Prédica: Oseias 5.15-6.2
Leituras: Mateus 20.17-28 e Romanos 8.1-10
Autor: Leandro Dentee
Data Litúrgica: 4º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 6/03/2005
Proclamar Libertação - Volume: XXX
Um pouco de frustração?
Ao receber o convite para escrever sobre Os 5.15-6.2, naturalmente fui ler o texto para obter algumas impressões. Ao fazê-lo, logo tive a impressão de que se tratava de uma confissão de fé, algo que comprovava a fé de um povo em seu Deus. “Ele nos feriu, mas com certeza vai nos curar (...)”; “Daqui uns dois ou três dias no máximo, ele nos dará novas forças (...)” Palavras bonitas! Uma fé expressa com convicção! Será assim mesmo?
1. Aproximando-nos do profeta Oséias
O profeta Oséias, assim como todos e todas nós, expressa uma determinada situação em sua pregação. Como toda pessoa, é fruto de seu contexto histórico. Por isso queremos, em primeiro lugar, retomar o contexto histórico desse profeta, sendo este fundamental para entender a perícope em questão.
1.1 – Contexto de Israel no século VIII a.C.
O reino do Norte durante o século VIII, época de atuação do profeta Oséias, é marcado por um acontecimento especial. Este fato histórico é denominado de guerra sírio-efraimita. Esta guerra viria a decretar o fim do próprio reino. Sob o governo de Menaém (747-738), Israel teve o último período de calma. Nessa época, o império neo-assírio sob Tiglate-Pileser III torna-se um fator de grande poder. Com seguidas conquistas e a constante expansão do império, muitos reinados, tomados de pavor, apresentavam-se para pagar contribuições ao império assírio. A campanha do reino assírio no ano de 734 realizou-se na vizinhança do reino do Sul, Judá.
No final da primavera ou do verão de 734, Rezim, rei de Damasco, e Peca, rei de Israel (735-732), tentaram convencer, primeiramente de forma diplomática, o rei Acaz de Judá a unir-se a eles numa coalizão antiassíria. Acaz não aceitou a proposta – posteriormente os fatos históricos lhe dariam razão – e iniciou então a chamada guerra sírio-efraimita. Não sendo possível suportar por muito tempo um sítio provocado por Damasco e Israel, Acaz, mesmo sob o protesto do profeta Isaías, pediu a ajuda de Tiglate-Pileser III. Com a superioridade das tropas assírias, Rezim e Peca de Israel foram vencidos; primeiro este, depois aquele.
A classe alta de Israel foi deportada para a cidade de Assur e a população rural permaneceu no país, que recebeu, por sua vez, outra classe alta estrangeira. Após essa intervenção de Tiglate-Pileser III, a região teve relativa paz. Todos permaneceram como vassalos da Assíria, sem tomar iniciativas de libertação (H. Donner, p. 349-362).
Além dessa investida fracassada, a sociedade israelita estava mergulhada em problemas. O profeta Oséias, bem como seu companheiro Amós, nos dão uma visão profunda da sociedade israelita da época e deixam claro que, além da aparência de riqueza no norte do Estado, também lá encontrava-se um avançado quadro de decadência social, moral e religiosa. A desintegração social acompanhava a decadência religiosa. Os grandes templos de Israel estavam cheios de adoradores; no entanto, o javismo em sua forma pura não era praticado (Os 1-3; 4.1-14) Muitos israelitas eram adoradores de Baal. A verdade é que tinha havido uma perversão íntima na religião de Javé. Os atos generosos de Javé em benefício de Israel eram lembrados no culto, só que vistos como uma proteção incondicional de Javé em favor da nação. As obrigações do povo devido à aliança realizada com Deus estavam esquecidas. As obrigações da aliança eram concebidas como algo puramente de culto. O javismo corria o risco de tornar-se uma religião pagã. Neste contexto aparecem dois profetas, a saber, Oséias e Amós, os dois primeiros cujas palavras foram preservadas na Bíblia (J. Bright, p. 359-350).
