviar das “cruzes” que nós mesmos/as implantamos na vida de nosso próximo.
* Despojamento de vestes: o altar pode ser desnudado, colocando-se sobre ele panos de cor preta ou simplesmente nada.
* Brados e silêncios: somos demasiadamente acostumados ao barulho. Nesse dia de contrição, nossa atitude reflexiva pode estar envolta em silêncio.
Silêncio que constrange, que afeta, que mexe... mais do que os “sons nossos de cada dia”.
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida comunitária:
Celebrante: O nosso Deus caminha conosco.
Todos/as: Está no meio de nós. Bendito seja nosso Deus!
C: Desde os tempos mais antigos, passando pela cruz e até o momento presente
Todos/as: Tem guiado nossos passos e as obras de nossas mãos.
C: Jesus Cristo, o motivo da nossa fé, é o próprio Deus que se manifesta na cruz e no poder do Espírito Santo.
Todos/as: Nos reunimos como povo,
C: por nosso Deus convocado, para celebrar comunhão e afirmar a vida verdadeira.
Todos/as: Não estamos sós!
Confissão de pecados:
Celebrante: Deus Todo-Poderoso! Perdoa de tua igreja sua riqueza frente aos pobres, seu medo ante os injustos, sua covardia frente à opressão. Perdoa-nos enquanto teus filhos e tuas filhas: nossa falta de confiança em ti, nossa falta de esperança em teu reino, nossa falta de fé em tua presença, nossa falta de confiança em tua misericórdia.
Todos/as: Restabelece-nos na aliança com teu povo; leva-nos a um arrependimento verdadeiro; ensina-nos a aceitar o sacrifício redentor de Cristo; dá-nos fortaleza pelo Espírito Santo. Quebra-nos quando somos orgulhosos e orgulhosas. Fortalece-nos quando somos fracos. Faze-nos humildes quando confiamos estritamente em nós mesmos. Dá-nos um nome quando nos encontramos
perdidos. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
Anúncio da graça:
Cristo é nossa paz.
Aos que estavam separados, Ele os uniu. Cristo rompe as barreiras de separação com sua vida, com seus ensinamentos e com sua morte, assim que: Voltem-se a Ele e creiam, a reconciliação lhes tem sido anunciada. Vivamos como povo reconciliado! Amém.
Kyrie:
Pa: Pela paz no mundo inteiro, por quem sofre dores, oremos ao Senhor:
C: Tem, Senhor, piedade! (3x)
Pa: Por quem sofre desprezo e perseguição por causa do seu comprometimento com o anúncio do evangelho, oremos ao Senhor:
C: Tem, Senhor, piedade ...
Pa: Por essa comunidade e por todas as pessoas que aqui oferecem sua adoração e buscam entusiasmo ao seu serviço em favor do próximo, oremos ao Senhor:
C: Tem, Senhor, piedade ...
Pa: Para sermos libertos de discórdias, dúvidas e competição que nega a fragilidade, oremos ao Senhor:
C: Tem, Senhor, piedade ...
Pa: Por graça, socorre-nos, Senhor:
C: Amém.
Intercessões:
(1. Celebrante; 2. Comunidade)
1 – Oremos ao Senhor pela paz que vem do céu:
2 – Faze com que a paz se realize através da tua compaixão.
1 – Oremos por paciência:
2 – Concede paciência em meio a todas as aflições.
1 – Oremos pelas pessoas que perderam pessoas queridas:
2 – Concede-lhes amparo e consolo em ti.
1 – Oremos pelas pessoas que governam:
2 – Concede-lhes sabedoria e o temor do Senhor.
1 – Oremos pelas pessoas que em nossa comunidade têm responsabilidades específicas:
2 – Concede disposição para servir e paciência para persistir.
1 – Acolhe os nossos pedidos e agradecimentos, incluindo aqueles que estão silenciados.
2 – Senhor, que se cumpram a tua vontade e o teu poder. Amém.
Pai-Nosso (em versos) ...
Se em minha vida não atuo como filho e filha de Deus, fechando meu coração ao amor, será inútil dizer:
Pai nosso.
Se os meus valores são representados simplesmente pelos bens materiais terrenos, será inútil dizer:
Que estás no céu.
Se penso apenas em ser cristão por medo, superstição ou comodismo, será inútil dizer:
Santificado seja o teu nome.
Se acho tão sedutora a vida vazia, cheia de supérfluos e futilidades, será inútil dizer:
Venha a nós o teu reino.
Se no fundo o que eu quero mesmo é que todos os meus desejos se realizem, será inútil dizer:
Seja feita a tua vontade.
Se prefiro acumular riquezas, desprezando a vida e meus irmãos que passam fome, será inútil dizer:
O pão nosso de cada dia nos dá hoje
Se não me importo em ferir, injustiçar, oprimir e magoar, será inútil dizer:
Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.
Se escolho sempre o caminho mais fácil, que nem sempre é o caminho do Cristo, será inútil dizer:
Não nos deixes cair em tentação.
Se por minha vontade procuro somente os prazeres materiais e tudo o que é danoso me seduz, é inútil dizer:
Livra-nos do mal.
Se sabendo que sou assim, limitado e falho, continuo me omitindo e nada faço para repartir, para melhorar a vida no mundo e para servir, será inútil dizer:
Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre.
Se desconfio do poder de Deus, então será inútil dizer:
Amém.
Notas:
1. PRADO, Adélia. Festa do corpo de Deus. In: Poesia Reunida, p. 279.
2. PRADO, Adélia. Festa do corpo de Deus. In: Poesia reunida, p. 279.
3.Conforme Hugo ASSMANN, para fundamentar críticas radicais ao mito do autômato benfazejo mercado e para reinstaurar o princípio da solidariedade, é necessário algo mais concreto do que conceitos genéricos de afirmação da vida. São necessários renovados “envolvimentos” com o corpo humano. É necessário um novo conceito de corporeidade, aplicável tanto ao âmbito da existência individual como, análoga e correlatamente, ao da sua inserção em processos biossociais. In: ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para re-encantar a educação – Epistemologia e didática, p. 208s.
4. Os versículos que mencionam a atitude descomprometida de Pilatos, na qual se “autoabsolvia” da responsabilidade pela morte de Cristo, não estão indicados, mas podem ser trazidos ao ato cúltico, porque estão presentes em nossa memória no que se refere à condenação de Jesus.
Bibliografia
ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para re-encantar a educação – Epistemologia e didática. Piracicaba: UNIMEP, 1996.
PARLOW, Mara Sandra. De corpos de conhecimento ao (re)conhecimento do corpo. Elementos para a composição de uma epistemologia corporal no âmbito da fé. Tese de Doutorado. São Leopoldo: IEPG / EST, 2004.
PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991.