Auxílios Homiléticos - Proclamar Libertação



ID: 2911

Mateus 5.1-12

Auxílio Homilético

02/02/2020

 

Prédica: Mateus 5.1-12
Leituras: Isaías 9.1-4 e 1 Coríntios 1.18-31
Autoria: Roberto Natal Baptista
Data Litúrgica: 4° Domingo após Epifania
Data da Pregação: 02/02/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV

A práxis de uma vida com sentido

1. Introdução

Estamos no período da Epifania. Expressamos nessa época um sentimento inesperado de compreensão de um mistério. Epifania nos revela, especialmente, o Cristo. Passamos há pouco pelo final de 2019 e agora começamos 2020. Pode ser que ainda estejamos contaminados pelas muitas “previsões” que se fazem a cada virada de ano. Na Epifania, pessoas cristãs não “adivinham” nem “preveem”. Tratamos de um mistério revelado nos evangelhos, nas boas notícias para um novo ano.

O texto de pregação previsto para essa época é Mateus 5.1-12. Trata-se do famoso texto das bem-aventuranças proferido por Jesus no também conhecido sermão do monte (Mt 5 – 7). Textos como esse são textos “ocupados”. Quero dizer: textos que já foram exaustivamente trabalhados nesses tantos séculos de cristianismo. Quando nos aproximamos de textos assim, costumamos “baixar a guarda”, numa atitude do “já conheço” ou “já sei tudo sobre isso”. É sempre, portanto, um enorme desafio se aproximar de “textos ocupados”. Por outro lado, não podemos deixar de mostrar nossa satisfação pela oportunidade de ler e refletir sobre tão belo sermão de Jesus.

Muitas vezes o Proclamar Libertação utilizou porções das bem-aventuranças como 5.1-10 e outras vezes (como é o caso aqui) 5.1-12. Sem levar em conta as questões de composição do texto a partir das fontes primárias, é interessante trabalhar os versos de 1-12 como uma só perícope. Afinal, a ruptura de conteúdo e de forma aparece logo e a partir do v. 13.

Recomendo que olhemos para auxílios homiléticos já publicados sobre esse texto. Eles estão disponíveis no Portal Luteranos e podem ser facilmente acessados.

– Ivoni Richter Reimer faz uma boa exegese do texto no volume XVIII (1993). Ela se preocupa não tanto com a prédica, mas sim em nos fornecer subsídios exegéticos para que possamos pontuar bem o texto na tensão entre a felicidade e a pobreza.

– No PL IV, de 1979, Knut Robert Wellmann comentou o texto para o Dia da Reforma daquele ano. Ele aborda novamente as questões da pobreza e da felicidade. É interessante ler sua reflexão e encarar o desafio de contextualizar o texto para agora, em 2020.

– A contribuição de Walfrido da Silva e Ildemar Kanitz para o PL 32 (ano de 2008), pode nos ajudar na direção da meditação. Eles nos dão algumas pistas, inclusive sugerindo imagens que podem ser incorporadas à prédica.

– No volume 38, de 2013, temos o estudo de Ana Isa dos Reis, que nos apresenta uma análise verso a verso e aponta pistas para a prédica.

Mais uma questão antes de entrarmos em nossa análise de Mateus 5.1-12. Junto ao texto principal da prédica, temos ainda, do Primeiro Testamento, o texto de Isaías 9.1-4, comentado algumas vezes no PL (números V, XVIII e 38). Recomendo o texto de Milton Schwantes no PL X. O texto de Isaías traz a bela imagem da luz nas trevas. No Segundo Testamento, temos o texto de leitura de 1 Coríntios 1.18-31, sobre o qual há comentários no PL V, IX, 20 e 21. A ênfase do apóstolo na Primeira Carta aos Coríntios é a “loucura” da mensagem do evangelho (a mensagem da morte de Cristo na cruz é loucura para os que estão se perdendo; mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus, v. 18). O sermão do monte também nos parece loucura?

2. Exegese

Não podemos negar: Jesus veio para todos, mas muito especialmente ao “doente”, ao “pecador” (Mc 2.17). No sermão do monte, Jesus radicaliza essa sua proposta de buscar quem mais necessita de Deus e da esperança: “os humildes de espírito”, “os que choram”, “os mansos”, “os que têm fome e sede de justiça”, “os misericordiosos”, “os limpos de coração”, “os pacificadores”, “os que são perseguidos por causa da justiça”. Quero ressaltar dois aspectos nessa aproximação inicial ao texto. A primeira: observar um pouco o contexto e a composição desse texto no Evangelho de Mateus. Segundo: ater-nos na compreensão de cada “grupo” que é declarado bem-aventurado e que tipo de promessas Jesus oferece a eles.