1.2 – Oséias e sua pregação
O profeta atuou durante o reinado de Jeroboão e descobriu, segundo J. Bright, a sua vocação por meio de uma trágica experiência doméstica, a saber, o adultério. Esta experiência pessoal contribuiu para dar à sua mensagem uma forma característica. A mensagem de Oséias descreve o vínculo da aliança como um matrimônio: Deus casado com a nação de Israel. Esta o traiu adotando outros deuses, cometeu adultério e por isso está sujeita à ruína (2.2-13). Oséias foi contra o culto a Baal e a corrosão moral que isso ocasionava (4.1-14), acusando Israel de ter esquecido os benefícios de Deus (11.1-4). Para Oséias, não havia nenhum sinal de verdadeira penitência por parte do povo. Suas orações eram vazias (5.15-6.6).
Acreditava, assim como Amós, que a nação estava condenada à destruição (7.13; 3.9-17) devido a seu afastamento de Deus. Mesmo com uma visão tão crítica, o profeta alimentava a esperança de que, como ele tinha perdoado a sua mulher (cap. 3), Deus, em seu infinito amor, mais uma vez “casaria” com a nação (2.14-23). Este “novo casamento” entre Deus e o seu povo, agora perdoado, somente seria possível após o inevitável desastre (J. Bright, p. 352-353).
1.3 – Lugar dos profetas na religião de Israel
Amós e Oséias são os primeiros representantes de um grupo que irá influenciar de forma profunda a história de Israel. Os profetas clássicos representam um fenômeno novo em Israel. Não foram os pioneiros espirituais, mas pessoas que, bem inseridas na tradição de Israel, adaptavam essa tradição a uma nova situação. Os profetas clássicos eram representantes de uma missão que existia em Israel desde o começo ou pouco antes da monarquia. A missão era a que concebia Deus como exercendo o governo direto de seu povo. Tratava-se de uma missão política: os profetas falavam como mensageiros da corte celeste, sendo dever lembrar os reis e dirigentes de que o governador de Israel era o próprio Deus.
Oséias é o crítico mais contundente da monarquia (8.4). Ele compreende a monarquia como uma instituição humana ou dádiva da ira de Deus (13.11). O profeta não menciona culto nem monarquia como dádivas que Deus dará ao povo depois do juízo (2.16ss). Deus retira os bens enganosos da terra, também monarquia e culto (2.5,11-14). Oséias desenvolve uma idéia básica tendo em vista a história de Israel: um segundo êxodo (11.11) A partir deste êxodo Israel voltará para as suas origens. A salvação que Oséias promete pressupõe juízo (W. Schmidt, p. 199-200).
Em meados do século VIII, quando o povo parecia ter esquecido seu Deus e as ordens proféticas tinham perdido força, palavras mais severas tornaram-se necessárias. Estas palavras foram trazidas pelos profetas clássicos. O ataque à sociedade estava fundamentado no reinado de Deus e que o povo tinha obrigações com este Deus. Era repudiada a idéia de que o status de povo de Javé se baseava, como faziam os pagãos, no sangue, no solo e no culto.
A lei justa de Deus deveria ser obedecida tanto no plano da vida particular bem como no plano social. Estava claro para eles que Israel tinha violado a vontade de Deus, e assim as únicas palavras só poderiam ser palavras de julgamento: Deus voltou sua ira contra seu povo, o que desencadeará as maldições da aliança contra o próprio povo.
Israel, rico e confiante no futuro, estava com uma doença incurável. As palavras de Amós e Oséias nos mostram que a religião de Israel não podia mais fazer as pazes com Deus. O povo havia esquecido o seu Senhor. Foi graças aos profetas que a religião de Israel recebeu nova injeção de vida (J. Bright, p. 356).
