Prédica: Salmo 22
Leituras: Lucas 23.33-49 e Hebreus 4.14-16;5.7-9
Autoria: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 25/03/2016
Proclamar Libertação - Volume: XL
“Deus meu, Deus meu!”
1. Introdução
O Salmo 22 é o salmo previsto para a Sexta-Feira da Paixão nas três séries do Lecionário Comum. Essa escolha deve-se ao fato de o salmo ter sido uma das chaves utilizadas pelos evangelistas para entender a paixão e morte de Jesus. As narrativas da paixão em todos os quatro evangelhos trazem citações ou alusões a esse salmo. A mais conhecida é a invocação: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (cf. Mt 27.46; Mc 15.34). O relato da morte de Jesus segundo Lucas (Lc 23.33-49; cf. Jo 19.17-37), previsto para a Sexta-feira da Paixão do ano C, no entanto, não traz esse grito. Mas Lc 23.34 menciona que os soldados repartiram e sortearam as vestes de Jesus (cf. Sl 22.19). Lc 23.35-37,39 também descreve longamente como chefes, soldados e um dos malfeitores zombaram de Jesus, uma alusão ao Salmo 22.8s.
Quem utiliza uma Bíblia publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) deve tomar cuidado com a numeração dos versículos do Salmo 22, que é diferente da numeração da Bíblia Hebraica, geralmente utilizada nas outras versões, bem como nesta meditação.
O Lecionário Comum aparentemente não prevê um recorte do Salmo 22. A data do ano litúrgico favorece uma concentração na primeira parte do salmo: 22.2-22. Ainda assim, a interpretação deve ter em mente o todo.
A epístola prevista para a data (Hb 4.14-16; 5.7-9) informa que a vida de Jesus foi uma vida de oração e obediência, tendo sido, por isso, atendido por Deus (5.7), e que sua morte traz a salvação aos que lhe obedecem (5.8). De resto, o vínculo com o próprio do dia é bastante solto.
2. Considerações exegético-homiléticas
Proclamar Libertação publicou três meditações sobre o Salmo 22. M. Fluck apresenta um interessante leque de interpretações sobre o salmo (PL 18, p. 116ss); H. Ehlert traz uma boa estrutura do salmo e valiosas observações exegéticas (PL 30, p.104ss); M. Parlow, por fim, contribui com ótimas imagens e ideias para o todo da celebração da Sexta-feira da Paixão (PL 35, p. 169ss). Tentarei colocar meus próprios acentos.
Os salmos normalmente são usados para orar e celebrar, mas não como textos de pregação. Proponho, portanto, uma homilia. A homilia possibilita recontar o texto do salmo fazendo analogias com o nosso sofrimento e com o sofrimento e morte de Jesus. Por esse motivo não separo, a seguir, claramente exegese de meditação.
O Salmo 22 é composto de duas partes. A primeira (v. 2-22; SBB) descreve a aflição de alguém que se sente abandonado por Deus e que por isso lamenta e suplica por ajuda. A segunda parte (v. 23-32), por outro lado, é um canto de ação de graças pela ajuda recebida, entoado no seio da comunidade de fé. Há consenso de que não se trata de dois salmos distintos, mas de um salmo que podia servir de modelo ou “formulário” para duas situações distintas: a de suplicar por ajuda e a de agradecer pela ajuda recebida. A “dobradiça” entre as partes encontra--se na última palavra do v. 22: “tu me respondeste”. Algumas versões da Bíblia eliminam, sem nenhum motivo, essa palavra hebraica ou a substituem de acordo com versões gregas. O texto massorético dá a entender que o que segue (v. 23ss) é recitado após Deus ter atendido a súplica do sofrente (cf. v. 25), justificando-se, portanto, a ação de graças (todah).
A atribuição a Davi, que aparece no “título”, é muito tardia e não tem nenhum fundamento histórico. Quem lamenta e sofre não é Davi nem outro rei, tampouco o rei futuro (“messias”). O orante sofre de muitos males: seu corpo está abatido, fraco, desfigurado (v. 18) e muito doente (v. 15s); encontra-se em estado febril, com a boca seca (“a língua se me apega ao céu da boca”, v. 16), e sente a proximidade da morte (“assim me deitas no pó da morte”, v. 16). Em seu delírio, ele se vê rodeado de inimigos ou então pelos demônios da doença (v. 13s,17,21s: “touros me cercam”, leões abrem suas goelas, os malfeitores são como cães ao seu redor, os búfalos mostram seus chifres) e observa que membros de sua própria família já estão repartindo a “herança”, pois já dão o suplicante como morto (v. 19: “repartem entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica deitam sortes”).
