Prédica: Romanos 5.1-11
Leituras: Êxodo 17.1-7 e João 4.5-30, 39-42
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 3º. Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 23/03/2014
Proclamar Libertação - Volume: XXXVIII
1. Palavras...
Por isso devemos prestar mais atenção nas verdades que temos ouvido, para não nos desviarmos delas. (Hb 2.1)
Deus nos mostrou o quanto nos ama: Cristo morreu por nós, quando ainda vivíamos no pecado. (Rm 5.8)
Toda pessoa que aceita a fé e a paz com Deus tem a liberdade de ser tolerante para com a fé e a vida de outras pessoas.
2. O texto
A abordagem de Romanos 5 focalizará, em especial, os versos 1-5 e o verso 11. Detalhes exegéticos relevantes à compreensão do texto poderão ser consultados em comentários anteriores. A construção do texto permite estruturar o mesmo em dois blocos: os versos 1 a 5 e 11 e os versos 6 a 10. Limito-me neste trabalho aos versos 1 a 5 e ao verso 11. No conjunto dos capítulos da Epístola aos Romanos, o verso 1 em Romanos 5 assume o papel de chave. Seu conteúdo, além de ser transparente à vida individual de Paulo, dá acesso a uma novidade. Os dizeres do texto refletem, de forma concentrada, a vida transformada do apóstolo Paulo. A fotografia do homem religioso Saulo, posteriormente transformado em Paulo (Atos 9), revela uma existência em tensão: por um lado, ele testemunha que vive em paz com Deus; por outro, a sua vida continua experimentando sofrimentos. O pano de fundo da perícope coloca leitores e ouvintes não diante de um pacote dogmático, mais ou menos indigesto, mas espelha a realidade concreta da vida exercitada por Paulo. Paulo respira o ar gracioso da fé; é a confiança que se alimenta da paz com Deus, porém não indiferente às tribulações e aos sofrimentos, que são traços de sua humanidade.
O apóstolo identifica a sua vida profundamente firmada na paz de Deus, ainda que não vivenciada em sua plenitude. Para Paulo, o cristão não está livre de conflitos interiores, tampouco de sofrimentos em seu corpo. Onde existe muita luz, também há muitas sombras. O indicativo espelha vivacidade de cores, assim como determina os frutos produzidos na árvore da fé (v. 2,4,5), em especial o fruto da salvação (v. 10). Paulo recebe sua nova identidade, expressa em existência transformada, como presente: “Foi Cristo quem nos deu, por meio da nossa fé, esta vida na graça de Deus” (v. 2).
Sendo a nova vida uma dádiva imerecida do Cristo crucificado, o apóstolo vive a perseverança, vislumbra o horizonte da esperança, é esperança ímpar de poder participar da glória de Deus. Paulo é incansável para dizer que a morte do Filho de Deus aconteceu “em nosso favor” (v. 8).
2.1 – Espelho meu, espelho meu... Quem sou eu?
A afirmação a respeito de Deus é, ao mesmo tempo, afirmação sobre o ser humano e vice-versa. O texto apresenta a fotografia do ser humano, assim como identifica a visão de Deus. Verdadeira humanidade só se conhece e se vive a partir da cruz de Cristo. Quando o apóstolo fala do Cristo fonte da nova identidade, ele anuncia o Cristo da salvação. Foi o Cristo da cruz e da Páscoa que “nos tornou amigos de Deus” (v. 10). Jesus Cristo semeou a esperança da salvação aos de perto e aos de longe (v. 6). O apóstolo pecador não pode ajudar a si mesmo. Não há um ser humano sequer que possa superar a distância entre humanos e Deus. A novidade de vida é dom de Cristo (2Co 5.17). A transformação do ser humano concretiza-se em vida nova para a glória de Deus e para o bem do próximo.
