Prédica: Mateus 27.33-54
Leituras: Isaías 52.13-53.12 e Hebreus 4.14-16; 5.7-9
Autor: Silvio Meincke
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 29/03/2002
Proclamar Libertação - Volume: XXVII
Tema: Sexta-feira da Paixão
Minha opção
Sigmar Keller, em PL 8, Carlos Musskopf, em PL 14, e Cláudio Molz, em PL 21, trazem-nos amplas informações exegéticas. Diante disso, quero limitar-me, aqui, a destacar alguns aspectos, apenas para falar, a seguir, da minha experiência com o relato de Mateus.
1. Alguns enfoques
A execução na cruz era metodicamente cruel. Foi criada pelos persas, e os romanos assumiram-na para aplicar a pena de morte em autores de crimes hediondos, escravos fugitivos e agitadores políticos, excetuando cidadãos romanos.
As autoridades romanas não se cansavam dessa crueldade. Já antes do nascimento de Jesus, crucificaram 3.000 judeus rebeldes na Galiléia, e quando destruíram Jerusalém, no ano 70, ergueram milhares de cruzes diante dos muros da cidade, sendo que os últimos fugitivos foram afogados, por falta de madeira para confeccionar as cruzes.
A crucificação sujeitava as vítimas a dores inimagináveis. Recentes descobertas arqueológicas confirmam os pregos nas mãos e nos pés. Sabe-se que as vítimas mais resistentes demoravam dias para morrer, expostas ao frio ou ao sol, debaixo de nuvens de insetos. Para evitar que aves e animais carnívoros dilacerassem os corpos ainda vivos, em alguns casos, quebravam-se os fêmures das vítimas para apressar a morte por sufocamento. Sem o apoio das pernas, o peso do corpo impedia a respiração.
Mateus não se demora na descrição da dor física de Jesus. Descreve, em detalhes, a zombaria que lhe dirigem os diferentes grupos de pessoas presentes no Gólgota.
Jesus envolve-se em conflitos sociais e políticos com o anúncio do Reino de Deus. O anúncio traz implícita a denúncia da realidade pecaminosa construída nas relações sociais, econômicas e políticas. O anúncio irrita os líderes mantenedores do sistema social. Por isso, querem eliminar o movimento carismático popular que Jesus encabeça.
Jesus assume o risco conscientemente até as últimas conseqüências. Sujeita-se ao sofrimento, rejeitando, inclusive, o linimento da beberragem de vinho com fel.
O escárnio é uma forma de destruição que excede a morte física, pois quer destruir também moralmente. Não há quem lhe dirija uma palavra de apoio, de reconhecimento. “Lamentamos a tua sorte – poderia alguém gritar-lhe –, mas admiramos a tua luta por uma causa justa.” Cada palavra e cada gesto de zombaria empurram-no para o isolamento e deixam-no cada vez mais só. Os romanos zombam com o título que fixam no alto da cruz. Os que passam zombam balançando a cabeça e o insultam. Os chefes dos sacerdotes, os professores da lei, os líderes dos judeus caçoavam. Até os dois ladrões o insultavam. Atiram-lhe no rosto as palavras da destruição e da reconstrução do templo e da autoproclamação como Filho de Deus. Desafiam-no a descer da cruz, como que a provocar nele a tentação (em analogia a Mt 4). Procuram provocá-lo ao lembrar a sua confiança em Deus, que agora não vem socorrê-lo.
Os soldados crucificam para exercitar a pena de morte. Os zombadores caçoam para destruir moralmente.
Mateus dá duplo sentido às palavras de escárnio. Querendo destruir, os zombadores confirmam inconscientemente o que Jesus é: ele é o Filho de Deus; ele veio para destruir e reedificar o templo; ele salvou os outros; e toda a sua vida, em palavra e ação, estava embasada na confiança em Deus.
Ainda que tudo possa indicar a ausência de Deus, Deus está presente, até os últimos estágios do sofrimento de Jesus. Encarnado em Jesus crucificado, está presente, ao lado, junto e mais: está nele. Deus está em Jesus indefeso, impotente, crucificado, abandonado, para dizer que está nos/as mártires jogados/as no redemoinho massacrante do pecado e dos equívocos da humanidade; presente em sua totalidade, tão presente que está junto, não como Deus tapa-furo, que vem de cima, quando alguém o chama para tirar do aperto, mas Deus solidariedade, que sofre e vai junto até o mundo dos mortos.
O gritar do versículo 50 – kratzein – é mais do que um simples grito de desânimo. É grito em oração de quem chega ao fim da sua missão e se entrega em oração. Com isso, Mateus assinala que Jesus assume a morte como ato voluntário seu.
E a cortina do templo se rasga de alto a baixo. Descendo até as últimas conseqüências do anúncio do Reino de Deus e da conseqüente denúncia do pecado que mata (pela cruz, pela espada, pela fome), Jesus põe a nu a intimidade mais íntima do poder que trança o cipoal e faz girar o redemoinho: o templo, onde as autoridades guardam um deus que crucifica legalmente para eliminar quem reúne o povo na luta pela vida, pois o templo representa o vértice do poder constituído.
