Prédica: Mateus 18.15-20
Leituras: Ezequiel 33.7-11 e Romanos 13.8-14
Autoria: Clarise Ilaine Wagner Holzschuh
Data Litúrgica: 14º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 10/09/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
Solidariedade e fraternidade
1. Introdução
Estamos no 14º Domingo após Pentecostes, de 22 a 27 domingos possíveis nesse tempo, e no segundo domingo do mês de setembro, que segue o Dia da Independência do Brasil. Nos dias em que escrevo, estamos envolvidos em muitas situações de tristeza por acidentes nas estradas, pessoas sofrendo como frio intenso do inverno no sul do Brasil, insegurança na política, corrupção em todos os níveis e lugares, deputados rebatizando-se em pleno rio Jordão, luta pelo fim da violência contra a mulher, assassinato em massa nos Estados Unidos... Chega!
Em meio a isso, não tem como ficar imune a essas situações quando refletimos sobre o Evangelho de Mateus 18.15-20, que nos traz a temática do pecado. Não só o evangelho, mas também os textos complementares. Ezequiel 33.7-11 traz-nos a tarefa profética de denunciar o pecado e chamar para um novo caminho. Da mesma forma, a Carta aos Romanos 13.8-14 traz a lembrança dos mandamentos de Deus e que esses se cumprem pela vivência do amor. Traz também a proximidade cada vez maior do fim e a necessidade de buscar uma vida orientada pelo mandamento de Deus.
2. Exegese
O Evangelho de Mateus tem por conteúdo central apresentar Jesus como o Mestre da justiça. Ele é o único Mestre (9.11; 17.24; 19.16; 23.8; 26.18), que veio para “cumprir toda a justiça” (3.15). Cumprir a justiça é realizar a vontade do Pai que se expressa em sua Lei. O Evangelho de Mateus insiste muito na realização da justiça e no cumprimento da vontade de Deus.
Diante da insistência desses temas, buscamos a origem do evangelho, sua comunidade, sua autoria, e imaginamos que deva ser uma comunidade que sofre injustiças de seu tempo e lugar. Pesquisas revelam que o Evangelho de Mateus foi escrito no final dos anos 80 d.C., certamente provindo de comunidades que viviam na Palestina, numa região em que predominavam igrejas formadas por pessoas de origem judaica que migraram por ocasião da guerra judaico-romana. A migração intensificou-se com a perseguição sofrida por parte de lideranças das sinagogas nos anos 80 e 90. Os judeu-cristãos foram expulsos das sinagogas quando os rabinos fariseus passaram a liderar o judaísmo.
Mateus revela esse conflito entre as comunidades cristãs e as sinagogas, mas revela também tensão entre cristãos vindos do judaísmo e cristãos vindos de outras culturas, como pode ser visto em Mateus 5.17-48.
A elaboração do evangelho foi realizada por escribas judeu-cristãos (Mt 13.52; 23.34). Assim como os rabinos fariseus tentam reconstruir o judaísmo depois da destruição do templo de Jerusalém nos anos 70, os rabinos cristãos tentam reconstruir a tradição de Israel a partir da fé em Jesus de Nazaré como o Messias e Filho de Deus. Jesus deu novos rumos a Israel, e o Evangelho de Mateus quer dar identidade ao novo Israel, comunidades cristãs hegemonicamente de origem judaica.
O evangelho tem destinatários claros, quais sejam, as comunidades judeu-cristãs nascidas na Palestina e espalhadas pela Galileia e Síria depois de ser expulsas das sinagogas. Os membros dessas comunidades são “os pequeninos”: pessoas sem terra (Mt 5.1-5), desempregadas (20.1-6), migrantes (2.13-23; 4.13-16), perseguidas (5.10-12; 23.13-32) e pobres (11.25-26; 6.25-34; 25.31-46).
Diante de tanta injustiça, o libertador necessariamente precisa ser o Mestre da justiça. Mateus apresenta Jesus como Mestre da justiça, fazendo grandes discursos. E seu ensino tem autoridade (7.28-29), a tal ponto de propor alterações na Lei (5.21-48).