Paulo vive essa perspectiva a partir de sua própria história. O apóstolo espelha-se na obra de Cristo em seu favor. “Para Paulo, o ser humano é um ser provocável e constantemente provocado.” A antropologia e a teologia paulina andam de mãos dadas em via única. Tudo isso acontece dentro de um organismo vivo que o apóstolo chama de corpo, corpo de Cristo, a comunidade (1Co 12.12ss). O texto de prédica coloca uma luz de raro brilho sobre a existência de Paulo e, por tabela, sobre todas as pessoas cristãs. O desafio da fé colocada em prática emerge não de um pacote teórico e dogmático, mas da própria vida exemplar e serviçal de Jesus Cristo, a cabeça do corpo eclesial.
2.2 – Antropologia e teologia em via de mão única
A nova identidade de Paulo nasce do encontro com o Cristo que “morreu em nosso favor e nos fez amigos de Deus”. A sociedade moderna clama por definições claras quando procura definir a existência humana, seu sentido e sua missão. Os seres humanos investem na compreensão de sua humanidade. Quem sou eu? Para que existo? Por que sofrer? A necessidade desse investimento traz libertação de máscaras que escondem nossa verdadeira identidade.
No decorrer da história, quando da definição de humanidade, a instituição igreja passou por sérios questionamentos. Os questionamentos atingem, não só rondam a instituição igreja. A teologia determinante para os discursos eclesiais é objeto de duras críticas. O mundo religioso moderno exerce domínio e influencia as massas. Aos olhos de uma igreja histórica e tradicional, a exemplo da IECLB, a proposta de movimentos religiosos atuais é estranha; o entusiasmo vivido beira o fanatismo; a suspeita é de superficialidade. A convicção no Deus encarnado em Jesus Cristo está deturpada.
Um conhecido ministro religioso definiu, num curso profissionalizante, a vivência religiosa de seu grupo de alunos e alunas. Avaliando a qualidade de fé dos jovens, observou: “Jovens, quando ainda convencidos do Deus anunciado pela igreja cristã, simpatizam com o Deus que perdoa, socorre e demonstra amor, porém sem impor condições”. Observou que apelos à vida de oração soam como algo estranho; o conceito de pecado e de juízo final está distante da realidade. O professor daquela classe de alunos chegou à seguinte conclusão: “Jovens, semelhantes a seus alunos e alunas, demonstram indiferença em relação à consciência pecadora; porém demonstram sensibilidade diante da frieza em relações”. O texto da prédica oferece uma visão de um Deus diferente; desenha uma nova definição de ser humano, marcada pelo Cristo da cruz e da ressurreição. A teologia paulina é iluminada pela perspectiva antropológica. A teologia deve estar a serviço do ser humano. Por isso Paulo pode declarar: “Não sou eu que vivo, pois Cristo vive em mim” (Gl 2. 2). Pela fé é devolvida a imagem do homem sendo imagem de Deus; somente Cristo tem e é a imagem de Deus.
3. A caminho da prédica
Pressuposto da pregação é a frase indicativa do texto-base: “Aceitos por Deus pela fé, temos paz com Deus”. Paz com Deus leva à paz consigo mesmo. O contrário da paz seria “ter ou fazer guerra” com Deus. Especialmente quando houver pedras na estrada da vida. A oferta de paz com Deus é definitiva, mas isso não significa que nós humanos estejamos plenamente convencidos dessa oferta. A aceitação da paz é fruto do amor de Deus e da confi ança no Redentor, que chama da perdição à salvação. O Deus de Jesus Cristo não decepciona. “Foi Cristo quem nos deu o presente por meio de nossa fé, esta vida (nova) na graça de Deus.” Abre-se o horizonte da esperança.
A estrutura da prédica e seus conteúdos são determinados pela boa notícia em foco nos versos 1-5 e 6. Sugiro como escopo: “A qualidade da fé reflete-se na dimensão da esperança”.