Mateus proclama o servo sofredor ao longo de todo o seu evangelho, desde a história do nascimento, e atribui a Jesus palavras sobre o servo sofredor (8.17 e 12.18-21). Pobre, humilde, dependente de Deus (5.3-5; 11.28-30; 21.5), ele é especialmente na cruz. Abandonado por todos (27.43-44), é abandonado por Deus (27.22). Em torno da palavra do Sl 22.2 Mateus constrói o seu relato da crucificação e da morte. Abandonado por Deus, grita por Deus, porque nas profundezas do abandono, Deus está com ele, ao lado dele, junto dele, presente nele, porque nele encarnado.
2. Minha experiência com a Paixão
Nos meus tempos de menino, na época de Paixão, eu folheava um livro com quadros de renomados mestres da pintura, que ilustravam a dor física do Jesus crucificado: os pregos, a coroa de espinhos, o ferimento da lança impressionaram-me profundamente. Aos sábados, na escola comunitária General Daltro Filho, o professor cantava conosco “Ó fronte ensangüentada, ferida pela dor, de espinhos coroada, marcada pelo horror!”.
Eu tinha certeza de que ninguém jamais sofrera tanto quanto Jesus sofreu. Eu não conhecia sofrimento semelhante de outras pessoas, porque o meu mundo tinha o tamanho da nossa picada, de pequenos agricultores, sem conflitos sociais visíveis. Eu era jovem demais para perguntar pelos motivos que levaram os crucificadores e seus mandantes a praticarem tamanha crueldade. Eram para mim homens maus simplesmente. Eu ainda não estava em condições de refletir sobre os contextos históricos que geraram aquela cruz. O culpado maior era eu, pois: “Eu mesmo sou culpado de tua cruz, Senhor. Ó vê-me, aflito e pobre, castigo mereci, com tua graça encobre o mal que cometi!”.
Via Jesus como um jovem inocente, “cordeiro imaculado”, sem inserção social ou política, fora dos conflitos da história humana, porque eu não tinha noção de conflitos. Via-o como uma pessoa ideal, acima da história, inocente, que Deus castigou no meu lugar e que sofreu para livrar-me do meu sofrimento, pois: “O que tens suportado foi minha própria dor”.
O sentimento de culpa pelo sacrifício do cordeiro inocente, crucificado por mim, acompanhou-me para o Instituto Pré-Teológico com um avanço. Ali, os meus pecados ganharam contorno: invasão do pomar para apanhar bergamotas e abacates; um dever de casa malfeito; um cigarro nas clareiras do matinho; uma fuga ao estádio de futebol para vibrar com o choque de dois gigantes negros: Juarez, no ataque gremista, com Toruca, na defesa do Aimoré. O pecado se avolumava por causa da falta de dinheiro, pois era preciso enganar os policiais e pular a cerca do estádio.
Como estudante na Faculdade de Teologia, comecei a despertar para a realidade dos conflitos sociais. Naquela época, parcelas organizadas do povo reclamavam maior liberdade, lutavam pelos seus interesses e exigiam maior justiça social. Em resposta, as camadas dominantes chamaram os militares para instalarem a ditadura, com seus porões de tortura, onde penduravam os militantes presos nos paus-de-arara, afogavam-nos em tonéis cheios de excrementos e apagavam charutos nas partes mais sensíveis dos seus corpos nus, além de fazer desaparecer muitos deles. Aprendi que os ditadores do poder instituído inventavam instrumentos similares à cruz, no que tange ao efeito de silenciar a quem ousasse questionar a sua ordem.
Relendo os relatos da paixão de Jesus, a sua entrada na capital Jerusalém, a sua crítica ao poder centrado no Templo, as suas curas em dias de sábado, a sua convivência com os impuros e injustos para o sistema, convenci-me de que Jesus, com o seu grupo, ainda que moralmente inocente, não o era politicamente; ele provocou o conchavo dos poderes, porque os desafiou, e eles decidiram erguê-lo na cruz. Entendi, então, que morre nas dores, nas angústias, na impotência, solidário com todos/as mártires, vítimas do cipoal de pecados da realidade humana, ao lado das vítimas indefesas e impotentes, seja dos próprios equívocos e pecados, seja das atrocidades do Império Romano, da caça à bruxas da Idade Média, das loucuras do Terceiro Reich, da escravatura assassina contra os negros, do extermínio dos povos indígenas, da repressão aos movimentos sociais da história brasileira de todos os tempos. Compreendi também por que a massa popular não-organizada e, por isso, manipulável pode saudar Jesus com entusiasmo e, logo depois, com o mesmo entusiasmo, gritar “crucifica-o”. Ainda não tendo a Rede Globo, os poderosos já tinham os seus recursos para fazer a cabeça da massa.
