Prédica: Mateus 23.1-12
Leituras: Miqueias 3.5-12 e 1 Tessalonicenses 2.9-13
Autoria: Ramona Weisheimer
Data Litúrgica: 23° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/11/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Entre vocês não pode ser assim
1. Introdução
O texto de pregação foi tratado no Proclamar Libertação, v. 2, por Richard Wangen; no v. 30, por Vera Weissheimer, com outros textos de leitura; e no v. 35, por José Manuel Kowalska Prelicz, com as leituras que temos agora.
Miqueias 3.5-12 traz uma mensagem contra as autoridades e os profetas: os profetas enganam o povo. Para os que lhes pagam prometem paz, mas ameaçam com guerra os que não lhes dão nada (v. 5). É uma palavra muito dura de juízo sobre as autoridades que recebem dinheiro para torcer a justiça, sacerdotes que cobram para ensinar a Lei e profetas que exigem pagamento para prever o futuro. Estão construindo Jerusalém sobre injustiça e crimes de sangue e ainda acham que nada de mal lhes acontecerá, porque o Senhor estaria ao lado deles. Por causa deles, Jerusalém será destruída.
Em 1 Tessalonicenses 2.9-13, o apóstolo Paulo lembra que trabalhou e lutou para que ele e seus colaboradores não fossem pesados aos tessalonicenses enquanto lhes anunciavam a palavra de Deus. Eles são testemunhas do seu agir limpo e correto.
O evangelho também fala contra os que impõem cargas que não se propõem a carregar, e chama a atenção para que os ouvintes não ajam assim, mas, pelo contrário, que sejam humildes e o maior seja aquele que sirva aos outros.
2. Exegese
Sobre o Evangelho de Mateus, pontuamos apenas algumas considerações feitas por Eduard Lohse, como a natureza doutrinária do evangelho, que busca sempre ressaltar a palavra, também os milagres e as controvérsias. Mateus sempre se refere ao AT, apontando que em Jesus se cumprem as Escrituras, sendo que a comunidade cristã é herdeira das promessas. O evangelista articula cuidadosamente promessa e cumprimento da promessa, sendo Jesus o Messias prometido nas Escrituras.
“O evangelho de Mt encontra-se enraizado profundamente no legado judaico [...] O que os escribas ensinam diz respeito também aos cristãos (Mt 23.1), embora os doutores pessoalmente não façam o que ensinam” (Lohse, 1985, p. 149). É pontuada ainda a familiaridade com o estilo de vida judaico, também dos leitores, já que o evangelista não precisa explicar, por exemplo, franjas e filactérios (23.5).
3. O texto
Na introdução (23.1), o texto indica os ouvintes de Jesus (a multidão e os seus discípulos), passando a uma crítica aos escribas e fariseus (23.2-7) e indicações para os discípulos sobre como devem agir (23.8-12).
Comparamos três versões do texto, a saber, Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), Bíblia de Jerusalém (BJ) e Almeida Revista e Corrigida (ARC). Em si, as versões não trazem muitas diferenças. Chamam a atenção o título dado pela BJ: “Hipocrisia e vaidade dos escribas e dos fariseus”, e o fato de a NTLH explicar algumas expressões, como estão sentados na cátedra / cadeira de Moisés (BJ e ARC), um móvel presente na sinagoga, que representava a autoridade magisterial de Moisés, e que fica na tradução: têm autoridade para explicar a Lei de Moisés (v. 2).
No v. 3, as três versões são bem parecidas (NTLH: por isso, vocês devem obedecer e seguir tudo o que eles dizem. Porém, não imitem as suas ações, pois eles não fazem o que ensinam). A BJ traz no comentário: enquanto transmitem a doutrina tradicional de Moisés. Isso não implica observar também suas opiniões pessoais. O v. 4 aponta para os fardos impostos aos outros, “um retrato representando
a acumulação de leis que os escribas e fariseus exigem do povo, e pintado como um feixe de lenha que vai se acumulando nas costas do portador” (Wangen, 1983) – fardos esses que, em sua arrogância, escribas e fariseus não se dispõem nem com um dedo a movê-los – ou na NTLH: a carregar estes fardos.
No v. 5 consta: fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens; trazem largos filactérios e alargam as franjas dos vestidos (ARC). A NTLH, além de chamar a atenção com um vejam como, no lugar de com efeito (BJ) ou pois na ACR, troca em miúdos, ou explica, o que são os filactérios – os trechos das Escrituras Sagradas que eles copiam e amarram na testa e nos braços, e franjas são pingentes grandes de suas capas.
No v. 6, todas as versões concordam: Amam os primeiros lugares, ou lugar de honra, nas ceias e as primeiras cadeiras nas sinagogas.
No v. 7, a ARC traduz: (gostam de) receber saudações nas praças e que os homens os chamem “Rabi”, enquanto a NTLH traduz Rabi por mestre.
A partir do v. 8, o discurso muda da crítica para o agir dos escribas e fariseus, para o chamado de atenção aos ouvintes sobre como eles devem agir.
