Prédica: Marcos 14.12-26
Leituras: Isaías 42.1-4 (5-9) e Apocalipse 19.6-10
Autoria: Elke Doehl e Claudir Burmann
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 01/04/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
A última ceia como a primeira
1. Introdução
Na Quinta-Feira da Paixão iniciamos o auge da caminhada sacrificial e salvífica de Jesus Cristo. A última ceia com seus discípulos ecoa em nós e em nossas comunidades com intensidade. Cada participante do culto nessa ocasião, nesse dia ou nessa noite, sente como se fosse um dos doze daquela noite. O tom é um misto de alegria, apreensão, tristeza, expectativa e esperança. É a lembrança de uma partilha de despedida. E remete a outras ocasiões em que o momento
compartilhado foi o último.
No Evangelho de Marcos, Jesus orienta seus discípulos a fazerem os preparativos para o jantar pascal – que se tornou conhecido como a “última ceia”. Há a descrição de numerosos detalhes sobre onde e como esse jantar se daria. Há a indicação de que nem todas as pessoas presentes, de fato, são sinceras, verdadeiras e fiéis. Mesmo assim, estão juntas e partilham. Na partilha é expressa a esperança por um novo sabor, um vinho novo, no reino de Deus.
O profeta Isaías havia alimentado o desejo do povo por um “novo sabor”. Haveria um rei que reinaria com justiça e governantes que seriam honestos. Os olhos e os ouvidos das pessoas se abririam. A compreensão e o entendimento levariam a falar tudo com clareza e inteligência. Na mesma medida em que Jesus concretiza essa profecia, também indica sua realização plena no futuro. Ao que o anjo do Apocalipse diz: Bem-aventuradas as pessoas que são chamadas à ceia das bodas do Cordeiro (19.9). Enfim, o último momento não é o último momento. É a indicação para algo além do alcance dos olhos.
2. Observações exegéticas
O texto de Marcos 14.12-26 já foi abordado em diversas edições de Proclamar Libertação: PL 26, 1991, p. 134-139; PL 22, 1997, p. 104-108; PL 28, 2003, p. 144-152; PL 36, 2012, p. 140-147. As diversas abordagens confluem na compreensão da estrutura do conjunto textual que o próprio evangelho apresenta: a) preparação da ceia pascal; b) a indicação de quem o trairá; e c) bênção, partilha e louvor.
Até os dias atuais, a celebração da Páscoa integra a tradição religiosa do judaísmo, sendo rememoração da saída do Egito. Logo no v. 12 há a indicação evidente de que assim já era nos “tempos de Jesus”. Ao mencionar a “Festa dos Pães sem Fermento”, é trazido à memória o que em Deuteronômio 16.3 é dito: Na Páscoa, vocês não devem comer pão fermentado. Durante sete dias, comam pães sem fermento, o pão da aflição – porque às pressas vocês saíram do Egito –, para que todos os dias da vida vocês se lembrem do dia em que saíram da terra do Egito. Jesus e seus discípulos conheciam e eram parte dessa tradição. Sabiam bem do que se tratava. Era uma celebração especial e precisava ser preparada.
No caso, foi preparada numa casa, num “espaçoso cenáculo”, local apropriado para o jantar ou a ceia (no latim, cena) e acolher um bom número de pessoas – por isso “espaçoso”. É um indicativo de que essa “última ceia” de Jesus com seus discípulos não foi mais uma das muitas comunhões de mesa que Jesus teve ao longo de seu ministério. Essa ceia se reveste de especial importância pelo “evento litúrgico” que representa, por se situar no contexto religioso judaico e pascal da época. Como tal, tem preparo e local apropriados para acontecer. Maior descrição de detalhes desse local o texto bíblico não apresenta, embora estudos arqueológicos (especulativos) façam essa tentativa.
Na sequência, Jesus menciona que alguém que está ceando junto naquele momento o trairia (v. 18). Permanece algum suspense até afirmar que tal pessoa é a que com ele põe a mão no prato. E uma palavra de juízo é expressa: Ai [...] Melhor seria para ele se nunca tivesse nascido (v. 21). Simbolicamente, é possível compreender que nem todas as pessoas participantes do evento pascal chegam ou chegarão à “terra prometida”. Sobreviver à opressão ou resistir ao pecado, por si só, não tornam a pessoa perfeita. Pessoas justas e pecadoras até mesmo se nutrem da mesma fonte – põem suas mãos juntas no mesmo prato. Depois, Jesus ainda fala do cálice e diz que todos beberam dele (v. 23). Dentre os doze discípulos há diversidade de origem e de entendimento acerca da tarefa que lhes cabe.