2. O texto em questão e o desafio por ele colocado
Queremos e devemos buscar ser fiéis em nossa pregação. Creio que um dos maiores desafios de seguir uma proposta de textos como base para a nossa pregação vem a ser o fato de, fundamentados neles, pregarmos sobre os mais variados temas e ênfases.
O texto do profeta Oséias fala de um falso arrependimento. O povo havia entendido o amor e o perdão de Deus como algo automático, ligado às funções litúrgicas somente. Conforme a situação histórica do povo, palavras duras tornaram-se necessárias. Por isso o livro do profeta é intercalado com palavras de juízo e redenção.
Falso arrependimento é o tema central da perícope. Torna-se necessário, nesta época da Quaresma, refletir sobre essa questão e como ela se apresenta hoje em nossas comunidades; afinal, somos justificados por graça e fé. Não entendemos nós também o amor e o perdão de Deus de forma automática, assim como o povo naquela época? Arrependemo-nos realmente? Como recebemos a absolvição de nossos pecados? A palavra grega para arrependimento é metanoia e significa mudança de caminho, mudança de rumo. Perdoados e perdoadas mudam de rumo? Não julgamos nós de forma barata a graça de Deus?
Dietrich Bonhoeffer, em seu livro Discipulado, cujo texto é um clássico digno de nota, já nos alertava sobre essa tentação quando escreve:
Graça barata significa a graça como doutrina, como princípio, como sistema; significa perdão dos pecados como verdade geral, significa o amor de Deus (...) Como a graça tudo faz sozinha, tudo pode permanecer como dantes. A graça barata é a pregação sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão de pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado. (...) A graça preciosa assim o é (...) porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo, é preciosa porque custa a vida do homem, e é graça, por assim, lhe dar a vida, é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador (D. Bonhoeffer, p. 9-10).
Nosso reformador diz: Afirmo, entretanto, que não se pode provar, a partir da Escritura, que a justiça divina deseja ou exige do pecador qualquer pena ou satisfação, mas sim unicamente sua contrição ou conversão verdadeira, com o propósito de, doravante, carregar a cruz de Cristo (M. Lutero, p. 32).
A graça barata, distribuída sem discipulado, vem a ser um verme que corrói as comunidades e, por sua vez, a igreja. Creio que a graça barata é para nós, obreiros e obreiras da IECLB, uma saída muitas vezes usada. A certeza do perdão não nos deixa acomodados e acomodadas como obreiros e obreiras e como comunidades? Não abandonamos uma teologia libertadora e assim também a graça preciosa? A teologia da libertação parece ter passado. Prova disso é o próprio Proclamar Libertação. Estamos mais “mansos”. Análise de conjuntura pouco fazemos. A Associação de Pastoras e Pastores da IECLB (APPI) luta para organizar uma classe, “a pastorada”, que não quer ser organizada. Até parece que nossos direitos estão todos assegurados, ou organização e reivindicação é coisa de baderneiro? Vamos manter a ordem! Cada um em sua paróquia “encantada”. Quando tomamos posturas claras? Somos capazes de desafiar os causadores de injustiças nesse nosso meio de trabalho? Há mais obreiros e obreiras do que vagas, fiquemos então assim, quietos, acobertados por uma graça... Este tema, graça barata, apontado por Oséias, descrito por Bonhoeffer e também por Lutero, serve para nós como reflexão. A graça barata sustenta o nosso status quo? Por enquanto, vamos seguindo...
3. Pistas para a pregação
A sugestão de pregação é dividida em três partes, fundamentando-se cada uma delas nos textos sugeridos para este quarto domingo da Quaresma. Eis a proposta:
Oséias 5.15-6.2: O contexto em que viveu o profeta, principalmente visto sob o aspecto religioso, é fundamental para a compreensão da perícope. O profeta aponta o falso arrependimento. Algo que ainda hoje temos em nosso meio cristão. Assim: a) contexto do profeta e sua pregação; b) ainda hoje temos falso arrependimento. Podemos aqui perguntar aos ouvintes se eles concordam ou não com essa afirmação.