– Continuamos firmes e perseverantes;
– alegramo-nos na esperança de poder participar da glória de Deus;
– alegramo-nos também em nossos sofrimentos, pois eles produzem paciência;
– porque Deus derramou o seu amor no coração;
– e Cristo tornou-nos amigos de Deus.
3.1 – Impulsos para a prédica
A atmosfera é de paz e serenidade
Ouço a fala da mãe-mulher. Sua fé é inabalável: “Há dias estou sentada à beira do leito da criança enferma. A preocupação me perturba. Aos poucos, sinto-me mais equilibrada, serenidade me acompanha. Aprendo a ter paciência e não perco a esperança, sou carregada pelo amor de Deus. Creio que o poder do Espírito Santo traz consolo e me fortalece à beira do leito da criança doente, sofredora. O que faço? Agradeço a Jesus Cristo; sua fidelidade e parceria são fontes de consolo e de esperança”. A conexão com o Deus-amor, fonte de paz, firma a confiança e fortalece a ponte da paz. O fato narrado está muito próximo da realidade testemunhada pelo apóstolo Paulo. Vivencia a paz, que vem de Deus, porque se sente abraçado pela amizade de Deus.
O apóstolo Paulo não era casado e não tinha filhos. Sentiu-se, no entanto, motivado em razão do amor de Deus, demonstrado na obra do Cristo crucificado, a viver a nova identidade; um presente, uma doação do Cristo, é oferta do servidor exemplar, doação da paz.
3.2 – Traduzindo para os dias de hoje
Um alerta: antes que o pregador interprete o texto para a comunidade, somos nós, pregadores e pregadoras, seus primeiros ouvintes. Que tal fazer a abordagem do texto de forma diferente: lendo o mesmo de trás para frente? Na realidade, o final, que destaca a morte de Jesus Cristo (v. 6-11), representa o eixo central e inaugura a vida de fé; é a verdade que determina a história das comunidades cristãs até os dias de hoje. Cruz e ressurreição, vivenciadas em comunhão, fundamentam a nova maneira de vida e de convivência (v. 1-5). A centralidade da cruz, o sacrifício ocorrido em Gólgota, não deixa de ser realidade problemática para humanos. É o próprio apóstolo que anuncia a morte de Cristo em favor da humanidade, sendo loucura, motivo de resistência e de irritação. No mundo vidrado em sucesso, em conquistas, em crescimento do mercado, que não pode parar, a mensagem da cruz é provocação. A pregação do Cristo crucificado não dá ibope.
O apóstolo Paulo dirige-se aos romanos e anuncia-lhes que, através do batismo e do renascimento diário, há novidade de vida. É Deus mesmo quem devolve ao ser humano sua qualidade de ser imagem de Deus. A vivência da paz com Deus (v. 1,5) e com o próximo irrompe no mundo. Deus intervém em favor da humanidade. Deus intervém não por causa de consciência intranquila. Ele também não carece de sacrifícios humanos, tampouco se sente ofendido em razão da culpa humana. O cuidado de Deus para com o mundo não tem preço. O Deus revelado em Jesus Cristo não pesa o comportamento humano para verificar se a humanidade merece seu amor ou sua oferta de reconciliação. O poder do amor de Deus é imensurável. Deus é amor, em sua essência. A paz que Deus oferece em comparação com aquela que “vem de cima”, dos grandes centros do poder no mundo, é muito diferente. “Amou ao mundo de tal maneira que deu o seu único Filho.” Jesus não morreu por acaso, não foi vítima de um acidente ou de grave enfermidade. Seu sacrifício na cruz aconteceu “em nosso favor”, na perspectiva da salvação. A pressão exercida pelo jogo de interesses e pelo egoísmo faz a humanidade ser presa de um atoleiro. O Cristo na cruz inaugurou um novo mundo, pautado pela humildade e pelo amor. É dessa forma que Deus firmou o seu rosto amoroso. Ele mesmo tomou lugar entre o “abismo do desastre” e a situação do ser humano que corre loucamente em direção ao abismo. Em seu comportamento cheio de contradições o ser humano revela o quanto ele é fruto de seu meio. “Grande parte da humanidade ocupa-se, no presente, em ganhar dinheiro, obter vantagens, comprar casas e carros, comer uma comida saudável e combater as rugas, afora se conectando às redes sociais e falar besteiras” (Luiz Felipe Pondé, em Folha de São Paulo, 15/04/2013).