Privilegiado pela possibilidade do estudo e pela inserção nos movimentos populares, no decorrer do meu trabalho pastoral, vi crescer em mim a imagem do Jesus da história e diminuir a imagem do Jesus a histórico, crescer a imagem do Jesus solidário e diminuir a imagem do cordeiro inocente, morto por mim. Hoje, vejo que Jesus foi à cruz porque se colocou incondicionalmente ao lado dos que afundam nos seus equívocos; dos que lutam por justiça e são esmagados; dos que morrem por querer que os perdidos, os desviados, os excluídos, os injustiçados tenham vida; que foi crucificado por um conchavo de poderosos que não admitiram o surgimento de um movimento popular carismático que os questionava; que o próprio Deus encarnado nele foi junto com ele e sofreu com ele, assim como acompanha e se coloca ao lado dos esmagados de todos os tempos. Vejo que o grito de abandono do Deus presente, no mais profundo abismo do sofrimento e da solidão, é o início renovado da fé. E, assim como Deus age com o crucificado, reerguendo-o para a vida, assim age com os seus que são tragados pelo redemoinho dos pecados pessoais e da humanidade toda.
3. O desafio
Vejo-me desafiado a expressar a minha leitura da cruz nas celebrações da Semana da Paixão: na liturgia, na prédica, na eucaristia. Não consegui avançar muito nesse intuito, porque sei que a maior parte dos membros das nossas comunidades enormes e tradicionais vem ao culto uma vez por ano, para buscar a salvação eterna no corpo e no sangue do cordeiro inocente, sacrificado pelo pecado deles e no lugar deles, numa atitude de vingança de Deus, necessária, para não vingar-se neles e poder amá-los. A maior parte dos membros tradicionais continua cultivando uma imagem de Jesus totalmente desvinculada dos conflitos da história e, por isso, apesar de virem à ceia, alguns deles chegam a oferecer o relho ao pastor pelo simples fato de o pastor pedir uma coleta em favor dos flagelados “vagabundos” do Nordeste, ou saem da comunidade porque ficam sabendo que o pastor paga (do seu bolso) o leite e a creche dos filhos de um casal de desempregados.
As professoras do pré-primário, ao lado da minha casa (inclusive as que se formaram em Ivoti), transformam o ressurreto em coelhinho e antecipam a festa dos chocolates para a quarta-feira, já que nos dias seguintes não têm aula, e na segunda-feira a Páscoa já passou. Com isso, a cruz fica totalmente fora das histórias que contam às crianças. Em verdade, elas percebem que o mais importante fica faltando em sua abordagem da Paixão e da Páscoa e, por isso, chamam o/a pastor/a para realizar uma celebração com elas e com as crianças.
Eu gostaria de celebrar um culto na Sexta-feira da Paixão, no qual a comunidade experimentasse duas perspectivas da cruz:
– Deus, em Jesus Cristo, encarnado na realidade humana, chega tão perto de mim, que me acompanha até o mais profundo sofrimento da dor física, da solidão, da rejeição, do fracasso a que me levam os meus próprios equívocos e o meu pecado ou que me levam as conseqüências dos equívocos e do pecado de outras pessoas.
– Deus, em Jesus Cristo, encarnado na realidade humana, acompanha até o mais profundo sofrimento da dor física, da solidão, da rejeição, do fracasso e da derrota, os militantes do seu Reino, massacrados pela calúnia, pela traição, pela zombaria, pela tortura física, pela morte, aplicada pela ordem que interessa ser preservada aos que têm o poder.
Nas celebrações da Paixão, eu gostaria de permanecer na cruz e não avançar para a Páscoa. Gostaria de guardar a mensagem da Páscoa para a Páscoa, não apressando a vinda do coelho com seus chocolates no Jardim de Infância e não apressando a palavra da ressurrreição, quando o assunto é a cruz. Na Páscoa, então, gostaria de anunciar a forma como Deus lida com os seus, que experimentam a profundidade da dor, do abandono, da exclusão, como conseqüência do pecado próprio ou do pecado alheio. Ele levanta para a vida a quem acompanha ao mundo dos mortos.
Gostaria de apontar para as mulheres que, ainda que só de longe, olhando para a cruz e chorando, ficam solidárias com Jesus. A partir dessa atitude de solidariedade, gostaria de estimular a comunidade para a solidariedade com aqueles/as que não conseguem realizar as suas necessidades básicas para uma vida feliz e abundante:
– apoiar e ajudar as pessoas que não conseguem alcançar as necessidades básicas materiais, como alimentação, agasalho, moradia, assistência médica e dentária;
– apoiar e integrar as pessoas que não conseguem realizar as necessidades básicas sociais, abrindo-lhes espaços de integração e participação nas decisões que constróem as relações sociais em que vivem;
– apoiar e abraçar as pessoas que não conseguem realizar as suas necessidades afetivas, manifestando-lhes carinho, respeito e aproximação, em nível de valorização, auto-estima, amizade e proximidade;
– apoiar e confortar as pessoas que não conseguem realizar as suas necessidades espirituais, testemunhando-lhes o perdão, a reconciliação, o amor, a aceitação gratuita e o refúgio de Deus, que acompanha, no Cristo abandonado, a quem experimenta o abandono de Deus.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia