Prédica: Mateus 27.33-50 (51-54)
Autor: Sigmar Keller
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Data da Pregação: 01/04/1983
Proclamar Libertação - Volume VIII
I — Delimitação da perícope e análise de literatura
1. A atual proposta de delimitação da perícope deixa aberta a possibilidade de, eventualmente, incluir os vv.51-54. Aliás, não encontrei nenhum auxílio homilético que, no caso de passar do v.44, não estendesse o texto até o v.53, pelo menos.
Um comentário consultado apresenta uma proposta de correspondência até formal entre os acontecimentos relatados nos vv.45-49 e os vv.51-56. Em torno do v.50, que é o centro agregador da perícope, correspondem: o v.45 aos vv.51-53, o v.46 ao v.54, os vv.47-49 aos vv.55-56.
Não deixa de ser um esquema interessante, embora me pareça um tanto artificial. O que é mais significativo, entretanto, é que neste esquema fica bem claro um modo de pensar: é necessário compensar triunfalmente o rebaixamento de Jesus acontecido antes da morte. E este modo de pensar não condiz plenamente com a apresentação dos textos.
Há um detalhe que chama a atenção de modo especial. É a procura, quase angustiante, pelo momento ou fato que desencadeia a mudança, que coloca um fim ao rebaixamento de Jesus e dá início à apresentação de seu poder inequívoco.
Dentro desse modo de pensar, o grito de Jesus pode ser o momento da virada: Jesus grita — e os sinais de triunfo começam a aparecer. Via de regra, os sinais são apresentados nos vv.51-54(55-56). Mas há também alguns pesquisadores mais escrupulosos, que separam 51a, 54 (sem a fundamentação de Mateus) e 55-56, considerando-os o original, digno de crédito. No fundo, porém, este procedimento retalhista não altera a questão básica.
Também a entrega do espírito tem sido vista assim: os homens podem pensar que tiram tudo de Jesus — mas o espirito não conseguem tirar! E este espírito agora começa a agir.
Se quisermos testar este modo de pensar exposto acima, os relatos da paixão e da ressurreição feitos por Mateus se tornam especialmente interessantes. Como dito, eles não condizem plenamente com tal pensamento, e isto pelo seguinte:
a) À morte de Jesus, v.50, não seguem apenas relatos de grandes sinais. Mateus destaca-se especialmente por uma continuação não gloriosa: o sepultamento (57-61) é extremamente humilde (será interessante comparar com os outros evangelhos); permanece a marca de embusteiro sobre Jesus (63-64); Pilatos, nos seus conchavos com os lideres judeus, continua sendo o poderoso que é (58,62-66), sendo até solenemente trapaceado (28.11,14); o poder do dinheiro está mais ativo do que nunca (28.11 -15); a ressurreição de Jesus é considerada impossível pelas mulheres que foram ao túmulo (28.1,6), não se impõe como verdade nem em círculos mais amplos (28.11,13,15), e nem convence plenamente seu círculo mais íntimo (28.17).
b) Não está acontecendo rebaixamento de Jesus no relato da paixão. Ele não está sendo prensado para baixo, humilhado. Não está sendo destituído da sua glória, despojado do seu poder. Este modo de enquadrar os acontecimentos condiz com a evidência aparente do agir e falar dos líderes judeus, soldados, romeiros e ladrões. Mas não identifica o problema real, não deixa ver o que de fato é a questão crítica.
Valho-me mais uma vez da pesquisa de outros, com um dado muito interessante: a paixão de Jesus pode e até deve ser vista lado a lado com a tentação de 4.1-11; paixão e tentação encontram-se interligadas da forma mais estreita possível — veja-se o trecho 16.21-23! E, o que nos interessa de modo especial, a armadilha que é ardilosamente posta para Jesus não é, se me permitem a figura, um buraco tapado para ele cair dentro, mas é um laço preso num galho para puxá-lo para cima. É a caracterização do Emanuel (1.23), do servo que carrega as doenças (8.17), daquele que é manso e humilde (11.29), que não está interessado em tumultos públicos (12.15-21) que é a causa do conflito. A tentação consiste em enganá-lo, suborná-lo, questioná-lo, ridicularizá-lo, para ver se, afinal, deixa de estar lá em baixo, deixa de ser humilde, deixa de ser sofredor, deixa de estar aí para os outros. Vejo aqui todo o peso e interesse do relato, e também a maior caracterização do Evangelho para nós: Jesus continua sendo nosso, aquele que não nos deixa, aquele que não desiste de nós, que não nos renega, nem diante da perspectiva da maldição (Gl 3.13).
2. Reconhecendo que no relato da morte está contido o Evangelho para nós, relato que não clama por retribuição, poderemos encerrar o texto da perícope no v.50.