O contexto de Mateus 5

Tanto Mateus como Lucas encontraram as bem-aventuranças na fonte Q. Na versão de Mateus, o sermão do monte inicia em 5.1 e se estende até o primeiro verso do capítulo 8. Portanto nosso texto de 5.1-12 é uma pequena parte do sermão. Porém é uma bela porta de entrada.

Ivoni R. Reimer apresenta a estrutura simétrica do sermão. “O evangelista parece construir o Sermão simetricamente em torno de um centro, que é o Pai-Nosso (6.9-13). Há correspondência entre as unidades antes e depois desse centro (5.1-2; 7.28-8,1a = situação e reação; 5,3-16; 7.13-27 = introdução e conclusão do Sermão; 5,17-20; 7.12 = introdução e conclusão da parte principal; 5.21-48; 6.19-7.11 = parte principal; 6.1-8: 6.14-18 = justiça diante de Deus)”.

Aos lermos Mateus 5.1-12, não poderemos deixar de ler também o texto similar em Lucas 6.17-23. Antes de mais nada, é bom observar o contexto anterior. Mateus enfatiza que uma grande multidão segue Jesus, provinda de diversos locais: seguiam-no grandes multidões da Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judeia, e dalém do Jordão (Mt 4.25). Lucas ressalta em 6.17-19: E Jesus, descendo com eles, parou num lugar plano, onde havia não só grande número de seus discípulos, mas também grande multidão do povo, de toda a Judeia e Jerusalém, e do litoral de Tiro e de Sidom, que tinham vindo para ouvi-lo e serem curados das suas doenças; e os que eram atormentados por espíritos imundos ficavam curados. E toda a multidão procurava tocar-lhe; porque saía dele poder que curava a todos.

Quando comparamos as bem-aventuranças de Mateus e Lucas, percebe-se também que as ênfases são diferentes. Isso é normal, se levarmos em conta que os contextos nos quais os evangelhos foram produzidos são bem diferentes. Enquanto Lucas parece atribuir as bem-aventuranças a grupos concretos, Mateus parece ter “espiritualizado” as bem-aventuranças, como se costuma dizer.

O texto de Mateus 5.1-12

Vamos acentuar algumas bem-aventuranças em Mateus. É importante perceber as diferenças entre esse texto e as bem-aventuranças de Lucas 6. Para uma maior percepção dessa análise, veja o texto de Paulo Garcia citado na bibliografia. Da minha parte, farei apenas algumas relações entre os dois textos dos evangelhos.

V. 3 – A primeira bem-aventurança diz: Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. A expressão bem-aventurados corresponde ao termo grego makarios. É interessante observar que o termo denota alguém que recebe o favor divino. Temos conceito similar também no Primeiro Testamento como, por exemplo, no Salmo 1.1. O tema da felicidade já poderia ser importante abordagem em uma prédica. Volto mais adiante a esse ponto. O segundo conceito relevante nesse nosso verso é a expressão humildes de espírito. Perceba-se que Lucas (6.20) utiliza aqui simplesmente o termo pobre. Mais enfático ainda é o contraste que ele estabelece no v. 27 com os ricos: Mas ai de vós que sois ricos porque já recebestes a vossa consolação.

O termo utilizado para designar o pobre em Mateus e Lucas é o mesmo: ptochos. Não há motivos para tentar fugir do conceito da pobreza. O fato de Mateus incluir o genitivo ao termo nos dá a impressão de um conceito moral de pobre, como, por exemplo, humilde. No entanto, em muitas expressões de Jesus e nas cartas do Segundo Testamento, essa ênfase em relação ao pobre como foco principal do Evangelho de Cristo é por demais evidente. Mateus 5.3 reforça o reino dos céus como dádiva aos pobres de espírito. As expressões reino dos céus e reino de Deus se equivalem. Mateus, que destina seu evangelho a judeus, prefere utilizar reino dos céus, consoante a prática judaica de circunscrever o nome de Deus para não utilizá-lo em vão. Lucas e Marcos só utilizam reino de Deus.

V. 4 – A segunda bem-aventurança diz: Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Os que choram é uma expressão forte devido ao uso da palavra pentheō. Lucas utiliza o verbo klaiō, chorar, lamentar. Mateus escolhe um termo que aponta para o estado de estar triste, estar aflito. Trata-se de uma profunda tristeza que toma conta de todo o ser, como na perda de um ente querido. Mateus aponta para uma cura terapêutica: serão consolados, acharão conforto.