NTLH: Porém vocês não devem ser chamados de Mestre (BJ e ARC, de Rabi), pois vocês são membros de uma mesma família e têm somente um mestre (BJ e ARC, todos vós sois irmãos).
O v. 9 conclama os leitores a não chamar ninguém na terra de Pai, pois eles têm somente um Pai, que está no céu.
No v. 10, as expressões mudam um pouco mais entre as versões: nem permitais que vos chamem guias (BJ); nem vos chameis Mestres (ACR); enquanto NTLH traduz: não devem ser chamados de “líderes”, porque vocês têm um líder, o Messias (nas demais versões “Cristo”).
V. 11 – Ao falar de humildade e serviço, muda o tempo verbal entre as versões: NTLH: entre vocês, o maior é aquele que serve os outros; BJ: o maior dentre vós seja aquele que vos serve; ARC: o maior será vosso servo – permanecendo a necessidade de seguir o exemplo do próprio Senhor, que serve aos seus em amor.
V. 12 – Quem se engrandece / se exalta será humilhado, quem se humilha será engrandecido.
No Proclamar Libertação v. 35, Kowalska Prelicz chama a atenção para alguns títulos citados: rabbi, título honorífico para mestres da lei (v. 7 e 8); didaskalos, mestre, professor, título de honra e respeito (v. 8); adelfoi, irmãos e irmãs, a comunidade cristã (v. 8); pather, pai, em sentido figurado, usado como modo respeitoso de saudação (v. 9); kathēgētēs, mestre, líder, guia, instrutor (v. 10); diakonos, servo, ajudante (v. 11).
Convém relembrar ainda alguns conceitos bem conhecidos:
Fariseus: formavam um partido político religioso que se aplicava a estudar profundamente a lei mosaica e as tradições dos antepassados, e exigia a mais rigorosa observância da sua interpretação da Lei, principalmente em relação ao sábado, à pureza ritual e ao dízimo. O nome é derivado comumente do aramaico (perishaya), no hebraico (perushim), os “separados”. Depois da queda de Jerusalém, sua atuação foi importante como herdeiros e guardiães do judaísmo e sua religião. Mas o zelo exagerado pela Lei e pela pureza legal teve como consequência não uma comunidade unida pela caridade, mas um isolamento altivo (Lc 8.9-14), desprezo pela massa ignorante e impura (povo), com quem não queriam se misturar.
Escribas: desde o tempo de Esdras, são chamados assim todos aqueles que são entendidos nas coisas da Lei, os doutores da Lei. O seu título de honra é Rabi. Assim, formou-se, ao lado da classe sacerdotal, a classe dos escribas, que bem depressa pretenderam ser os chefes espirituais do povo. E, de fato, eram geralmente conhecidos como tais. “[...] Jesus condenou-lhes a casuística teológico-jurídica, e a conduta hipócrita” (Born, 1971, p. 472).
Borlas / franjas: Conforme prescrição de Números 15.38-41, os israelitas tinham a obrigação de usar borlas (no NT: “franjas”) nas extremidades de suas vestes, e nessas borlas um fio roxo. Jesus as usava. A franja deveria ter pelo menos um comprimento de três dedos (Hillel) ou de quatro dedos (Shammai). Por piedade ostensiva, porém, era feita mais comprida (Mt 23.5). Segundo Números, a borla é um sinal que lembra ao israelita os mandamentos de Javé. O fio roxo era interpretado tradicionalmente como símbolo do céu, do firmamento, do trono de Deus. Por causa desse sentido religioso, os doentes procuravam tocar nas borlas das vestes de Jesus.
Filactério: Conforme costume rabínico, baseado em Êx 13.9,16; Dt 6.8; 11.18, todo israelita deveria usar filactérios na oração da manhã, exceto aos sábados e dias de festa. Aos filactérios liga-se uma caixinha quadrada ou um pequeno cilindro, em que se encontram quatro textos do Pentateuco, escritos em pergaminho (Êx 13.1-10; 13.11-16; Dt 6.4-9; 11.13-21). Uma caixinha era amarrada de forma a ficar na fronte; outra, amarrada na mão e no braço esquerdo, e a outra caixinha ficava exatamente na frente do coração. Esse costume atende literalmente à prescrição de Deuteronômio 6.8.
4. Meditação
Esse discurso, dirigido às multidões e aos seus discípulos, é o último pronunciamento público registrado pelo evangelista Mateus. Jesus fala aos discípulos e às multidões que os mestres da Lei e fariseus têm autoridade para explicar a Lei de Moisés, e nisso devem ser obedecidos. Mas não se deve seguir seus exemplos e conduta hipócritas, pois gostam de ser reconhecidos por sua grande piedade e de serem vistos em alta conta, mas nada fazem para aliviar a carga que eles mesmos impõem aos mais humildes. Entre vocês não deve ser assim: não busquem ser chamados mestres, guias, líderes, mas ajam com humildade, servindo ao invés de querer ser servidos. É sintomático que o título dado pela BJ para essa perícope seja “Hipocrisia e vaidade dos escribas e dos fariseus”.