Talvez não se tenha em mente uma pessoa que sofre apenas de um único mal. Alguns intérpretes admitem que o suplicante também pode estar sendo perseguido ou acusado injustamente por malfeitores, seus inimigos. As metáforas, de fato, mais escondem do que revelam. Em todo caso, o sentimento de ausência de Deus predomina no todo nessa primeira parte do Salmo 22: Deus o abandonou e não mais responde a seu clamor (v. 2s). O aspecto teológico central é a experiência radical do abandono de Deus. Essa também era, conforme os evangelistas, a situação de Jesus na cruz.
V. 2-3 – Os salmos de lamentação expressam uma profunda contradição da experiência humana: quem se sente abandonado por Deus é justamente quem o invoca: “Deus meu!”. Apesar da grande tribulação e da sensação de abandono, ele continua sendo um Deus pessoal, conhecido, íntimo: “meu Deus”! A pergunta “por que (me abandonaste)” tem aquele misto de incompreensão e censura de quem, como Jó, não consegue entender por que Deus deixa acontecer coisas que, em nossa visão, são injustas. Mesmo que Deus não seja a causa direta do sofrimento, ele não impede que pessoas sofram, muitas vezes injustamente. Por quê? Geralmente não há resposta lógica e racional. Por isso busca-se, no salmo, pelo menos, o aconchego da presença de Deus. Mas justamente esse não está à vista. Há muito tempo que o salmista sofre, grita e suplica – em vão!
V. 4-6 – O suplicante busca razões para o seu ato de dirigir-se a Deus, apesar de experimentá-lo distante e mudo. Ele as encontra no poder de Deus, propalado pelos louvores da comunidade e experimentado no passado. Na aflição, importante é a memória. A memória traz à tona “casos precedentes” de intervenção divina. Isso anima. Talvez o sofrente também queira constranger Deus a ser coerente com a sua atuação no passado? Em todo caso, aparece no sofrente uma nesga de confiança.
V. 7-9 – O salmista volta à descrição de sua situação. Ele é um não-humano, perdeu toda a semelhança com os seres humanos. Ele está desfigurado pela doença e deformado pela dor. O que mais dói, no entanto, são o desprezo e a humilhação das pessoas. Os inimigos e os próprios membros da família “meneiam a cabeça” em sinal de desprezo (cf. Sl 44.15; 64.9). A imagem de Deus transformou-se num “bicho” (cf. o poema de Manuel Bandeira). Pessoas famintas e doentes contam que a pior experiência, na verdade, não é a dor física, mas a dor da incompreensão e do preconceito. Muitas vezes, o desprezo resulta de uma simplória concepção de retribuição: se ele/ela está sofrendo, é porque deve ter “culpa no cartório” ou não fé suficiente.
Flagrante é o sarcasmo dos inimigos (ou membros da família) que cercam o sofrente: “Confiou no Senhor! Livre-o ele!” Uma alusão à piedade “extremada” do salmista? Um desejo velado de que ele sofra as consequências de seus atos? Ou seja: está sofrendo e morrendo porque merece! Será que Deus abandona justamente os que mais creem nele? Os evangelistas viram na zombaria dos chefes e soldados aos pés da cruz de Jesus a flagrante contradição entre o que Jesus pregava e vivia e a realidade cruel da vida: Deus não ajuda quem fracassa na vida! Será que é assim?
V. 10-12 – Novamente o orante procura nesgas de memória em que prender um fio de esperança. Nos salmos de lamentação, esse vaivém entre sentimento de abandono e recuperação da confiança é constante. Agora o suplicante encontra apoio em sua história de vida pessoal. Deus deu-lhe a vida. Ele a teria dado se não tivesse um objetivo para ela? Existe vida sem sentido? Aqui não se percebe a conformidade de um Jó que diz: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito o nome do Senhor!” (Jó 1.21). Se Deus dá a vida, ele não se torna também responsável por ela? Não tem ele, antes, a “obrigação” de preservá-la? A expressão de confiança desemboca na súplica decisiva: “Não fiques longe de mim!” (v. 12).