V. 5 – A terceira bem-aventurança diz: Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Este termo, manso (prays), é quase exclusivo de Mateus. Prays ocorre somente quatro vezes no Segundo Testamento, três delas em Mateus. Essa mansidão é característica da pessoa que tem autocontrole e tem por natureza um espírito de paz, que não tem a vingança como uma prerrogativa às possíveis violências que possa sofrer. A dádiva reservada a essas pessoas mansas é “herdar a terra”. Interessante: terra.

V. 6 – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos. Aqui também há uma diferença em relação ao Evangelho de Lucas, que enfatiza somente a fome: Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Mateus utiliza a expressão sede de justiça, que parece ser fruto de sua intervenção redacional, já que justiça é um termo-chave para o evangelista (cf. 5.20; 6.1; 6.33; 21.32).

V. 7-9 – As três expressões seguintes não possuem paralelo em Lucas: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem--aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus. Bem-aventurados os fazedores da paz, porque eles serão chamados filhos de Deus. O termo misericórdia também aparece nos sinóticos. Mas Mateus o utiliza mais que os outros evangelhos. Coração é o centro da vontade, dos sentimentos e da obediência a Deus, conforme a tradição judaica. Ter um coração limpo é estar inteiramente devoto a Deus. Segue a bem-aventurança aos pacificadores, os fazedores de paz. São pessoas que conseguem atuar em conflitos e levam, com a sua experiência e a sua personalidade, à paz.

V. 10-12 – Por fim, os três últimos versos possuem uma estrutura diferente dos versos anteriores. Parece ser uma primeira amarração dentro do sermão do monte:

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.

Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa.

Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós.

Segundo essa parte do sermão do monte, servir ao Evangelho de Jesus significa ser perseguido. Pelo menos assim o era no início do cristianismo. De fato, as propostas das bem-aventuranças – e as que se seguirão por todo o sermão do monte – são o avesso aos modelos em vigor do Império Romano e de tantos outros impérios. Hoje, para os nossos dias, as propostas de Jesus ainda são a inversão de toda a lógica socioeconômica: os últimos serão os primeiros.

3. Prédica

O texto de Mateus 5.1-12 é bastante denso. Qualquer um poderia escolher apenas uma bem-aventurança e se debruçar sobre ela por alguns minutos para a sua comunidade. Mas, acima de tudo, ninguém poderia deixar de enfatizar a própria expressão bem-aventurados, bem-aventuradas.

Os termos da alegria, felicidade e sentido da vida poderiam ser o foco da prédica, na minha opinião. Gosto muito da afirmação de Brakemeier em seu livro Sabedorias da fé: num mundo confuso, quando ele diz que “a alegria é o sentido da vida”. E alegria pode ser a ponte mais simples para a felicidade. Bertolt Brecht fez um pequeno poema chamado “Felicidades”, que inicia assim: “O primeiro olhar da janela de manhã. O velho livro perdido e reencontrado [...]”. A alegria precisa ser valorizada para que a vida adquira um sentido imediato e simples.

Porém não podemos deixar de acentuar, nesta prédica sobre Mateus 5, a práxis de uma vida com sentido. Como buscar a alegria e a felicidade em um mundo de famintos, de injustiçados, um mundo de violência e sem misericórdia? A realidade precisa dar vez à utopia. Essa estabelece um horizonte e uma esperança a ser construída em vida, na realidade, somada aos muitos momentos de alegria e felicidade. Entretanto, o evangelho promete uma alegria plena e duradoura já desde a superação de elementos do cotidiano de todos nós, elementos esses que tentam nos afastar da realização plena de nossas vidas.

Como havia dito anteriormente, uma bem-aventurança já nos ocuparia muito tempo em uma prédica. Um bom foco pode comunicar muito melhor do que dezenas deles. Escolha uma bem-aventurança e seja feliz. Uma boa reflexão e uma boa prédica para você e para a sua comunidade.

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. Sabedorias da fé: num mundo confuso. São Leopoldo: Sinodal, 2014.
BRECHT, Bertolt. Felicidades. Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2019.
GARCIA, Paulo Roberto. As bem-aventuranças em Mateus – Uma proposta de estrutura literária. São Bernardo do Campo: Instituto Metodista de Ensino Superior, 1995. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2019.


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Autor(a): Roberto Natal Baptista
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Natal
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 4º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 12
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2019 / Volume: 44
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 54633

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