Além de apresentar Jesus como o Mestre da justiça, há outros três aspectos centrais no conteúdo do Evangelho de Mateus: 1) Apresenta Jesus anunciando a boa-nova a todos os povos, fazendo com que os judeus aceitem Jesus como o Messias esperado e ajudando as comunidades a acolher pessoas não judias em suas igrejas. 2) Valoriza de modo especial a tradição de Israel, incluindo Jesus na genealogia real de Israel. Jesus é salvo do massacre de crianças, assim como Moisés vem do Egito, proclama a Lei na montanha e pronuncia cinco discursos, como os cinco livros da Lei. O evangelho quer ajudar a devolver a identidade aos judeu-cristãos em crise por ter sido expulsos de seu próprio povo. 3) E dá ênfase à presença de Deus em nosso meio, o Deus Emanuel. Esse tema perpassa todo o evangelho; está no anúncio de seu nascimento, passa pela confissão de Pedro e está na boca de Jesus no final no evangelho.
O Evangelho de Mateus tem uma preocupação com o desenvolvimento de uma eclesiologia. É o único evangelho que cita a palavra ekklesia (assembleia, comunidade, igreja – Mt 16.18; 18.17). O capítulo 18, do qual faz parte nossa perícope, é o ponto alto dessa eclesiologia, e a maior parte é material exclusivo de Mateus. Mateus insiste na vivência fraterna (cap. 5-7, 18). A palavra “irmão” aparece cerca de 40 vezes. A reconciliação e a solidariedade são fundamentais para as relações entre novas mulheres e novos homens na comunidade.
Ao analisar a estrutura do Evangelho de Mateus, percebe-se que ele não está preocupado em descrever a prática de Jesus, mas em organizar o ensino do Mestre da justiça em cinco grandes discursos, contendo uma parte narrativa e outra discursiva. Cada discurso termina com a fórmula “ao terminar Jesus estas palavras” (confira Mt 7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1). Nossa perícope (18.15-20) é a parte inicial discursiva do quarto livro, que podemos intitular de “Comunidade, sinal do Reino”, que narra a igreja como seguidora do Mestre da justiça (13.53-17.27) e faz o discurso sobre o relacionamento entre os filhos e filhas do Reino na comunidade. Os cinco discursos (livros) são precedidos pelas narrativas do nascimento e infância de Jesus (cap. 1-2) e concluídos com as narrativas sobre a paixão e ressurreição de Jesus (cap. 26-28). Lutar pela justiça leva à morte, mas também gera vida e justiça plenas.
3. Meditação
“[...] onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20). Esta palavra de Jesus é muito usada em situações em que há poucas pessoas para justificar o encontro. Assim, isolada, fora de seu contexto, até dá para invocar a palavra. Porém, em seu contexto, mesmo menor, seu sentido é bem outro.
O evangelho tem como destinatários pessoas que tinham seu lugar de culto nas sinagogas e são expulsas. Isso causa perseguição, e elas migram para terras estranhas. Não têm mais lugar de culto. Sua religiosidade ainda está fortemente marcada pela expiação do pecado. Lembremos que as pessoas que formavam essas comunidades eram migrantes, sem-terra, pobres, desempregadas e perseguidas.
A sociedade do Império Romano era dura e sem coração, sem espaço para os pequenos. Esses buscavam um abrigo para o coração e não o encontravam. Nas comunidades, o rigor de alguns na observância da Lei levava para dentro da convivência os mesmos critérios injustos da sociedade e, quiçá, da sinagoga. Assim, começaram a aparecer nas comunidades as mesmas divisões que existiam na sociedade entre rico e pobre, dominação e submissão, falar e calar, carisma e poder, homem e mulher, raça e religião. Em vez de a comunidade ser um espaço de acolhimento tornava-se um lugar de condenação.
Jesus traz normas simples e concretas de como proceder no caso de algum conflito na comunidade. Se um irmão ou uma irmã pecarem, isto é, se tiverem um comportamento que não seja de acordo com a vida da comunidade, não se deve logo denunciá-los. Primeiro, procure conversar a sós. Procure saber os motivos do outro. Se não der resultado, leve mais duas ou três pessoas da comunidade para ver se consegue algum resultado. Só em caso extremo deve levar o problema para a comunidade toda. E se a pessoa não quiser escutar a comunidade, que ela seja para você como um publicano ou pagão, isto é, como alguém que já não faz parte da comunidade. Não é você que está excluindo, mas é a pessoa que se exclui a si mesma.
Essa exclusão não significa que a pessoa seja abandonada à sua própria sorte. Ela pode estar separada da comunidade, mas não estará separada de Deus. Caso a conversa na comunidade não der resultado e a pessoa não quiser integrar--se na vida da comunidade, resta o último recurso de interceder junto ao Pai para conseguir a reconciliação. E Jesus garante que o Pai vai atender.
O motivo da certeza de ser ouvido é a promessa de Jesus: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”. Jesus deixa claro que ele é o centro da comunidade e, como tal, junto com a comunidade, estará intercedendo junto ao Pai para que conceda o dom do retorno ao irmão ou à irmã que se excluem.