V. 13-16 – Em PL 18 e 30, esse trecho foi omitido. Por causa das metáforas difíceis ou por não apresentar nenhuma relação aparente com a morte de Jesus? Ele contém a descrição mais drástica dos efeitos da doença sobre o corpo do sofrente (v. 15s): por causa do ardor da febre, o seu corpo dissolve-se como água, deixando os ossos desfigurados e a boca seca como um caco de cerâmica. Já se pode sentir o gosto da “poeira da morte”. A doença e o sofrimento podem assumir a forma de animais. Os touros e leões que cercam a pessoa moribunda podem simbolizar os poderes demoníacos que causam a doença que leva à morte. Também podem ser metáforas de pessoas inimigas poderosas (os malfeitores do v. 17), que em sua grande fúria ameaçam a pessoa doente. Ou são imagens de um pesadelo de alguém em delírio? Seja como for: o salmista sente-se totalmente impotente, à mercê de poderes mortais.
V. 17-19 – Uma segunda vez, o salmista descreve metaforicamente os poderes que o cercam e os efeitos de sua doença. O doente está nu e tão emagrecido, que se podem contar os ossos do seu corpo (v. 18). Dessa vez, os inimigos que o cercam são designados “malfeitores” (“cães”), que ficam observando o moribundo em seu leito. No v. 17, o verbo traduzido por “traspassar” (Almeida Revista e Atualizada), “rasgar” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje), “retalhar” (Bíblia de Jerusalém), “furar” (Pastoral) ou “amarrar” (TEB) é uma conjetura muito controvertida. O texto massorético lê “como um leão”, o que obviamente não dá sentido. A maioria das versões segue a tradução dos Setenta e a Vulgata (“furar, traspassar”). Comentários modernos preferem a conjetura: “prender, amarrar” (de acordo com as versões gregas de Áquila e Símaco). Não fica claro por que os “malfeitores” iriam “furar” ou “amarrar” as mãos e os pés do moribundo! O doente debate-se em seu leito de morte, de modo que há necessidade de amarrá-lo?
Mais claro é o v. 19: “eles repartem entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica deitam sortes”. Provavelmente não se trata de credores inimigos que vêm cobrar uma dívida do doente, mas de membros da família, que já dão início à repartição da herança da pessoa moribunda. A túnica é a peça de roupa mais valiosa de uma pessoa; ela não pode ser repartida, deve, portanto, ser sorteada. A própria família já considera o salmista um homem-morto e passa a tocar a vida para a frente sem ele. Pode haver sentimento de abandono maior do que esse?
V. 20-22 – O trecho termina com uma derradeira súplica: “Senhor, não fiques longe de mim!” Abandonado pelos próprios parentes, o salmista só tem uma única esperança: que o Deus distante e silencioso se manifeste. E essa intervenção divina precisa acontecer de forma urgente, antes que seja tarde demais. A súplica termina mencionando novamente os poderes de morte que ameaçam o sofrente: “espada”, “presas de cães”, “gargantas de leões” e “chifres de búfalos” (v. 22).
V. 23-32 – O hino de ação de graças é entoado após o sofrente ter sido atendido em sua súplica (v. 25) no seio da comunidade (v. 23,26). Certamente o hino fez-se acompanhar de um sacrifício de agradecimento (todah) e de uma refeição sacrificial, da qual também participaram os pobres (v. 27). Essa segunda parte do salmo é importante porque confirma que nossas orações são atendidas e que o sofrimento e a aflição não são a última palavra de Deus, como não foi a cruz de Jesus.
3. Meditação e imagens
1) Ao gritar a Deus, antes de morrer, “Deus meu, por que me abandonaste?”, Jesus mostra-se totalmente humano, alguém que sente dor, geme, está desesperado, tem medo de morrer, é impotente diante de seus algozes – como qualquer um de nós. Ele não se mostra sereno, soberano diante da morte, como quem tem certeza de que a morte na cruz é apenas uma transição para algo maravilhosamente belo, planejado pelo Todo-poderoso. Ao contrário, ele se sente abandonado por seu Deus. A cruz é a experiência mais contundente da ausência e do silêncio de Deus e da humanidade de Jesus.
