Prédica: Romanos 8.14-17
Leituras: Gênesis 11.1-9 e João 14.8-17 (25-27)
Autoria: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 05/06/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
Espírito, corpo e propósito
1. Introdução
A leitura de Gênesis 11.1-9 fortaleceu minha ideia de que não há espírito sem corpo. E, além disso, me ensinou que o espírito não está só bem apegado a um corpo, mas também a um propósito. Quando Deus viu que as pessoas salvas do dilúvio estavam enveredando por um caminho sem volta, desceu para ver a cidade e a torre que aquela gente estava construindo (v. 5). Assim como a lei da Constituição de um país precisa ser regulamentada em suas diversas afirmações, Javé precisou regulamentar seu novo projeto de povo com aquela descendência de Noé, especialmente no que se refere ao quesito da comunicação. Ele não podia permitir que o belo dom das línguas justificasse o propósito único de domínio totalitário, possibilitando chegar aos céus por mãos e méritos próprios. Deus não poderia deixar-se criar um espírito assim, bem configurado naqueles corpos unidos pela sede de poder sem limites.
O evangelho previsto, João 14.8-17, cai no contexto como se viesse colocar ordem no jeito de compreender unidade entre espírito, corpo e alma. Felipe ainda não tinha entendido como funciona esse conjunto. Pediu que Jesus mostrasse o pai. Em sua compreensão, portanto, Jesus teria a capacidade especial de trazer de fora para dentro, ou de cima para baixo, a identidade de um propósito original, ou seja, pai com poder inequívoco de convencimento a respeito da missão que o grupo de Jesus tinha. Um pensamento absurdo para Jesus! Por isso a resposta parece meio mal-humorada. Não se trata, porém, de humor, mas de propósito: “Tanto tempo junto e você, nada de compreender, Felipe?”. Essa é uma chamada à conversão de pensamento para a compreensão das coisas do reino de Deus. O filho só é filho porque, em sua identidade, ele se move pelo espírito proposto. No reino de Deus essa dinâmica entre pai e filho vale para a relação entre mestre e discípulo.
No texto da Carta aos Romanos 8.14-17, como veremos na exegese, a mesma unidade está confirmada.
2. Exegese
O texto da pregação traz cinco vezes a palavra espírito. Nos dois versículos anteriores (12-13), aparece corpo/carne quatro vezes. Isso é um sinal de que está sendo tratado o assunto como o corpo e o espírito se relacionam e participam de tudo o que faz parte do ser. Não há espaço aqui para aprofundar essa temática, mas encorajado por estudos apresentados em Proclamar Libertação (Ofícios, suplemento 2, sobre “a morte e o morrer na Bíblia”) e no livro editado pela IECLB “Funeral Cristão, fundamentos e liturgias” (sobre “A morte e o funeral cristão”), começo dizendo o que está no título, que não existe espírito sem corpo e os dois juntos não existem sem propósito. E para deixar o assunto mais bem-humorado, digo que se assim não fosse, seria obrigado a acreditar na existência de assombrações e fantasmas. Quanto à assombração, seu nome já diz que é sombra. Se é sombra, deve ser de um corpo. E o fantasma usa um lençol branco para se cobrir. Se não houvesse corpo, não haveria o que encobrir. Além disso, se acreditasse em espírito sem corpo, precisaria também concordar com uma explicação que se ouve em velório. Diz-se que quando alguém morre, devemos rapidamente acender velas ao lado de seu corpo, para que a sua alma possa sair e subir aos céus pelo vapor do fogo. Pensando nessas coisas, li os três textos bíblicos indicados para as celebrações comunitárias no fim de semana do Pentecostes de 2022. Coube, evidentemente, especial atenção aos versículos indicados como base da pregação.
V. 14 – As versões do Almeida ARA e NTLH traduzem agontai como “guiados”. A Bíblia de Jerusalém traduz como “conduzidos”. Não há muita diferença entre dizer “todos os que são guiados pelo Espírito” (ARA), “aqueles que são guiados pelo Espírito” (NTLH) e “todos os que são conduzidos pelo Espírito” (BJ). Chamou-me, porém, a atenção que a versão alemã de Lutero não aplica o verbo “führen” para “conduzir” ou “guiar”. Nela aparece, assim como no dicionário grego-alemão, “treiben” (“welche der Geist Gottes treibt”). Vejo uma diferença significativa entre esse verbo e os verbos “guiar” ou “conduzir”. Dizer que alguém é conduzido ou guiado pode pressupor a existência de um agente externo. No texto bíblico, porém, parece não se tratar disso. Podemos compreender agō no sentido de estímulo. A seiva que circula na planta, por exemplo, a conduz sim, mas isso é algo diferente de alguém que guia ou conduz um automóvel. Por isso estou querendo fazer uma diferença entre os dois verbos em língua alemã. “Führen” estaria mais para guiar e conduzir, enquanto “treiben” mais para fazer fluir ou estimular movimento. Quer dizer: mesmo estando o verbo no modo passivo, precisamos abrir a possibilidade para entender o ato aqui descrito pelas versões em português como guiar ou conduzir, não só como algo que ocorre de fora para dentro, nem de cima para baixo, mas também como algo que ocorre de dentro para fora.
V. 15 – Podemos entender o termo hiothesia como aceitação de uma filiação, não por motivos sanguíneos, mas pelo motivo de o estímulo que flui na pessoa ser o espírito do ser que está na origem. O versículo afirma que o espírito que passou a fluir em quem crê não é um espírito escravizador, que faz recair no medo, mas é um espírito filial. Esse é o espírito que se manifesta quando Deus é chamado de pai.
V. 16 – O termo empregado para falar da filiação a Deus, nesse versículo, muda para tekna. Trata-se de um termo mais próximo da compreensão de filiação em relação à ancestralidade, como descendência, como herança de características. No AT é a relação dos israelitas com Deus, no NT são aquelas pessoas para as quais Deus preparou o reino messiânico. Quando o Espírito de Deus flui no interior da pessoa, ele, o espírito, testemunha essa filiação.
V. 17 – O mesmo termo tekna continua sendo empregado aqui para falar da filiação a Deus. É acrescentado que a filiação significa klēronomos, isto é, quem é tekna possui algo que lhe cabe por sorteio ou por herança. O termo herança tem parentesco com o termo sorte. Quem tem essa posse, a tem junto com Cristo, junto no seu sofrimento e junto na sua glorificação. Não está expresso aquele sentido que transparece na formulação “se..., então também” da NTLH, que, eventualmente, pode ser compreendido como se a participação no sofrimento fosse uma credencial para a participação na glória.
3. Meditação
Como seres humanos que somos, temos uma resposta pronta em nós. Diante de qualquer fato reprovável, botamos a mão no controle e acionamos: “isso foi assim e assado por causa disso e daquilo”. Sabemos que elegemos quem não faz, ou se faz, sabemos que faz errado. Sabemos que a notícia que vemos, lemos e ouvimos não cumpre o seu papel de bem informar. Antes disso, promove assuntos em detrimento de outros que ficam encobertos por desvio ou omissão. Sabemos que as redes sociais que usamos tomam o nosso tempo, desconstroem valores etc.
Deus bem que poderia ter permitido a construção da torre de Babel. Lá naquela planície já estávamos, como espécie humana, com o controle na mão e já tínhamos acionado: “Bora lá, rumo ao céu” (Gn 11.4a). Ainda estávamos no início, já tínhamos a resposta pronta para resolver o problema que nos atormenta até hoje: como chegaremos naquele lugar onde mana leite e mel (Dt 6.3)? Quando chegaremos ao ponto de plantar nossos próprios vinhais e de tomar o seu suco (Is 65.21)? Quando construiremos nossas casas e nelas habitaremos (Is 65.21)? Quando chegaremos lá onde não mais haverá lágrimas e a morte já não existirá (Ap 21.4)?
Também Felipe botou a mão no controle e apertou: “Mostra-nos o pai”. Estava acionando o canal da resposta para a pergunta de todos os tempos. Quem duvidaria de algo, se fosse mostrada a matriz de tudo, se fosse mostrado o documento original, se fosse mostrado o Pai?
Chegamos à conclusão de que os três textos bíblicos que têm leitura prevista para este Pentecostes apontam o controle para a mesma direção. Aquilo que Deus fez em relação aos pretenciosos sobreviventes do dilúvio na planície de Sinar, aquilo que Jesus fez em relação aos seus discípulos questionadores e aquilo que o apóstolo Paulo diz aos romanos é como se apontasse o controle na direção de quem costuma apontá-lo: nós. E, ao fazer isso, está nos comunicando que o que importa mesmo é que, ao clamarmos “Aba, Pai”, isso seja um testemunho de que o espírito de Deus flui em nós e nos faz agir (verbo no modo passivo). O controle que temos nas mãos deve acionar a nós mesmos e não a algo fora de nós. Quem crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará (Jo 14.12).
Nos últimos dois anos, acumulamos a experiência de viver em situação de pandemia. Entre outras, trata-se da experiência de sentir instabilidade. Em um contexto assim é, sem dúvida, um testemunho cristão ser referência do contrário, isto é, de estabilidade. Parece-me que nesse sentido vão as palavras de Jesus quando disse: deixo-vos a minha paz, não como o mundo a dá (Jo 14.27). O mundo só sabe dar paz quando está tudo bem. Sem o Espírito de Deus, buscamos essa paz do mundo. Ao contrário disso, o Espírito de Deus traz paz justamente na adversidade. É uma paz que flui na pessoa e independe do contexto. Por isso Paulo e Silas cantaram na prisão (At 16.25). Por isso Bento de Núrsia fundou, à beira da estrada, o primeiro convento beneditino, acolhendo andarilhos desalojados e famintos, que perambulavam como parte do fenômeno chamado invasão dos bárbaros, no período de mudança da Idade Antiga para a Idade Média.
O Santo Espírito que desce sobre nós neste Pentecostes de 2022 não se resume ao dever profético de denunciar pecados que levaram à tenebrosa realidade vivenciada desde 2020. O Pentecostes inclui o ser passivo do fluir de um novo Espírito que inundou a alma das primeiras comunidades cristãs:
Em uma carta conservada por Eusébio, o bispo Dionísio de Alexandria (falecido em 265) escreve sobre a peste que atingiu sua cidade e relata que os cristãos cuidaram dos doentes, sem fazer distinção entre cristãos e não cristãos. Segundo seu relato, os pagãos fugiam das pessoas infectadas, inclusive dos seus familiares, abandonavam os moribundos e deixavam os mortos jogados. Muitos cristãos morreram nesses cuidados, inclusive presbíteros, leigos e diáconos. Tomavam os moribundos no colo e no momento da morte “fechavam-lhes os olhos e a boca”. Preparavam os corpos com banho e os enterravam, e, muitas vezes, os sucediam na morte (GAEDE NETO, 2015, p. 319).
4. Imagens para a prédica
A pregação poderá iniciar com uma breve encenação, na qual uma pessoa com os olhos vendados é guiada por outra que vê. A pessoa que não enxerga é guiada de tal forma que consegue passar por obstáculos sem se ferir e sem ser impedida de seguir em frente.
O Espírito de Deus é assim. Ele vem de fora e nos é concedido, como aquela pessoa que guia a outra que não vê. Essa situação, porém, não permanece assim. O Espírito Santo que vem e passa a habitar em nós. As vendas dos olhos caem e passamos a ser guiados por aquele espírito que, a partir de nosso íntimo, chama Deus de “Aba, Pai”. Esse é um testemunho, um grito de independência de qualquer forma externa que pretenda nos guiar de forma escravizadora. Todos os “tu tens que” são substituídos por “eu quero”.
O Pentecostes que constrói comunidade hoje e nos devolve a comunhão tem como personagem um mesmo espírito, aquele que clama “Aba, Pai” coletivamente. Acabamos de descer da barca do dilúvio como “rebanho resgatado por um só Salvador, devemos ser unidos por mais ardente amor, olhar sem julgamento os erros de um irmão e todos ajudá-lo com terna compaixão” (LCI 576).
5. Subsídios litúrgicos
Hinos: Espírito, verdade, LCI 461; Jesus, pastor amado, LCI 576.
Bibliografia
GAEDE NETO, Rodolfo. Diaconia e cuidado nos primeiros séculos do cristianismo. Estudos Teológicos, v. 55, n. 2, p. 316-332, jul./dez. 2015.
SCHIRLITZ-EGGER. Griech.-Deutsches Wörterbuch zum Neuen Testament. 6. Aufl. Giessen: Emil Roth.
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