Confesso que fiquei impactada com o comentário de Tasker a esse texto, quando lembra que
ao ler este capítulo é importante lembrar que nem todos os fariseus estavam sob a condenação de Jesus, e que havia bons e maus fariseus, exatamente como sempre houve e ainda há bons e maus cristãos. De fato, os defeitos expostos nessa seção tendem a ser os defeitos de todos aqueles cujo zelo pela religião não é moderado pelo amor caridoso, pela misericórdia e pelo bom senso (1980, p. 171).
E enquanto se restringem a expor a Lei de Moisés, as palavras dos escribas devem ser respeitadas. Mas quando insistem na meticulosa observância das minúcias da Lei ou ampliam um preceito particular, deixam de ser os guias para ser os opressores dos pobres.
Tasker segue dizendo que
o orgulho pela posição, o amor do poder, e a influência sobre outros que a posse de coisas como títulos profissionais e eclesiásticos tende a trazer consigo, estavam arruinando a influência espiritual de muitos dos fariseus do tempo de Jesus; e eles foram usados por Ele como severa advertência a todos que queiram reconhecê-lo como Senhor e Mestre, e que queiram passar a vida em serviço humilde como filhos do Pai celeste – advertência que, singularmente, com demasiada frequência tem sido ignorada por muitos que se chamam pelo nome de Cristo (1980, p. 172).
Por isso, entre vocês não pode ser assim... É preciso ajudar a carregar as cargas, não impô-las ou aumentá-las à exaustão e desespero. Viver a fé não pode ter nada que cheire a exibicionismo religioso ou busca de audiência. Mas tem a ver com cuidado, com serviço, com humildade.
O que me chama atenção no texto de Tasker, enfim, são as tantas vezes que nos lembra que esse orgulho de se sentir mais santo que os outros não é exclusividade dos antigos fariseus, mas se aplica também a muitos que se dizem cristãos e, lembrando o texto do profeta Miqueias, ainda hoje torcem o direito e a justiça, cobram pelo que devia ser dado, e dizem: Nenhum mal vai nos acontecer porque o Senhor está do nosso lado (v. 11). Mas entre vocês não pode ser assim!
5. Imagens para a prédica
Hipocrisia é a arte de exigir dos outros aquilo que não se pratica. Poderíamos elencar uma série de pequenas ações do dia a dia que também nós fazemos. E daí a lista é grande: reclamar que as crianças e jovens não “desgrudam” do celular, enquanto os pais mal têm tempo de atendê-las, porque estão “grudados” no celular; criticar o desrespeito no trânsito, quando por vezes também não respeitamos todas as regras; esperar que nossos filhos amem a igreja, quando nós mesmos pouco a frequentamos e não os levamos; enfim, exigir dos outros o que não estamos dispostos a fazer.
Há poucos dias, celebramos o culto de Ação de Graças pela Colheita aqui em Rolândia/PR, e o altar foi adornado com muitos frutos, legumes, cereais e um lindo pão, no qual se lia “Erntedankfest”. Ainda não havia flores, que foram trazidas depois. Uma amiga, que estava lá, disse: “Na minha igreja somente as mulheres consagradas e sem nenhum pecado podem trazer flores para o altar. Eu sempre quis, mas nunca pude”. Fiquei me perguntando se, com esses requisitos, alguém poderia enfeitar o altar com flores.
6. Subsídios litúrgicos
Kowalska Prelicz (2010) lembra que, no Livro de Culto da IECLB, parte IV, p. 200, há uma liturgia completa para esse texto. Porém, ela não traz uma temática específica, e o texto do Evangelho de Mateus é acompanhado de outras leituras (Ml 2.1-2, 4-10 e 1Ts 2.8-13).
Confissão de pecados: Bondoso Deus, nosso Pai, colocamos diante de ti nosso cansaço, nosso fracasso, nosso medo. Medo de jamais corresponder às exigências que nós mesmas fazemos ou que outros nos impõem; medo do fracasso, quando impomos fardos que não estamos dispostas a carregar. Tu, que és Senhor amoroso, que nos acolhes sem nosso merecimento, ensina-nos a perdoar como queremos ser perdoadas; a acolher como queremos ser acolhidas; a respeitar como queremos ser respeitadas; a servir como queremos ser servidas. Perdoa-nos, pois reconhecemos que não apenas os outros são frágeis e se enganam, nós também somos frágeis, nos enganamos, somos carentes de amor e perdão. Tem misericórdia de nós e ensina-nos a amar. Em nome de teu Filho amado, nosso Senhor e Salvador. Amém.
Bibliografia
BORN, A. van den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro; Petrópolis: Vozes, 1971.
KOWALSKA PRELICZ, José Manuel. Auxílio homilético para Mateus 23.1-12. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010. v. 35, p. 335.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
TASKER, R. V. G. Mateus – introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1980.
WANGEN, Richard. Auxílio homilético para Mateus 23.1-12. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1983. v. 2, p. 158ss.
WEISSHEIMER, Vera. Auxílio homilético para Mateus 23.1-12. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2004. v. 30, p. 259ss.
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