Aliás, o Evangelho de Mateus se presta, como nenhum outro, a delimitar a perícope naqueles versículos que tratam daquilo que acontece na colina da Caveira. Isto está nos vv.33-50. Tudo o que vem depois do v.50 tem o foco de visão dirigido para fora da colina. Destaque-se, aqui, que até a confissão do centurião e de seus soldados encontra, para Mateus, sua motivação nos acontecimentos dos arredores. As mulheres, atentas, observam de longe. O que parece estar mais próximo da colina é o sepultamento (Cf. Jo 19.41 s).
II — O caminho para a prédica na análise dos detalhes
1. Num primeiro momento do texto, 33-37, são os soldados romanos que se ocupam com Jesus. Desde o v.27 são eles que comandam o espetáculo e o fazem no cumprimento rigoroso da cartilha pedagógica da opressão. A afixação da placa com a acusação (37) é bem interessante e instrutiva: é bom, para todos os efeitos, que não só o condenado (29), mas que também o povo todo saiba onde estão os limites da liberdade concedida. E isto se pode ler com muita clareza.
2. Parece que a mensagem foi bem entendida. Num segundo momento do texto, 39-43, isto se torna bem transparente na gozação que lhe dirigem os romeiros e habitantes de Jerusalém (39s): Estamos bem satisfeitos com os romanos. Eles nos permitem ter nosso santuário assim como ele está, mantendo a função que ele desempenha dentro do sistema! Os líderes judeus (41-43) também entenderam o recado: Estamos bem satisfeitos em sermos província romana. Não queremos este — 'rei de Israel — que desperta nossa memória histórica!
Quanto a esta memória histórica: Israel é o povo escravizado que Javé liberta do Egito. Conforme o relato exclusivo de Mateus, para não ser morto, Jesus, vai para o Egito e de lá é chamado por Deus (2.13SS), de volta para a terra de Israel! Dá até para lembrar o Credo Histórico (Dt 26.5-9; cf. 6.21-23). E o que compete, o que é característico ao rei de Israel, que o Salmo 72 expressa muito bem, isto está sendo completamente renegado.
3. Num terceiro momento, são mencionados os ladrões, 38,44, de quem não temos o conteúdo explicito dos impropérios dirigidos a Jesus. Mas é significativo que nem estes dois deserdados da sorte, ladrões que foram pegos, para quem qualquer lampejo de esperança seria lucro, nem estes querem saber de Jesus.
4. No quarto momento do texto, 45-50, os rostos já não são mais tão identificáveis. A menção da escuridão (45) teria algo a ver com isto? É sabido que à noite todos os gatos são pardos. Evidentemente, no v. 48 devemos excluir os crucificados como possíveis agentes. Mas, no mais, poderia ser qualquer um dos que estão ali; com grande possibilidade são soldados que aprontam o vinagre, enquanto que alguns judeus se encarregam da parte verbal.
Mas é importante verificar que nesta parte há também uma palavra de Jesus. Como Marcos, Mateus só nos transmite esta passagem desgraçada do Salmo 22. Aliás, ela é tão sem graça, quanto tudo o mais em Jesus. Mas, entre os ouvintes, desperta mais uma vez a expectativa de verse, finalmente, Jesus não aprendeu que só se admite agir pelos canais permitidos (o pistolão — Elias).
5. Os escárnios e blasfêmias dirigidos a Jesus contêm, com toda a fidelidade, um resumo do ser de Jesus: Filho de Deus, salvou os outros, confiou em Deus. A segunda expressão é bem comum nos evangelhos sinóticos; a primeira e a terceira são exclusivas de Mateus. Permitam que, aqui, recomende a leitura de Hb 2. (10-13) 14-18. Esta passagem fornece uma meditação muito significativa para a compreensão da filiação divina e do sentido libertador da morte de Jesus. Ele desqualifica a escravidão que isola, que cria conchavos e que postula a necessidade dos pistolões. Ele qualifica a vida partilhada dos filhos de Deus (nem usurpadores e nem escravos). Ele é o machado que corta a árvore ruim pela raiz (cf. Mt 3.10).
6. A libertação conquistada por Jesus é partilhada conosco. Na partilha, que acontece já e agora, nos é oferecida uma vida em liberdade. Liberdade que é acossada, desacreditada, questionada, subornada, distorcida, que tem como característica fundamental a luta na humildade e no sofrimento, uma vez que é proposta para todos. Se fosse proposta só para um grupo de especiais, teria seu lugar reservado entre os poderes deste mundo. Mas, por ser global, universal, que não deixa de questionar e reivindicar ninguém para esta vida partilhada dos filhos de Deus, por isto ela se choca com a proposta de dominação, neste mundo para o qual o Reino já chegou, mas onde ainda vale o ainda não.
III — Sugestão para leitura complementar
- BONNHOEFFER, D. Resistência e submissão. Rio de Janeiro, 1968.
- SCHMIDT, E. A cruz de Cristo como fundamento da esperança cristã. Estudos Teológicos, São Leopoldo, 18(1): 17-27, 1978.