Com aqueles doze (v. 17), muito diferentes entre si, Jesus reparte o pão e o vinho. Ao pegar o pão, o abençoa. Ao pegar o vinho, dá graças a Deus. Se o pão remete ao alimento da saída da escravidão, o vinho, além de ser bebida produzida e consumida naquele tempo e naquela região, simboliza o sangue do cordeiro pascal sacrificado. São alimentos reais, que alimentam de fato, mas, ao mesmo tempo, são elementos litúrgicos do rito pascal judaico. Em Êxodo 12.21 é mencionado ainda acerca da origem da inclusão do cordeiro na celebração da Páscoa. Essa ceia, pois, mantém fidelidade às tradições religiosas herdadas por Jesus e pelos doze. É um comer e beber de quem está integrado a uma linhagem de fé.
Ao mesmo tempo, naquela ceia, emerge a grande novidade e que impacta o futuro: a ressignificação da Páscoa judaica. Junto à partilha do pão, Jesus diz: Isto é meu corpo. Na distribuição do vinho diz: Isto é meu sangue. Transposto a um “futuro passado”, aponta que é o sangue da aliança, do qual Êxodo 24.6-8 fala. Em Jeremias 31.31-34 fala-se da “nova aliança” que Deus faria com seu povo e que as palavras de Jesus indicam assumir. Há um mistério que surge naquela ceia e, por ser mistério, só pode ser apreendido mediante a fé, nem sempre presente da forma esperada entre aqueles doze – nem nas comunidades cristãs subsequentes até a atualidade.
E, assim, surge um dos sacramentos – “meio sagrado” da ação divina. Jesus torna-se o alimento e a bebida – corpo e sangue unidos para uma nova libertação. É o ponto de partida para intensa produção teológico-dogmática ao longo do cristianismo. Divergências, dissidências e divisões entre as pessoas cristãs se originaram a partir do que deveria ser “pura graça”, estendida em direção ao ser humano. Ponto atual de debate é acerca da “presença real” por meios virtuais. O uso de tecnologias de comunicação e de telepresença tem aberto um novo debate em relação a novas possibilidades de celebração desse “meio sagrado”. A dificuldade de sempre é conseguir “ser contemporâneo ao tempo que se vive” e celebrar de modo correspondente a pura graça divina. Em si, a “presença real” de Cristo, após sua ascensão aos céus, sempre foi “presença virtual”, embora compreendida e celebrada como real.
Os v. 22 a 26 e seus paralelos, em transcrições similares em outros livros bíblicos, tornaram-se a base da teologia eucarística. Mesmo que a historicidade seja posta em dúvida por pessoas estudiosas do assunto, o impacto prático na experiência e vivência da fé cristã é inestimável. O sacramento da Ceia do Senhor é capaz de produzir efeitos de “cura e restauração”, ou então, perdão dos pecados, vida nova e salvação. É isso que é experienciado a cada vez que esse sacramento é celebrado. Esse texto do evangelho inserido no contexto da celebração pascal atual rememora com profundidade aspectos-chaves da doutrina cristã comum às diferentes tradições internas ao cristianismo. Apesar das diferenças entre denominações, a rememoração ritual dessas palavras persiste.
3. Meditação
Compartilhar em conjunto: quanta satisfação está presente numa ocasião como essa! Experimentamos isso em incontáveis ocasiões em nossa vida – também no exercício ministerial. Após uma reunião ou encontro, ou na visita a alguém, há uma alegria singular e, muitas vezes, expectativa pelo momento da partilha de alimentos, num almoço, café da tarde ou janta. Ora é mais sofisticado, ora é mais simples. A sensação de agradabilidade é a mesma: estar lado a lado, sem preocupação de reflexão mais profunda, sem precisar decidir algo, para cada qual falar ao mesmo tempo... Isso é parte dessas ocasiões especiais.
É claro que há muita gente que não tem ocasião para um compartilhar como esse. Há quem nunca o terá. Suas condições de vida e existência, seu modo cultural, sua realidade econômica e financeira estão distantes dessas possibilidades. A “vida” não deu condições para tal. Os relacionamentos nunca se tornaram sólidos o suficiente para integrar uma “roda”. Há quem está só e distante do compartilhar de uma “ceia”, seja última ou primeira. Sequer faz ideia dessa possibilidade. Nossa realidade tem dessas coisas, que constrangem e doem no coração ao pensar que isso, de fato, é real.
Em seu tempo, Jesus esteve em muitas casas. Partilhou refeição com muitas pessoas. Adentrou no íntimo de muita gente nessas oportunidades. Na casa de Mateus, tomou refeição junto com publicanos e pecadores. Jantou na casa de um fariseu, onde uma mulher ungiu seus pés com perfume. Hospedou-se na casa de Zaqueu, levando salvação para sua casa. Entrou para ficar na casa dos discípulos de Emaús, abrindo-lhes os olhos no partir do pão. Partilhou com muitas pessoas o alimento, o perdão, a restauração da dignidade.