Todo esse processo leva-nos a concluir que na comunidade é necessário que todas as pessoas tenham voz, inclusive as que porventura tiverem pecado. A comunidade tem autonomia e autoridade para definir seus caminhos. Mas há um eixo todo especial: a comunidade tem que se organizar em função dos pequeninos. A parábola do credor incompassivo (Mt 18.23-35), que segue a perícope, revela que se trata de uma comunidade empobrecida e endividada; da mesma forma, a parábola da ovelha perdida (Mt 18.12-14), que está imediatamente antes da perícope. Aqui em Mateus, a ovelha perdida é o pequenino, o frágil, o pobre, perseguido, sem-terra e sem emprego, jogado à própria sorte, e “não é da vontade do meu Pai que nenhum desses pequeninos se perca”. A solidariedade com os pequenos é fundamental; ela é que deve ser o eixo principal que orienta o caminho e a organização da comunidade.
Juntando palavras de Jesus nesse discurso da comunidade, Mateus quer iluminar a caminhada dos seguidores e das seguidoras de Jesus, para que as comunidades sejam um espaço alternativo de solidariedade e de fraternidade. Devem ser uma boa notícia para os pequenos, pobres e desprovidos, sem qualquer segurança na vida.
4. Imagens para a prédica
Jesus fala-nos da necessidade de perdoar o irmão, a irmã. Não é fácil perdoar. Pois certas mágoas continuam machucando o coração. Há pessoas que dizem: “Eu perdoo, mas não esqueço!”. Rancor, tensões, brigas, opiniões diferentes, ofensas, provocações dificultam o perdão e a reconciliação. Por que será que é tão difícil perdoar? Existe espaço para a reconciliação em nossa comunidade? De que maneira?
Estamos em vias de celebrar os 500 anos da Reforma. Pensando nisso, trago uma imagem do reformador Martim Lutero quando ele fala do Batismo: são as pessoas que compõem a igreja, as comunidades nos dias de hoje. Lutero compara o Batismo a um barco. Se a pessoa pula fora, pode afogar. O barco não afunda, e as pessoas que ficam no barco chamam aquelas que caíram e as ajudam a voltar para o barco. Sempre é tempo de agarrar as mãos estendidas para voltar. É o processo de penitência e arrependimento dos seus erros. Quem assim vive está no caminho do Batismo, no caminho da salvação. Enquanto vivermos, precisamos de arrependimento. Quem está no barco precisa estar, sempre, de mãos estendidas para ajudar os que caíram.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro a inclusão do Salmo 62 na liturgia do culto.
Uma oração de Martim Lutero: “Bondoso, misericordioso Deus, querido Pai no céu, por graça e ardente amor divino tu nos deste teu querido Filho e com ele graça, felicidade e salvação. Pedimos-te, querido Pai, mantém para nós essa tua graça. Não deixes que percamos a face amiga de teu querido Filho Jesus Cristo por causa de ingratidão ou por outros meios. Somos realmente pessoas pobres, miseráveis, fracas e doentes. Caímos de um pecado em outro. Ora pecamos em pensamentos, ora em palavras, ora naquilo que fazemos. Custa-nos muito esforço conseguir subsistir diante de ti. Pois não há descanso nem paz. O diabo espia nossos pensamentos, atiça-nos e os estimula. O mundo observa atentamente tudo o que falamos e fazemos; ele observa nosso ser e vida e nos dá muita chance para o pecado. Nossa própria disposição também não nos permite ter paz. Além disso, nós nos tornamos culpados sem querer, passamos da medida e, muitas vezes, não conseguimos nos controlar. Tudo isso pressiona nossa consciência, destrói a alegria de nosso coração e transforma a alegria em aflição e amargura. Por isso nós te pedimos, bondoso e misericordioso Deus: Mesmo que nos transformemos em indiferentes e ingratos e mesmo que não nos comportemos como deveríamos, continua sendo nosso Deus misericordioso. Sê nosso amigo, bondoso e misericordioso. Consola-nos. Não nos faças sentir nossos muitos pecados. Purifica nosso coração e nossa consciência através da tua palavra, para que possamos servir a ti em paz e com alegria e para que te louvemos, honremos e glorifiquemos nesta vida assim como na eternidade” (Querido Deus! Orações, p. 23).
Bibliografia
CENTRO DE ESTUDOS BÍBLICOS. A palavra na vida. N. 134: Felizes os que têm fome e sede de justiça: a Boa Notícia segundo a comunidade de Mateus. JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1977.
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