Romanos 8.1-10: Somos perdoados por Deus por intermédio de Cristo Jesus. O perdão de Deus não é dado por nosso próprio mérito, mas dado por graça divina. Vivemos sob a graça de Deus, que perdoa o pecador. Assim: a) o profeta aponta o falso arrependimento; b) o perdão nos é dado por Deus por meio de Cristo; c) não podemos nos acomodar na graça de Deus – graça barata; d) o que seria demonstrar arrependimento?
Mateus 20.17-28: Demonstrar arrependimento é seguir a palavra de Jesus Cristo. Assim: a) arrepender-se é conforme o texto em questão: “(...) quem quiser ser importante, que sirva os outros (...)”; b) quem recebe o perdão de Deus e realmente se arrepende coloca-se a serviço do outro, não transforma a outra pessoa em objeto.
Escopo: Oséias nos alerta para o falso arrependimento. Receber o perdão não é um ato litúrgico simplesmente. O perdão nos é dado por intermédio da graça de Deus, que nos faz ser novas criaturas em Cristo Jesus. Essa graça de Deus não pode ser barata. Ela exige mudança de mente. É necessário “servir”. Arrependimento sem diaconia é falso.
4. A celebração
Quando da realização do nosso Dia Sinodal do Sínodo Vale do Taquari, um dos momentos de maior comoção, na minha opinião, foi a confissão de pecados. Por quê? Usamos o recurso de um telão, que reproduzia imagens relativas à situação de pecado que confessávamos naquele momento. Quando da injustiça social, imagens de pessoas excluídas e assim por diante.
Uma sugestão de recurso litúrgico seria usar imagens, como, por exemplo, imagens recortadas de jornais, ou o telão, para quem tem essa possibilidade. Imagens de situações de pecado. Estas imagens poderiam ser colocadas no corredor, e assim as pessoas passariam por elas, ou ainda no altar e convidar, quando da confissão de pecados, as pessoas presentes para uma aproximação. Podemos ainda usar arame de cercas, simbolizando as nossas diferenças. Quantas cercas nos separam hoje? A cerca da exclusão social, cultural, econômica, social... Sendo a idéia do texto um arrependimento sincero, imagens e objetos que representam ou mostram a realidade de pecado em que vivemos ajudam-nos a descobrir a responsabilidade que temos.
No caso da celebração da Ceia do Senhor, como gesto simbólico de comprometimento com uma mudança, após o Credo Apostólico as pessoas poderiam retirá-las e colocá-las sobre a mesa do altar. A idéia é demonstrar que a ceia que celebramos quer acabar com essas situações.
A bênção final deve ser enfatizada como um envio concreto para o arrependimento sincero, ou seja, segundo o evangelho do domingo, o servir. Como sinal de que vamos em busca do servir, cada participante poderia receber, no final, um pequeno pão, que levaria para alguém que não se encontra no culto, buscando, em especial, pessoas com alguma dificuldade, como um doente, por exemplo. De forma concreta vamos ao encontro da outra pessoa. Somos perdoados e perdoadas por Deus, mas também convocados e convocadas para ações de diaconia.
Bibliografia
BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1989.
DOBBERAHN, Friederich Erich. Oséias 5.15-6.2. In: HOEFELMANN, V.; SILVA, J. A. M. da. Proclamar Libertação, São Leopoldo: Sinodal, 1992. p. 95-102.
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. Vol. 2. Da época da divisão do Reino até Alexandre Magno. São Leopoldo (RS) e Petrópolis (RJ): Editora Sinodal e Vozes, 1997.
LUTERO, Martin. Um sermão sobre a indulgência e a graça. In: Obras Selecionadas, vol. 1, São Leopoldo e Porto Alegre: Editora Sinodal e Concórdia Editora, 1987. p. 31-34.
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1994.