2) Analogias de sofrimento humano em que não se pode mais sentir a presença de Deus podem ser distribuídas ao longo da homilia. Muitas vezes, menciona-se o holocausto. Onde estava Deus quando permitiu que milhões de judeus fossem exterminados? Pode-se também lembrar os gritos que subiam dos navios negreiros que partiam da África. E onde estava Deus que permitiu que 21 cristãos coptas fossem degolados por grupos extremistas do Estado Islâmico no norte da Líbia em fevereiro de 2015? Mas não precisamos ir para fora do país. Com 64 mil homicídios por ano, o Brasil é o país com o maior número absoluto de homicídios no mundo. De cada 100 pessoas assassinadas no mundo, 13 são de nossa “terra adorada”. A maioria das vítimas tem idade e cor defi nidas: são jovens e negros. Em final de fevereiro de 2015, quando escrevo esta meditação, houve uma chacina de 13 jovens num bairro de periferia da cidade de Salvador, promovida por integrantes da polícia militar. Como as mães e os pais desses jovens ceifados em pleno vigor sentem o “abandono” e a “indiferença” de Deus? Sabemos também que o trânsito no Brasil (com mais de 20 mortos/ano por grupo de 100.000 habitantes) mata bem mais do que uma guerra. Mas assassinatos e mortes no trânsito deixaram de ser trágicos para tornar-se estatística.
3) Depois do ataque às torres gêmeas em Nova Iorque em 2001, alguém escreveu na parede do metrô da estação Times Square: God, why have you forsaken us? Há consolo? O fato de podermos lançar, em nossa angústia, o nosso grito de dor no rosto de Deus certamente é mais do que uma catarse psicológica. É velada esperança de que Deus se encontra na mais profunda miséria de nossa vida. Sabemos que Deus geralmente não age através de passes de mágica. Ele também não tirou seu filho da cruz. Os seus caminhos não são os nossos. Há esperança! Porque sabemos que o sofrimento e a morte de Jesus nos “carregaram” para dentro de uma nova vida. Essa é a nossa confi ança. Ela talvez seja até mais clara do que a confiança do sofrente do Sl 22. Mas também esse não foi desapontado em sua confiança, pois “Deus não desprezou a dor do aflito, nem ocultou dele o seu rosto, mas o ouviu quando gritou por socorro” (v. 25).
4) Podemos, a partir do Salmo 22, aprofundar mais o significado da morte de Jesus “por nós”? O Salmo 22 não tem a mesma perspectiva da vicariedade da morte que se encontra, por exemplo, em Isaías 53. Não creio que seja o momento de abordar a complexa questão da necessidade de uma morte violenta para reconciliar as pessoas com Deus. A violência faz parte da existência humana; ela é praticada por pessoas imperfeitas e sofrida por pessoas fracas. Ela não está no plano de Deus. Se o império romano condena Jesus a sofrer uma morte violenta por causa da pregação de um Deus misericordioso e por causa da prática de solidariedade com os excluídos, então obviamente é também por causa de nós que ele morre. Sua paixão e morte ganham sentido. E Deus confirma-o com a ressurreição de Jesus.
4. Subsídios litúrgicos
Remeto aos ótimos subsídios de PL 35, p. 173-175. Acrescento algumas
sugestões adicionais. Pode-se iniciar a celebração com o poema de Castro Alves,
“Vozes d’África”, cuja invocação lembra o “Deus meu!” do Sl 22.
Confissão de pecados (de acordo com Sl 51)
Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade;
e apaga as minhas transgressões segundo a multidão das tuas misericórdias.
Lava-me completamente da minha iniquidade
e purifica-me do meu pecado.
Pois eu conheço as minhas transgressões
e o meu pecado está sempre diante de mim.
Não me expulses da tua presença
nem me retires o teu santo espírito.
Restitui-me a alegria da salvação!
Anúncio da graça
Deus estava em Cristo e reconciliou consigo o mundo; ele não imputou às pessoas as suas faltas e nos confi ou a palavra da reconciliação. (2Co 5.19)
Oração do dia
Misericordioso Deus, por nossa causa permitiste que teu Filho sofresse a morte na cruz, para nos libertar dos poderes malignos. Faze com que reconheçamos que, através de seu sofrimento, fomos inocentados do pecado e livrados da morte eterna. Isso te pedimos por Jesus Cristo, que morreu na cruz e que agora, contigo e com o Espírito Santo, vive e reina eternamente. Amém! (M. Lutero)
Bibliografia
KRAUS, Hans-Joachim. Psalmen 1-59. 5.ed. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1978 (Série Biblischer Kommentar Altes Testament, v. XV 1).