A presença de Jesus, na casa e nas refeições, ocasionava um impacto peculiar. A situação, a realidade, resultava transformada. O contato com Jesus deixava marcas. Não se saía dali ileso. Seu alimento ou o alimento partilhado em sua presença se traduzia em mudança. Era a passagem de uma vivência para outra. A visita a uma casa era restauradora. O sentar-se à mesa, ou numa “roda”, satisfazia mais do que necessidades físicas. Mesmo assim, dizia para que não fosse muito divulgado o que ocorria. Contrariava o impulso humano de falar adiante alguma novidade.
A refeição que Jesus pede que seus discípulos preparem tem todos esses ingredientes. Não são pessoas perfeitas, sem máculas e sem pecado que com ele vão cear. A perfeição de vida não é pressuposto para estar nessa ceia. Os evangelhos nos falam de diversas falhas graves que alguns discípulos demonstraram em seu seguimento. Alguns queriam ser melhores que outros. Outro não acreditava que Jesus, de fato, era o Messias, o Salvador. Houve quem o traiu. Outro, depois, ainda duvidou de sua ressurreição. Gente falha, como toda pessoa, estava ali a participar da ceia preparada.
Os preparativos para um jantar especial são feitos com cuidado. O jantar da Páscoa era a lembrança de um tempo de dor e de vitória. Era a rememoração da ação poderosa de Deus, libertando seu povo de amarras opressoras. A preparação dessa ceia pascal seguia tradições herdadas e repassadas de geração em geração. Jesus e seus discípulos integravam e conheciam bem essa tradição. E tal qual o Mestre orientou, os discípulos o fizeram. Pode-se subentender que estava tudo em seu lugar e havia uma alegria ardente nos corações – muito próprio por um momento aguardado. A celebração da Páscoa era algo verdadeiramente sagrado.
Há partilhas de mesa que trazem surpresas. Nessa hora em que se está reunido ao redor de uma mesa, muitas revelações podem ser feitas. Jesus surpreende os que ali estão com ele. Ele diz: Tomem, isto é o meu corpo. E depois complementa: Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos. Jesus diz que o pão é mais que pão. E que o fruto da videira é mais que fruto da videira. Nasce, dessas palavras, o sacramento da reconciliação, do perdão, da vida nova e da salvação. É uma nova transformação que emerge nesse encontro, nessa partilha, nessa ceia. Mais uma vez percebe-se que a presença de Jesus transforma vidas, realidades e contextos. Uma nova aliança é afirmada: uma aliança que, definitivamente, quer incluir as diferentes situações de vida: tanto quem está “quebrado” como quem está “ainda mais quebrado”.
Bem saciados, na esperança pelo vinho novo, no reino de Deus, a ceia termina. Há louvor e se caminha para o monte das Oliveiras. Cantar hinos após um momento especial é gratidão pelo encontro, pela partilha, pelas dádivas recebidas de presente. A ida ao monte das Oliveiras é prenúncio de que, além da força visível, há uma força invisível ainda mais potente. Mesmo que se queimasse ou cortasse a oliveira, ainda assim ela tinha capacidade de brotar outra vez a partir de suas raízes. Era a partilha que precisava ainda acontecer naquela noite. Aquela última ceia foi a primeira ceia da perseverança, da fé que não se abate, mesmo na repressão, na poda, no corte, no fogo... enquanto se espera a ceia do vinho novo no reino de Deus.
4. Imagens para a prédica
Questões a considerar na construção da prédica:
a) A comunhão da Ceia do Senhor faz diferença na vida de alguém?
b) Como foi a questão da Ceia do Senhor durante a pandemia no ano que passou?
c) Já recusamos alguma comunhão de mesa na casa de alguém? Já recusamos
a comunhão oferecida pela Ceia do Senhor?
d) Comunhão é mais do que um simples partilhar de alimento. É uma convivência, uma troca no sentido mais profundo da palavra. É um repartir em comum de sentimentos e convivência, muito além da materialidade dos alimentos e elementos visíveis.
e) A comunhão não acontece apenas no momento e ato da partilha. Já acontece na preparação, no modo com que preparamos uma refeição para quem dela vier a ser parte.
f) Pode ser preparada uma breve encenação de uma comunhão de mesa: pessoas sentadas ao redor de uma mesa conversando e partilhando alimentos.
g) Dependendo da situação, pode-se convidar pessoas da comunidade para se sentar por um momento ao redor dessa mesa.
5. Subsídios litúrgicos
No momento do anúncio da Palavra, em que se ressalta a importância da última ceia, assim como Jesus envolveu seus discípulos para preparar a comunhão, também algumas pessoas podem estar preparando a mesa de comunhão. Detalhes que, geralmente, são cuidados na sacristia podem estar sendo preparados perante a comunidade.
Sugestão de hinos: LCI 271, LCI 275.
A liturgia da Ceia pode ser mais abreviada, considerando o preparativo anterior, ao longo de toda a reflexão. Tornar o momento da partilha um “momento leve” pelo fato de cada qual ter e ser parte da comunhão de pessoas justificadas, perdoadas e santificadas pela fé em Cristo Jesus.
Bibliografia
BULL, Klaus-Michael. Panorama do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2009.
ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2005.
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