Deus mesmo carrega sobre seus ombros a nossa desobediência, assim como a tentação de vivermos a autossuficiência. Em Jesus Cristo, Deus vive um longo processo de reconciliação e inaugura uma relação filial. Ele é Pai/Mãe e nós, filhas e filhos. A fim de que essa boa notícia não se transforme meramente em peça de um quebra-cabeça complicado, Deus nos deu, além da Palavra, sinais visíveis, instrumentos de seu amor: Batismo e Santa Ceia.
Embora permaneçam os sofrimentos, as tribulações e a fragilidade humana, a nova espinha dorsal é consistente, ela dá esperança, perseverança, coragem. “Nada nos poderá separar do amor de Deus” (Rm 8.35,38). O amor de Deus faz a diferença. É o novo rosto de homens e mulheres que contribuirá para a transformação do mundo. Por que, então, não sonhar com uma humanidade alegre, grata e mais esperançosa?
4. Subsídios litúrgicos
Tanto a Confissão dos Pecados como a Oração do Dia e as Intercessões Finais levarão em consideração a dicotomia existente na vida humana entre as aparências e a situação existencial e comunitária, de fato. Não há como ignorar o quanto estamos presos e somos reféns da realidade do mundo. Vida em humildade vem de humus, chão, terra: é um dos sinais da existência cristã. Pessoas cristãs, comunidades que se congregam, sob a cabeça que é Jesus Cristo, andam com os pés no chão. Sentimo-nos carregados pelo amor de Cristo. Quando o espírito do amor é amparo e sinal de esperança, existe liberdade para servir. Filhos e filhas de Deus não se recolhem em ”ilhas paradisíacas”, também não fogem diante dos sofrimentos ou das tribulações. Não condenamos ou julgamos o mundo, mas o motivamos a aproximar-se de Deus, colocando-se sob a sua bênção. Os olhos, os ouvidos, todos os sentidos são sensíveis à graça de Deus.
Para que haja harmonia no desenrolar da liturgia de culto, os hinos a serem entoados levarão em consideração a mensagem proclamada bem como o contexto que envolve a comunidade.
Ação simbólica
Os símbolos sempre serviram para aproximar a comunidade da mensagem proclamada. Símbolos não substituem o evangelho; tornam esse mais compreensível. No espaço onde se localiza o altar – poderia ser até sobre o altar –, proponho que o ministro ou a ministra oficiante coloquem um cesto com pães e uma jarra com água. Os símbolos precisam ser sempre bem visíveis. Tanto o apóstolo Paulo como a mulher samaritana, assim como o profeta Elias (1Rs 19.3-7) e todo o povo de Israel (Êx 17.1-7) no deserto receberam alimento e água para continuar a jornada em busca da concretização de sua missão. Para Paulo, o alimento da fé (Rm 5.1-11), seus frutos estiveram ancorados no Cristo crucificado. A cruz como símbolo já tem seu espaço no templo.
Na saudação inicial, quando da colocação do tema/assunto do culto, o oficiante poderá destacar o significado da ação simbólica. Algo semelhante poderá ocorrer durante a pregação.
Bibliografia
ABESSER, Bernd. Romanos 5.1-11. In: Werkstatt für Predigt und Liturgie. Bergmoser: Höller Verlag, 1998. p. 9-14.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo: Edições Paulinas, 1980. p. 09- 41.
KUPKA, Cláudio. Romanos 5.1-5. In: Proclamar Libertação v. 34. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2009. p. 224-230.
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